A criação mais bela dos homens: A invenção da memória

Num vilarejo que ficava entre as montanhas e a praia de algum lugar da América, moravam pessoas simples, que viviam da pesca, em casinhas pequenas, sossegadamente. Eram tão poucas as pessoas que moravam lá, que todos os homens cabiam em sete barquinhos pequenos de pesca, e que eles podiam perceber quando estava faltando alguém apenas olhando para aqueles que estavam por perto.

Eles não cultivavam a terra, pois não tinham terra que pudesse ser cultivada: Apenas areia e pedra. Mantinham algum contato com os povoados vizinhos, mas este contato não influenciava muito o modo de vida da população. O que pode haver de interessante para contar sobre esse povoado tão sossegado, onde todos os homens faziam a mesma coisa todos os dias e onde todas as mulheres cuidavam da casa, costuravam e tomavam conta das crianças enquanto os homens iam para o mar?

Gabriel Garcia Márquez conseguiu um roteiro absolutamente fascinante sobre esse lugarejo. Contou para nós, no conto “O Afogado mais bonito do mundo”, que está no livro “A Incrível e Triste História de Cândida Erendira e Sua Avó Desalmada”. Ele contou um fato que transformou a mentalidade das pessoas desse vilarejo, que não tinha, sequer, um nome.

Essa transformação se opera quando uma massa disforme chega à praia trazida pela maré, e, olhando mais detalhadamente, as pessoas do vilarejo percebem que era um afogado, que não era nenhuma das pessoas da vila deles, nem dos vilarejos vizinhos. Era uma pessoa dum tipo que ninguém se lembrava de ter visto: era um homem muito grande, muito bonito, cujo semblante desperta a paixão, a compaixão e estimula a imaginação e a mente daquelas pessoas.

Como ele não podia contar a própria história, como os viajantes que chegam em terras desconhecidas geralmente fazem, as pessoas começaram a imaginar qual seria a história daquele homem, imaginando como seria se ele vivesse naquele vilarejo, e descrevendo para elas mesmas o que ele faria e sentiria. Ao fazer isso eles projetaram aquilo que gostariam que mudasse no povoado- queriam ter mais água doce, queriam ter flores- ao dizer que se o homem grande e bonito vivesse entre eles ele conseguiria realizar proezas que seriam inatingíveis a eles, homens pequenos que tinham que lutar para que o vento não carregasse as crianças, eles construíram uma imagem mítica de um herói – e nomearam o afogado: chamaram-no de Estevão.

O mito de Estevão, que acabara de ser criado, estimulou a população a alterar diversas coisas em suas vidas: como Estevão era muito grande e pesado, eles quiseram construir móveis mais resistentes e casas com pés-direitos mais altos e portas maiores, para que ele pudesse se sentir confortável. Pensaram em transformar seu povoado, para que as pessoas, em gerações futuras, conhecessem-no como a terra de Estevão, isto é, para que o povoado fosse nomeado. A figura de Estevão se tornou um ancestral mítico daquela população, uma história para ser transmitida através dos tempos, uma justificativa para as práticas - e até mesmo para a própria existência que daquele povoado. Se Estevão, ou alguém como ele, algum dia voltasse para a vila, ela teria de estar pronta para recebe-los bem. O mito do retorno de Estevão, como o mito do retorno dos deuses que está presente em diversas culturas, será conhecido por muito tempo, e a história não será contada como se Estevão fosse um afogado que foi levado pela maré, mas como se fosse um homem que viveu no lugar há muito tempo atrás.

O povoado passou a ter um nome, um homem e um passado. O povoado passou a se ligar com o mundo através da lenda que foi construída, que, apesar de parecer tão particular é um arquétipo que já foi repetido infinitas vezes na história da humanidade. Aquelas pessoas passaram a ter uma justificativa para se relacionarem com outros povos: Afinal, descobriram que podiam conhecer a si próprios cada vez que se defrontassem com o desconhecido. E, cada vez que chegasse um estrangeiro, eles perguntariam notícias de Estevão, tal qual o Barbárvore de Tolkien que, ao saber como era a terra dos Hobbits perguntou, ansioso, se por lá poderiam viver as entesposas, que haviam deixado a floresta dos Ents há muito tempo, pois queriam construir um outro tipo de paisagem. Os Hobbits não existiam na canção tradicional dos ents que dava o nome a todos os seres, e o contato com o desconhecido, tal como na história de Márquez, suscitou não apenas curiosidade, mas vontade de mudança. Se os pequenos não houvessem chegado, talvez os ents continuassem cegos às maldades de Saruman contra o seu próprio povo, talvez tivessem acabado aos poucos. Tolkien, como grande inventor de culturas que era, sabia que um elemento estranho poderia alterar drasticamente os rumos de uma civilização, que usamos o desconhecido como espelho para refletir sobre nós mesmos.

Se os homens do povoado de Estevão não tivessem compartilhado do passado que as mulheres começaram a inventar, se não tivessem acrescentado os próprios elementos a esse passado, se não tivessem sonhado junto com as mulheres, se eles não tivessem, enfim, criado o mito juntos, talvez elas tivessem fugido dos maridos, como as entesposas, mas eles foram muito inteligentes em aceitar o desafio de ajudar a construir a imagem de Estevão. Dessa criação conjunta, toda a sociedade –os homens, as mulheres, e as gerações vindouras – se beneficiou.

O passado não existe por si só. O passado é criado por nós quando pensamos sobre ele, quer recitando poemas sobre as coisas que conhecemos, quer planejando nosso futuro, quer construindo mitos sobre nossos ancestrais. É fascinante como podemos nos relacionar com o mundo de tantos jeitos diferentes. Poético e fascinante...

Autor: Luthien, the White

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