Carta a um refém - Trechos

III

Como a vida constrói essas linhas de força de que viemos? De onde vem o peso que me empurra para casa desse amigo? Quais são, portanto, os instantes capitais que fizeram dessa presença um dos pólos de que preciso? Com que acontecimentos secretos são modeladas as ternuras perticulares e, por intermédio delas, o amor pátrio?

Como os verdadeiros milagres fazem pouco barulho! Como são simples os acontecimentos essenciais! Há tão pouco que dizer sobre o momento que quero contar que preciso revivê-lo em sonho, e falar a esse amigo.

Foi um dia antes da guerra, às margens do Sena, do lado do Tournus. Havíamos escolhido, para almoçar, um restaurante cujo balcão de madeira se erguia por sobre o rio. Com os cotovelos fincados numa mesa simples, toda gravada a faca pelos clientes, tínhamos pedido dois Pernods. Seu médico lhe proibia o álcool, mas você desobedecia nas grandes ocasiões. Essa era uma delas. Não sabíamos porque, mas era. O que nos alegrava era mais impalpável que a qualidade da luz. (...) E como dois marinheiros, a alguns passos de nós, estivessem descarregando um batelão, nós os convidamos. Nós os chamamos do alto do balcão. E eles vieram. Simplesmente vieram. Tínhamos achado tão natural convidar companheiros, talvez por causa dessa invisível festa em nós. Era evidente que responderiam ao sinal. Então brindamos!

O sol estava bom. Seu mel tépido banhava os choupos da outra margem e a planície até o horizonte. Estávamos cada vez mais alegres, sem saber o por quê. O sol nos tranquilizava por bem clarear, o rio por correr, a refeição por ser a refeição, os marinheiros por terem respondido ao chamado, a criada por nos servir com uma espécie de gentileza feliz, como se presidisse a uma festa eterna. (...)Experimentávamos uma espécie de estado perfeito em que, concedidos todos os desejos, nada mais tínhamos a contar um ao outro. Sentáiamos-nos puros, e direitos, luminosos e indulgentes. Não saberíamos dizer qual verdade nos aparecia em sua evidência. Mas o sentimento que nos dominava era bem o da certeza. De uma certeza quase orgulhosa.

(...)

Assim, saboreávamos essa compreensão muda e esses ritos quase religiosos. Embalados pelo vaivém de uma criada sacerdotal, os marinheiros e nós brindávamos como fiéis de uma mesma Igreja, embora não soubéssemos dizer qual. Um dos marinheiros era holandês. O outro era alemão. Este fugira outrora do nazismo, perseguido que era como comunista, ou como trotskista, ou como católico, ou como judeu. (Não me lembro mais do rótulo em nome do qual o homem era proscrito) Mas naquele momento, o marinheiro era uma coisa bem diferente de um rótulo . É o conteúdo que contava. A massa humana. Era simplesmente um amigo. E estávamos de acordo, entre amigos. Você estava de acordo. Eu estava de acordo. Os marinheiros e a criada estavam de acordo. De acordo sobre o que? Sobre o Pernod? Sobre o significado da vida?Sobre a doçura do dia? Também não saberíamos dizer. Mas esse acordo era tão pleno, tão solidamente estabelecido em profundidade, tinha por base uma batida tão evidente na substância, apesar de não formulável em palavras, que teríamos aceitado, de boa vontade, fortificar esse pavilhão, resistir a um cerco e nele morrer , atrás de metralhadoras, para salvar essa substância.

Que substância?... É bem esse o problema! Arrisco-me a capturar só os reflexos, não o essencial. As palavras insuficientes deixarão fugir minha verdade.(...)

O essencial, muitas vezes, não tem um peso.O essencial, aqui, aparentemente foi só um sorriso. Um sorriso é muitas vezes o essencial. Somos pagos com um sorriso. Somos recompensados com um sorriso. Somos animados com um sorriso. E a qualidade de um sorriso pode fazer-nos morrer. (...)

V

(...)Para nós, que fomos educados no culto do respeito pelo homem , pesam bastante os simples encontros que se transformam, às vezes, em festas maravilhosas.

Respeito pelo homem! Respeito pelo homem!... Aí é que está a pedra de toque. Quando o nazista respeita exclusivamente aquele que se parece com ele, respeita apenas a sí mesmo. Recusa as contradições criadoras, destrói toda a esperança de ascensão (...)Reconhecemos como nossos aqueles mesmos que diferem de nós. Mas que estranho parentesco! Ele se baseia no futuro, não no passado. No fim, não na origem. Somos, uns para os outros, peregrinos que, ao longo de caminhos diversos, sofremos em direção ao mesmo encontro.

(...)

VI

É sem dúvida por isso, meu amigo, que necessito tanto da sua amizade.Tenho sede de um amigo que, acima dos litígios da razão, respeite em mim o peregrino desse fogo. Tenho às vezes necessidade de experimentar antecipadamente o calor prometido, e de repousar, um pouco para além de mim mesmo,nesse encontro que será nosso.

(...)Junto de você (...) encontro a paz, como em Tournus. Acima de minhas palavras insensatas, acima de meus raciocínios que me podem enganar, você considera em mim simplesmente o Homem.(...)

Eu lhe agradeço ter me recebido tal qual sou.O que fazer com um amigo que me julga? Se acolho um amigo a minha mesa, convido-o a sentar-se, e, se ele manca, não lhe peço para dançar.

Meu amigo, preciso de você como de um cume onde se respira! Necessito estar ao seu lado, mais uma vez, às margens do Sena, à mesa de um pequeno albergue de tábuas irregulares, e de convidar dois marinheiros, na compania dos quais brindaremos na paz de um sorriso semelhante ao dia


Se eu ainda combater, combaterei um pouco por você. Preciso de vc para melhor crer na chegada desse sorriso."

Autor: Antonie de Saint-Exupéry
Em: Escritos de Guerra. 1939-1944.Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.

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