FOLHA DA HISTÓRIA


Porto Alegre, agosto de 1999


SOBRE "ANTES DA CHUVA"


Alexandre Lobo


O filme do diretor macedônio Milcho Manchevski, "Antes da Chuva", produção de 1994, da Macedônia, França e Inglaterra, leva-nos a refletir sobre as contradições do mundo contemporâneo. De um lado, a chamada pós-modernidade da dita sociedade pós-industrial, a cultura padronizada dos fast-food, a música eletrônica, as telecomunicações encurtando distâncias e a emergência do inglês como língua mundial.

Do outro lado do paraíso, o subdesenvolvimento, a violência cultuada, as richas étnicas,tradições manipuláveis por meio da adulteração do passado, o afloramento de seitas místicas e o isolamento dos indivíduos, causado pelo desencontro de ritmos e valores.

"Antes da Chuva" divide-se em três episódios: 'Palavras*, um jovem monge do catolicismo ortodoxo, Kiril, faz voto de silêncio e esconde uma menina albanesa, Zamira, acusada de matar um macedônio; 'Rostos',uma editora de uma agência de fotografias, Anne, grávida e divida entre dois amores, presencia em um restaurante um conflito étnico com conseqüências trágicas. Em ‘Imagens’,Aleksandar fotógrafo e amante de Anne, volta a sua cidade natal, um pequeno povoado na Macedônia, depois de ter feito carreira premiada na Inglaterra, vive o inesperado conflito étnico em sua região de origem.

Os três episódios se misturam, os personagens de um episódio aparecem nos outros, não há um tempo cronológico, mas circulariedade. O filme termina na mesma cena em que inicia, rompe com a temporalidade. Um dos monges fala a Kiril: "O tempo nunca morre, o círculo não é redondo". Não há mais a evolução do projeto iluminista, passado e presente confundem-se na pós-modernidade, dão a sensação de eterno retorno. A utopia morre ante ele mentos que se como o conflito entre seres humanos.

A guerra persiste através dos tempos. É aquela grande arma mais poderosa que a bomba atômica, como nos fala um personagem do filme argentino 'Um homem mirando sudeste': a estupidez humana. Ortodoxos justificam o conflito pelo passado de glória de Alexandre e pêlos 400 anos de domínio turco. A rivalidade étnica sobrevive ao tempo, enquanto a violência se faz presente em diversas formas e em lugares distintos. É Aleksandar que nos diz fugir da guerra em Londres ou Nova York. A violência urbana, a desigualdade social,assassinatos e estupidez cotididana de prepotentes são formas camufladas de uma guerra irracional. Em todos os tempos e em todos os lugares, morremos como 'as moscas morrem antes da chuva', no dizer de um dos monges de 'Palavras'.

Os personagens são frágeis ante os acontecimentos que se impõem sem nenhuma lógica ou racionalidade, a violência pode ocorrer a qualquer momento, e chegar nas mãos, não de rivais, mas de próximos. É um albanês que mata Zamira quando esta tentava íügir com Kiril para a Inglaterra, Aleksandar é assassinado por um primo quando ajuda Zamjra a escapar dos macedônios para o mosteiro ortodoxo.

Os encontros entre os personagens são apenas eventuais, sem continuidade suficiente para uni-los. Há sempre um elemento a impor distância. Zamira e Kiril estão separados pela língua e pela cultura. Aleksandar, Anne e seu marido, por projetos de vida. O fotógrafo e sua paixão de infância, uma muçulmana com quem estudara junto na época do socialismo, por trajetórias de vidas e valores distintos.

As diferenças afloraram étnicas sobreviveram aos anos de planejamento econômico e social. A convivência entre muçulmanos e ortodoxos durante o socialismo soviético não foi suficiente para aplacar as diferenças culturais latentes. Em

uma guerra civil, cada grupo divergente procura justificar-se manipulando o passado. Este passa a ser, não uma memória, mas um motor de conflito.

O fim do socialismo soviético não significou a entrada destas regiões de conflito étnico no maravilhoso mundo do consumo, ao contrário, tornou-as ilhas sócio-culturais. Pobreza e guerra declarada entre tradições contrastam com o mundo bonito da propaganda dos defensores da pós-modernidade. Regiões são excluídas desta nova ordem mundial. Mas, estas ilhas sócio-culturais não existem só no Leste Europeu, são também o trabalho escravo no mundo asiático, a pobreza berrante de países africanos e, também moram ao nosso lado, são as massas de desempregados estruturais, os excluídos que não fazem diferença para o mundo do consumo.




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