Capitalismo, O Sepulcro Caiado

Seleção e comentários de textos de Gilles Perrault,  Maurice Cury e Philippe Paraire

extraídos de "O Livro Negro do Capitalismo", Ed. Record;

de Leonardo Boff, extraídos de seu livro

 "Fundamentalismo: O Globalização e o Futuro da Humanidade", Ed. Sextante,  

de Rose Marie Muraro, em seu livro "Textos da Fogueira", Ed. Letraviva

e dos jornalistas Décio Freitas, Argemiro Ferreira, Arnaldo Antunes e Paulo Paniago

por

Carlos Antonio Fragoso Guimarães

Psicólogo Clínico, Mestre em Sociologia


    O mundo capitalista é o mundo do livre mercado; nada melhor para garantir o progresso da civilização que a benéfica concorrência das empresas em um mundo "livre". Todos têm a oportunidade de abrir o seu negócio e vai depender apenas da competência pessoal fazê-lo frutificar. Para usar um termo mais abrangente, o capitalismo é na verdade um liberalismo: as oportunidades para o plantio e colheita de bons negócios estão a "todos" abertas. Vencida a "sórdida" ameaça marxista e comunista - que tão bem provou que não funciona, tendo sido minada por sua própria podridão -, devemos aceitar o fato de que o capitalismo é o único e mais "natural" modelo de sociedade. Se ainda não é o ideal, caminha para sê-lo, e os "pequenos" problemas sociais decorrentes da má distribuição de renda serão, um dia, solucionados.

    EEste é o mote dos atualmente chamados liberais e neo-liberais, difundido aos quatro ventos pela mídia comercial, dos FCH amados pelos pretensios Kadayans e divinamente aureolados pelos bancos, e tendo seu ápice de influência e hipocrisia na ascenção fraudulenta de Bush. O pensamento contrário, seja em âmbito pessoal, ou político, não é proibido (afinal, dirão eles, estamos num mundo "livre"), mas acaba por ser trabalho pela mecânica da situação dominante, maquiado e dado ao público de uma forma caricata que acaba por levar as vozes mais sérias da esquerda a um isolamento público ou à quase clandestinidade. Ainda assim, falam os ilustres membros neoliberais que vivemos em uma era de liberdade de expressão....  Ou, como fala o jornalista que demonstrou a farsa da eleição de Bush, Greg Palast, da era da "Melhor Democracia que o Dinheiro Pode Comprar" - livro que virou Best Seller nos EUA, ao lado de "Stupid White Men, uma Nação de Idiotas" de Michael Moore, (veja-se, deste diretor, o excelente documentário Sicko, sobre a comercialização absurda da saúde nos EUA) e que cita inclusive as falcatruas e os escândalas do gerente do neoliberalismo entreguista, FHC (para una análise da doação-privatização-entrega do patrimônio brasileiro por FHC, clique aqui). Estes dois excelentes livros foram publicados no Brasil pela mesma editora, a Francis.

   A este respeito já apontava o poeta Pablo Neruda, em 1950:

La United Fruit Co.


Quando soou a trombeta, estava
tudo preparado na terra,
e Jeová repartiu o mundo
entre a Coca-Cola Inc., a Anaconda,
a Ford Motors, e otras entidades:
Para a Fruit Company Inc.
se reservou o mais suculento,
a costa central de minha terra,
a doce cintura da América.

Batizou de novo suas terras
como "Repúblicas de Bananas,"
e sobre os mortos dormidos,
sobre os heróis inquietos
que conquistaram a grandeza,
a liberdade e as bandeiras,
estabeleceu a ópera bufa:
alienou os arbítrios
deu de presente coroas de César,
desenvolveu a inveja, atraiu
a ditadura das moscas,
moscas Trujillos, moscas Tachos,
moscas Carías, moscas Martínez,
moscas Ubico, moscas úmidas
de sangue humilde e geléia,
moscas borrachas que zumbem
sobre as tumbas populares,
moscas de circo, sábias moscas
entendidas em tiranía.

Entre as moscas sanguinárias
a Fruit desembarca,
arrasando o café e as frutas,
em seus barcos que deslizaam
como bandejas o tesouro
de nossas terras submergidas.

Enquanto isso, pelos abismos
açucarados dos portos,
caíam indios sepultados
no vapor da manhã:
um corpo roda, uma coisa
sem nome, um número caído,
um cacho de fruta morta
derramada na podridão.

