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texto originalmente para EXPRESSÃO UNIVERSIITÁRIA Nº 16 junho 1999. p 9

A crise da razão no "Lobo da Estepe”


Alexandre Lobo


Algumas obras literárias podem ser lidas em diversas abordagens, desde um mergulho na psicologia dos personagens a uma visão do momento histórico vivido pelo autor. Exemplo disto é o

"Lobo da Estepe", Herman Hesse, escrito em 1927. O personagem principal desta obra, Harry Haller, vive de forma extremada a fragmentação esquizofrênica de seu próprio ser, seu sofrimento causado pela inadaptação ao convívio com outros seres humanos e sua incapacidade de identificar-se com algum grupo ou classe. Por outro lado, independente da vontade e consciência de Hesse, pode-se perceber na obra um prenúncio da crise da razão no entre guerras, a revolta contra as máquinas usadas para a morte em massa e a preocupação com a ascensão do nazismo.

Haller considera-se um Lobo da Estepe. Um Lobo da Estepe é um indivíduo que busca desesperadamente fugir de si mesmo, de seus conflitos interiores e de cada fragmento de seu próprio ser. Fragmentos estes que têm interesses conflitantes entre si, mas cada um quer vir a epiderme de Haller e respirar um pouco de ar puro e sentir o toque de um outro ser humano. O personagem vive seus instintos em conflito com seus valores, a força moldadora e amordaçadora a serviço da civilização, pondo a nu as diversas facetas do ser humano. Não há só o lobo no interior de Haller, não só o selvagem arisco, forte, mas também o macaco o primitivo, o rato, repugnante e frágil e também uma série de outros seres. Haller vive desesperadamente uma busca de identidade que possa unir todos estes fragmentos em uma totalidade coerente na sua personalidade. O caminho que segue para tal intento é a procura obcecada de lucidez, da razão que lhe possa fornecer um manual de instrução para a vida. Entretanto, Haller sente-se condenado à infelicidade culpa o Lobo da Estepe por sua sina.

O personagem de Hesse é um pequeno burguês, que vive uma cultura burguesa e está preso aos padrões de racionalidade capitalista do lucro e cálculo, da limpeza e seriedade da vida. Esta maneira de viver tem seu preço: a infelicidade, e ele sabe disto, revolta-se contra sua própria moral, detesta a erudição ornamental do burguês aristocrático e odeia a si próprio no que tem de burguês. O Lobo da Estepe representa a negação disto tudo, é o lado selvagem que foge das aparências, da falsa moral, da racionalidade lucrativa, é o instinto de destruição desta ordem burguesa, mas é também o lado controlado, reprimido de Haller, só podendo encontrar a redenção através de uma ruptura radical com o modo cometido de viver.

A explicação psicológica de "O Lobo da Estepe" pode ser encontrada na própria origem de Herman Hesse, nascido Cawl, filho de indiana e pastor protestante, com fortes influências do budismo em sua visão de mundo, não se identificou com o nacionalismo nazista alemão. Não havia espaço em sua alma para o sentimento de raça ariana. Vemos aí o conflito da mentalidade do autor com a ideologia ascendente de sua época. Mas o "Lobo da Estepe" é mais que isso, é também um prenúncio da crise da razão, uma critica ao desenvolvimento tecnológico que coloca-se acima do desenvolvimento social. Hesse aproxima-se de Charles Chaplin em "Tempos Modernos" que mostra Carlitos subordinado ao tempo de produção de uma máquina, cujo os movimentos repetidos roubam do ser humano a própria condição de humanidade.

No "Lobo da Estepe", a passagem em que Haller está em um teatro mágico expressa a revolta contra as máquinas: o teatro mágico é um lugar com várias portas e cada uma delas corresponde a cada pedaço da alma de Haller. Em uma destas portas há o letreiro: "Caçada alegre!", "Montaria de automóveis". É um mundo de guerra irracional entre pedestres, munidos de metralhadoras, que divertem-se atirando nos motoristas e vendo carros desgovernados capotarem. Ambos lados liberam thanatos, o instinto de destruição. Não há nem bons, nem maus, apenas um

elemento em comum, as máquinas que destroem e devem ser destruídas sob o signo da irracionalidade.

A Europa de Hesse e das máquinas caminha para a 2º Guerra Mundial. O paradoxo da era moderna se faz presente, a irracionalidade excessiva da vontade do lucro de um indivíduo , grupo ou país choca-se de frente com a de outro indivíduo, grupo ou país. O lucro não pode ser de todos, se não, não seria lucro. A vitória de uns é a exclusão de outros. Assim, a racionalidade produz a irracionalidade da destruição, o ódio emerge como força motora do ser humano: ódio aos judeus, aos latinos, bolcheviques, amarelos ou sulistas.

Haller, o burguês que odeia a burguesia, é oprimido pela razão, leva a vida a sério demais, vive na Alemanha destruída do entre guerras que quer recuperar sua fatia de imperialismo no mercado mundial.


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