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Releitura e desvirtuamento

Vanderlei Nunes Genro*


A releitura de produções culturais não é algo novo; exemplos existem de vários tipos: fílmes e peças teatrais readaptados, músicas regravadas, e por aí segue. São diversas as situações em que o homem

contemporâneo revisita o passado em busca de uma melhor compreensão dos tempos idos e se aparelha para vivenciar seu presente. Sumariamente, existem dois tipos de releituras: há aquela em que o trabalho orig

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Releitura e desvirtuamento

Vanderlei Nunes Genro*


A releitura de produções culturais não é algo novo; exemplos existem de vários tipos: fílmes e peças teatrais readaptados, músicas regravadas, e por aí segue. São diversas as situações em que o homem

contemporâneo revisita o passado em busca de uma melhor compreensão dos tempos idos e se aparelha para vivenciar seu presente. Sumariamente, existem dois tipos de releituras: há aquela em que o trabalho original apenas recebe uma nova roupagem, pois a transformação operada é pouco significativa, verificando-se uma espécie de adaptação; e, no segundo caso, constata-se uma ruptura,

resultado de um processo que engedra uma visão qualitativamente nova, no sentido de que a contribuição articula elementos que apontam para uma nova e aprimorada perspectiva. Nesse caso, a uma produção já conhecida se agrega uma rede de significados novos, numa re-significação que

poderá desvirtuar a intenção primeira do produto cultural. Exemplo deste- último fenômeno é aquele efetivado pela banda mineira Pato Fu, a qual trouxe para os nossos dias um discurso do passado recente da cultura brasileira.

Debruçando-se sobre uma canção de Gilberto Gfl que fora tema de abertura de um famoso programa infantil – no qual a Rede Globo adaptou à linguagem televisiva a obra homônima de Monteiro Lobato -, Pato Fu redimensiona certa proposição autoritária, restritiva e arregimentadora por nós muito conhecida.

Municiada de uma singela aparelhagem de som - a qual manuseia com singular competência - Pato Fu opera no discurso elaborado pelo compositor baiano um desvirtuamento da proposta inicial. Aquela nos remetia a um universo mítico, onde o pleno gozo das fantasias infantis era uma possibilidade viável. Neste ambiente marcadamente escapista, onde os limites eram impostos apenas pela capacidade sonhadora de crianças acompanhadas de seus parentesadultos, Monteiro Lobato propagou uma gama de sugestões do “bom-viver”. Fraternidade, criatividade bem-comportada e repreensões educativas às crianças quando estas ultrapassam os limites morais estabelecidos. Estes elementos eram a tôica do programa que era levado ao ar pela Rede Globo nos anos de nossa última ditadura.

Pertenço à geração alimentada televisivamente por esta mensagem regrada e essencialmente castradora que esta emissora transmitiu durante vários anos, com audiência considerável. Na utilização que fez do material didático formulado pelo escritor, a música de Gilberto Gil combinava com o discurso bem-regrado citado acima. Como já foi afirmado, isto se dava durante a vigência de uma das mais esmagadoras ditaduras conhecidas pela América Latina, que fora responsável direta pela eliminação direta de milhares de contestadores deste sistema. Dessa forma, a discrepância entre a realidade objetivamente observável e este programa sugeria uma intenção paralisante, na medida que o embate cotidiano intencionalmente olvidado cede lugar a um universo de limites inexistentes.

A releitura da canção pela banda mineira distorce a perspectiva autoritária do Programa em questão porque na sua versão vislumbra-se um cenário muito diferente daquele que através da televisão obnubilava um contexto opressor e sangrento, que destoava profunadamente do culto desmesurado à ausência de barreiras da imaginação infantil. Conforme constatamos na dantesca realidade cotidiana das cidades brasileiras, boa parte das crianças que absorvera toda falsa positividade do Sítio do Pica-pau Amarelo hoje encontra-se embrenhada nas inflexíveis malhas do narcotráfico e da delinquência. Ou estão vendendo sua força de trabalho por um salário que lhes proporciona uma existência assaz precária - tudo isso com uma resignação apavorante. De nada serviu acobertar uma realidade discriminadora e excludente, subsidiando lúdico - enganosamente pessoas que não tinham as mínimas condições de concretizarem as fantasias bem comportadas daquele Sítio, onde o pica pau era amarelo. No embate com a realidade urbana das nossas cidades tal pássaro certamente ostentaria uma coloração esmaecida.

Com acentuada virulência - registrada numa pronúncia agressiva e num ritmo contundente - Pato Fu traz o discurso do Sítio para uma ambiente "pesado", onde o dócil e comedido que atendia pelo nome de Pedrinho surge; como um hard-core, o que por definição seria um contestador, como os demais hard-cores que surgiram durante o agravamento da crise capitalista dos anos 80. Não obstante as tentativas dos sistemas repressivos, este foi um momento em que tornou-se impossível acobertar a incapacidade e irresponsabilidade social dos governantes.

Essa outra proposta em tomo dessa personagem melhor coaduna com o grotesco da situação social do nosso País. Esta banda reatualiza o Sítio escapando da proposta original do mesmo, que era de acomodação irrestrita e obscurantismo, ambos disfarçados no ilimitado gozo da fantasia. Embasados no discurso moralizador de Monteiro Lobato, Rede Globo e Gilberto Gil desvirtuaram nossa realidade; Pato Fu distorceu a proposta de ambos apresentando-nos uma visão mais verossímil da mesma. Não há dúvida de que a última leitura está em melhor consonância com a cena brasileira, o que parece ser mais educativo.

Embora a função da arte – caso queiramos designar-se alguma - não seja informar sobre o mundo concreto, procurei nesse escrito explorar esse aspecto. No que penso que não cometi incoerências nem exageros.

*MESTE EM HlSTÓRIA - UFRGS


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