    Tal estado de coisas se sustenta com base na mentira, na força e no conluio de uma minoria cada vez mais minoria, não obstante cada vez mais forte e mais cínica. Vejamos isso em um excelente artigo (póstumo) do lúcido historiador e jornalista Décio Freitas, falecido dia 09 de março de 2004, mas publicado no dia 14 do mesmo mês:

HORIZONTE VAZIO
DÉCIO FREITAS

(Publicado em 14 de março de 2004)

    Decerto não é preciso pesquisa de opinião para saber que a esmagadora maioria da sociedade brasileira não deseja trocar o atual regime democrático por um regime autoritário, como aquele cujo 40º infeliz aniversário este mês se assinala. Ditaduras são cada vez mais coisa do passado e candidatos a ditadores estão desempregados. Não quer isso dizer, porém, que as pessoas estejam satisfeitas com o regime. Têm sobradas razões para estarem insatisfeitas com o regime. Para começar, não temos uma democracia de boa qualidade, aquilo que chamam de "democracia avançada". Falta-nos uma tradição democrática, pois o regime só tem 15 anos de existência. Não temos economia desenvolvida e, sobretudo, justa distribuição da riqueza, de que é modelo a Noruega, o país mais rico do mundo e virtualmente uma sociedade sem classes, ao contrário de nós, com uma abjeta concentração da renda às mãos de ínfima minoria.

     A democracia, sabemos, não cria automaticamente riquezas. Nestes 15 anos, o PIB per capita teve crescimento medíocre, muito abaixo das necessidades e possibilidades do país e, no ano passado, a menos de zero. O presidente elegeu-se mediante o compromisso de acelerar o crescimento e ampliar o emprego. A manutenção da política econômica desastrosa do governo anterior constituiu uma punhalada pelas costas do eleitorado. A classe política é composta de fisiológicos, sob siglas que no passado foram até muito radicais, mas hoje são simplesmente conservadoras ou oportunistas. Alguns partidos exibem até mesmo características mafiosas. Os laços entre o povo e seus representantes estão se esgarçando, com um crescente vazio entre eles.

    Verdade é que a força do mercado global tende a aumentar em relação ao Estado-nação. Não escapam a este condicionamento sequer os países de democracias robustas. Os eleitores hoje elegem o governante e este é crescentemente governado pelo mercado global. Basta que certas grandes empresas ou especuladores financeiros ameacem sair do país para que o governo se dobre. Além do mais, os eleitores sofrem crescentemente restrições e limitações por parte de convenções e tratados internacionais em que não foram ouvidos.

    Nem mesmo a maior economia do mundo se subtrai às manobras perversas da globalização. Suas maiores empresas manufatureiras emigram em busca de trabalho mais barato. Assim, os negócios adquiriram poder de veto na política econômica, migrando para países onde a mão- de-obra é mais barata. Mas duas coisas se passam nestes países ricos que inexistem em países subdesenvolvidos. O primeiro é que suas populações já gozam de alto padrão de vida, que não se reduzirá a uma miséria comparável à dos países atrasados. Em segundo lugar, mantêm certa dignidade. Não fazem como o presidente brasileiro, que há dias, num churrasco ao diretor-gerente do FMI, pediu-lhe que permitisse investir dinheiro - o dinheiro dos nossos impostos - em escolas, saneamento, rodovias etc. Outro ganhador com a globalização é a mídia. Ela ganha força política, estabelecendo a agenda e orquestrando os assuntos.

    Num país com imensa massa de eleitores analfabetos e analfabetos funcionais, politicamente imaturos, a mídia impressa exerce influência relativa. Mas em países de democracia avançada, toda a mídia tem um imenso poder. É dizer que, em todo o mundo, amplia-se o déficit democrático.

    A maré do descontentamento começa a encher. Este descontentamento não é em nome de ideologia política ou de partido. Homem desempregado não é um homem livre e independente. Não protesta contra o sistema político, porque não acredita que possa fazer algo por ele. Sua chance de sobreviver reside no crime, numa guerra de guerrilhas contra o Estado, desmoralizado pela sua impotência de se defender e defender a sociedade. E assim, o povo, base de toda democracia, se lumpeniza. Cogita-se agora de tornar o sistema menos corrupto e mais genuíno o resultado dos pleitos, pela adoção das listas fechadas e do financiamento público das campanhas. Nas regiões semifeudais do país, principalmente o Nordeste, isso só servirá para aumentar o poder dos coronéis. O financiamento público, por sua vez, sobre significar aumento da carga tributária, não trará a compensação de eleições limpas. Num país de tão irrepreensível cultura de honestidade política como a Alemanha, vimos o chanceler Helmut Kohl, 16 anos no poder, sair desmoralizado pela descoberta de que recebia dinheiro de empresas privadas.

