O Teatro Messiânico: dos anos 60 ao Oi Nóis


Alexandre Lobo1

Naqueles tempos em que o Brasil andava “irreconhecivelmente inteligente”, o papel de intelectuais e artistas de esquerda ou progressistas era messiânico. Se entendermos os movimentos messiânicos como relativo a uma promessa de um futuro, a um apocalipse seguido de uma era de abundancia, não era longe do que se vivia naqueles longos anos 60. Peças de teatro, por exemplo, tinham a preocupação em promover a revolução que estava a caminho. O próprio líder comunista Luis Carlos Prestes, às vésperas do golpe militar declarava otimista: o partido está no poder, acreditando em uma revolução constitucional inevitável.

Nos anos 60, de certa forma, os líderes messiânicos eram substituídos pelos partidos e movimentos de esquerda, inspirados principalmente na figura de Guevara. O apocalipse se daria na revolução e o paraíso seria o socialismo. Mas o principal aspecto que aproxima setores da esquerda dos movimentos messiânicos era a certeza inevitável de revolução. A história assumia um aspecto escatológico ao ser entendida como apenas um suceder de etapas, invariáveis e inevitáveis, já determinadas pelo desenvolver da luta de classes: escravismo, feudalismo, capitalismo e socialismo faziam parte do desenvolvimento de qualquer sociedade, assim como para os movimentos messiânicos as “eras de pecado” sucederiam ao juízo final e a era de abundância.

A certeza da revolução levou muitos artistas se engajarem nas causas sociais. Assim, surgiam o Teatro de Arena, o Oficina, e o teatro do movimento cultural CPC da UNE. Mesmo depois do golpe de 64, embora alguns aderissem a indústria cultural nascente, outros permaneciam comprometidos, como Augusto Boal, do Arena, que continua até hoje no campo da esquerda. Já não era mais possível a certeza no processo histórico revolucionário, mas ainda era possível o trabalho comprometido.

Aqui, em Porto Alegre, herdeiro do messianismo dos anos 60, é o trabalho do grupo teatral Oi Nóis Aqui Traveis2 que tem realizado em seu trabalho de rua peças de conteúdo social. Inclusive, pelo grupo, já foram montadas peças do Arena/CPC como Revolução na América do Sul e Deus Ajuda os Bãos. É tradição as peças de rua do Oi Nós apresentarem a dicotomia oprimido/opressor, marcando um engajamento na denuncia social e, pensemos, não há denuncia sem esperança de superação do que é denunciado. Exemplo disto são A dança da Conquista e A Saga de Canudos. A primeira, trata da questão do domínio branco, tanto físico quanto religioso (simbólico), sobre a população nativa que seria exterminada mo meio da disputa das monarquias ibéricas por territórios.

A Saga de Canudos, baseado no texto de Evangelho Segundo Zebedeu, de Cézar Vieria, tem o mérito de ressaltar a questão da terra como o “motor” da Construção de Belo Monte. Durante muito tempo, os movimentos messiânicos e seus líderes foram apresentados como fanáticos religiosos, mas não se pode negar a questão social em cada um deles. No caso de Canudos, é marcante a questão da má distribuição da terra, pois um dos lemas de Antônio Conselheiro era: “A terra não tem dono, a terra é de todos”, em meio ao sertão da desigualdade. A questão da terra em volta de uma religiosidade não era um caso isolado em Canudos. Ainda nos anos 60, Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, lembrava a cristandade dos camponeses. Ainda hoje, é marcante a presença da Teologia da Libertação, facção progressista da Igreja Católica, na versão contemporânea das Ligas, o MST – Movimento dos Sem Terra.

Bem, uma das questões que não foram mostradas na peça, mas que nem por isso ela perde seu valor, é a questão da degola exercida pelo exército sobre os prisioneiros. A figura de Conselheiro, que é um boneco enorme e não um ator, está a protege espiritualmente a população de Belo Monte, ele não é o protagonista da história, embora elemento principal. Ou melhor, Conselheiro é o “catalisador” das questões espirituais e mesmo materiais de seus fiéis, ele é uma promessa, uma expectativa de vida melhor em um mundo mais igualitário, mas são seus seguidores em meio às condições de desigualdade social que movem a história, os acontecimentos.

O desfecho da peça é significativo: a figura da Morte vencendo Antônio Conselheiro ao som daquela conhecida música da “A Voz do Brasil” atualizando Canudos. Nossa história tem sido uma história de desigualdades, de tortura e impunidades. Passados um século de Canudos, a desigualdade da terra permanece, o sertão continua miserável e o sertanejo tem apenas os sete palmos a baixo da terra no latifúndio . Nesse sentido, mesmo quem não conhece a história de Canudos é capaz de entender a peça por que pode reconhecer nela elementos da nossa atualidade e de nosso passado.

Querer um futuro melhor, e a necessidade de denunciar o presente injusto é um sentimento permanente ao longo da historia entre os que tiveram e tem sensibilidade e comprometimento com o próximo. Com ou sem caráter religioso explícito, a questão dos movimentos messiânicos é atualizada na medida em que vemos a desigualdade nesta grande e rica nação continuar através dos tempos .

1 Mestre em História e professor de sociologia da Escola Estadual de Ensino Médio Infante Dom Henrique.

2 Como um todo, as peças de sala do Oi Nóis se aproximam mais do Oficina de José Celso Martinez em virtude da ausência do didatismo presente tanto no CPC quanto no Arena.

1