TURMA DE 72 - Memórias de BQ


Guerra

Estávamos acampados em plena selva amazônica (quer dizer,
ali perto do ginásio, junto às figueiras) ouvindo as
preleções do instrutor, sargento...(bip bip, memória
insuficiente, memória insuficiente), que expunha seu plano
de ação para o combate que logo se iniciaria. Os combatentes
bocejavam, Bueno dormia escondido atrás de uma árvore,
ninguém queria nada com a guerra. O exército azul era
comandado pelo General Ávila, uma espécie de Napoleão
alucinado àquela tarde, que vez por outra passava por nós
aos berros, conferindo os preparativos. A batalha prometia
ser encarniçada pois enfrentaríamos as tropas do General
Sérgio Pedal, um célebre estrategista, conhecido pelo gênio
militar, eficiência em ação e incrível capacidade de ser
chato.

As preleções eram um pouco confusas. Tudo que sabíamos é que
dali a pouco seria deflagrada uma tremenda guerra de bolas
de lama, com direito a banho nos comandantes de ambos os
exércitos, como de praxe. O ânimo da tropa era excelente,
diga-se de passagem. Mas não por causa da guerra, e sim por
conta do licenciamento depois do combate.

O sargento instrutor, um mulato simpático e mentiroso,
esforçava-se por agradar ao pelotão. Volta e meia tentava
ensinar alguma manobra, mas invariavelmente retornava ao seu
tema predileto: o tempo em que havia sido saxofonista em
Belo Horizonte.

- Mocidade jovem, já fui bom! Vida de músico é dura, mas tem
suas compensações. Muita mulher, muita bebida de graça.

- Sargento, conte aquele caso da briga...

- Não contei pra vocês?

- Ainda não. (tinha contado umas vinte e cinco vezes, mas a
galera queria tempo para cochilar mais um pouco e fazer a
digestão da feijoada do rancho).

- Pois bem. Aquilo foi uma lição que dei num safado. O
sujeito começou de muita coisa, falando muito,
perturbando...

Alguém roncava. O bico de pato do Perez tinha sumido pela
quinta vez, ele resmungava, contrariado. Gambá imaginava um
jeito de amarrar os cadarços dos butes do Bueno. Vivíamos os
horrores da guerra.

- Aí teve uma hora em que não aguentei. Eu aqui desse jeito,
vocês estão vendo. Franzino, baixinho, ninguém dá nada por
esse crioulo, pois bem...

Gambá conseguiu amarrar os butes e agora ria com vontade,
realizado. Perez achou o bico de pato pendurado no galho
mais alto da árvore, agora tentava derrubá-lo a pedradas.
Franco, Olivo e Iran jogavam porrinha disfarçadamente.

- Então o homem veio pra cima de mim. Foi chegando, como
quem não quer nada, foi chegando, e eu aqui esperando,
saxofone na mão.

O sargento tinha um excelente dom para contar histórias,
diga-se de passagem. A cada nova versão trocava a marca do
instrumento ("uma preciosidade, importado, nunca mais tive
um sax daqueles"!)

- Aí, chegou perto e armou o tapa. Foi o tempo de eu saltar
para trás e baixar o instrumento na cabeça do safado. Depois
fiquei ali, com as duas metades do saxofone na mão, e o
pilantra gemendo. Também nunca mais tirou conversa comigo.
Aquele aprendeu a lição.

Bocejos. Tédio. Alguém mais ousado resolve provocar:

- Quebrou o saxofone na cabeça do sujeito, sargento?

- Quebrei com vontade. Nem me importei com o prejuízo.

- Sargento? - Gambá pede a palavra.

- Diga, jovem.

- Nós quer dizer uma coisa p'ro senhor.

- Pois não.

- Nós aqui de trás fez uma assembréia gurinha mesmo. Eu mais
o Ramalho, o Olivo e o Iran.

- Assembléia... Sim, e daí?

- Sim senhor, assembréia. Nós aqui resolveu uma coisa. Se o
sôr trocar o saxofone por um violão nós jura que credita no
causo!

Gargalhadas. O intrépido instrutor ainda quis protestar, mas
agora já se ouvia ao longe os acordes da corneta do cabo
Duarte, convocando a tropa.

Ramalho


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