    Acredita-se mesmo que candidatos, além de forrar o poncho com o dinheiro público, abster-se-ão de achacar grandes empresas? Uma das falhas da nossa cultura política é crer que se pode mudar a realidade com leis. Tal como estão as coisas, o futuro é um horizonte vazio.

    As formulações dominantes kadayanianas sobre a "fundamental correção" e "impossibilidades de outras vias além do da" economia global e seu braço armado, a "Pax Americana" são elaboradas e distribuídas de cima para baixo, vale esclarecer, dos países hegemônicos do Norte, em especial Estados Unidos e Inglaterra, justificando a situação do mundo, onde 23 % da população do planeta (em uma junção da população dos 9 países mais ricos do Planeta) consomem cerca de 67% das riquezas produzidas pelo planeta, globalmente, em um ano,  e ampliam as distâncias entre países ricos e pobres a uma taxa horrendamente acelerada. As explicações formuladas claramente são construídas no sentido de manter e justificar o processo, que são de seus interesses, desprezando, negligenciando ou zombando de leituras divergentes das mesmas, feitas sobretudo por vozes não concordantes com o processo de globalização no primeiro mundo, e por muitas outras dos países do Sul e dos do Norte não participantes da ciranda de exploração e expropriação levado a cabo por seu vizinhos mais ricos.

  :  Como "neoliberalismo" e "globalização" são duas palavras cosméticas para a velha usura e exploração, cabe aqui a reflexão do jornalista Sebastião Nery:

   

Agiotas globalizados


    Eles são satânicos. Alugam, compram, corrompem a imprensa, economistas, analistas, assessores e consultores, inventam e impõem palavras novas para tentar disfarçar velhos crimes deles contra a humanidade. Colonialismo virou imperialismo, depois mundialização e afinal globalização. Desde a Bíblia, agiotagem era usura. Virou banca, investimento financeiro, agora é rentismo. Está todos os dias nos colunistas venais. Rentista é o agiota com a fatiota de patriota para enganar a patota idiota.

    O grande teólogo brasileiro Leonardo Boff, ao analisar a explosão de violência terrorista no mundo, e sua ligação com o processo de globalização, esclarece brilhantemente esta questão:

    Cabe enfatizar o papel deslanchador de fundamentalismo que o tipo de globalização econômico-financeira imperante está produzindo em todo o mundo. Esse processo é ilusoriamente feito em relações de interdependências, mas, na realidade, de dependências dos grandes conglomerados globais e dos capitais especulativos que dominam as economias periféricas, desestabilizando-as segundo seus interesses particulares, sem qualquer preocupação pelo bem-estar dos povos e a sustentabilidade do planeta, e criando milhões e milhões de excluídos.

    A nova ordem surgida após a implosão do mundo do chamado mundo socialista não melhorou, como prometia os arautos do mundo capitalista, a situação do mundo. Ao contrário, radicalizou as contradições internacionais e internas. Ademais, o fosso entre riqueza material e pobreza material aumentou. O estado da Terra, em conseqüência da ganância e busca desmedida de lucro, é dramático. As promessas de Paz duradouras (em um sistema em que a indústria bélica é extremamente lucrativa)  esvaneceram-se logo. A lógica individualista e não-cooperativa da cultura do capital corrói os laços humanistas de solidariedade entre os povos, imersos na competitividade mercantilista, exacerbou de forma extrema o individualismo, tentou destruir o Estado, visto como obstáculo à expansão dos capitais pondo em seu lugar os interesses de grandes multinacionais, e tenta desmoralizar a política como busca comum do bem do povo, transformando-a em busca do bom funcionamento da expansão de um único mercado mundial, com um único pensamento econômico, ou seja, da globalização" (Leonardo Boff, Fundamentalismo, A globalização e o Futuro da Humanidade, Ed. Sextante, 2002, pp. 33-34).

   A ganância econômica possui um braço político cada vez mais visível, ainda que cade vez mais cínico, com irrefutáveis toques fundamentalistas à Ética Protestante. A direita norte-americana de Bush é bom exemplo disto. Sua ideologia e planos de ação fica extremamente visível no seguinte artigo do jornalista Argermiro Ferreira, correspondente internacional, publicado no jornal Tribuna da Imprensa do Rio de Janeiro, em 25/03/2004:

Dick Cheney e a nova estratégia de dominação mundial dos EUA

    O último ataque do vice-presidente Dick Cheney ao candidato John Kerry, da oposição democrata, é mais do que mero golpe eleitoreiro de alguém que fugiu do serviço militar à época do Vietnã (o próprio Cheney, alegando ter "outras prioridades") contra um herói militar legítimo - voluntário que lutou na Ásia, voltou com o peito cheio de medalhas e foi para a rua protestar contra a guerra que considerava um erro (John Kerry).

   Contra Kerry, acusado de "fraco" em defesa e segurança nacional para enfrentar o terrorismo, o falcão que ainda repete a mentira das armas do Iraque retoma o discurso de uma nova Guerra Fria. Já não invoca o fantasma do "império do mal" comunista. Na embalagem nova, amedronta a nação com outro "mal", o terrorismo, para manter ou elevar o orçamento militar multibilionário e garantir a supremacia militar no mundo.

   As imagens das torres em chamas e do Pentágono atingido ajudaram a falsificar a de George W. Bush, outro que teve proteção para fugir do serviço militar, como uma espécie de herói de guerra. Se ele continua a ser o terno vazio com o bolso recheado com milhões de dólares, como em 2000, Cheney é bem mais do que isso - é um dos formuladores do novo pensamento militar e estratégico de dominação mundial.

A visão estratégica dos "neocons"

   A estratégia de segurança nacional do governo Bush já existia antes dos ataques de 11 de Setembro - antes mesmo de a direita republicana recrutar o atual presidente, de recursos intelectuais limitados, para o papel que desempenha agora. E Cheney, secretário da Defesa no primeiro governo Bush e um dos arquitetos da Guerra do Golfo de 1991, foi partidário da estratégia desde que ela começou a ser formulada.

   Enquanto alguns sonhavam com potenciais efeitos positivos do fim da Guerra Fria e da ameaça vermelha, que justificara os orçamentos da corrida armamentista que se seguira à II Guerra Mundial, o sonho do complexo militar-industrial era outro. Uma nova visão de política externa emergia no grupo de ideólogos neoconservadores (os "neocons") que serviram ao primeiro Bush e voltaram com o segundo.

   Obviamente não estavam alheios a ela as poderosas corporações de petróleo com grandes interesses no Oriente Médio ou com seus próprios planos potenciais para essa região, da Chevron à Haliburton, passando pela Bechtel e outras, mais as beneficiárias de contratos bilionários do Pentágono. Não por acaso executivos delas passaram a integrar cargos críticos na atual equipe de segurança nacional.

Receita de uma nova Guerra Fria

   A receita ideológica assumida pelo atual governo, na política externa e na estratégia de segurança nacional, começou a nascer logo depois da primeira Guerra do Golfo, no grupo neocon de que participavam Cheney e seu chefe de gabinete I. Lewis Libby e onde se destacava o atual secretário Adjunto da Defesa Paul Wolfowitz - número 3 do Pentágono ao tempo de Cheney, número 2 sob Donald Rumsfeld.

   Eles redigiram em 1991 o documento Defense Planning Guidance (Orientação de Política de Defesa), que expressa uma visão de dominação militar unilateral dos EUA. A visão foi reciclada e aprofundada pelos mesmos neocons em 1997, com seu Projeto do Novo Século Americano (PNAC), retomando expressão lançada ainda na década de 1940 pelo fundador da revista "Time", Henry Luce.

   É sintomático que dois documentos do governo Bush produzidos como respostas ao desafio terrorista do 11 de Setembro, o secreto "Rebuilding America's Defenses: Strategy, Forces and Resources for a New Century" (RAD: Reconstruindo as Defesas da América) e "National Security Strategy" (NSS: Estratégia de Segurança Nacional), oficializem o que, na verdade, já estava no DPG e no PNAC, anos antes do 11/9.

   Fica claro, assim, que os ataques ao World Trade Center e Pentágono foram usados como pretexto pelos neocons, no governo. Impingiu-se, com base neles, a receita ideológica de uma nova Guerra Fria, garantindo a dominação global americana. Diz o NSS, ao expor os novos desafios à segurança nacional, que o inimigo já não precisa, como no passado, de grandes exércitos e capacidade industrial para por a América em perigo.

A doutrina, muito antes do pretexto

   Agora, segundo o NSS, grupos de indivíduos podem "trazer caos e sofrimento ao nosso território a custo inferior ao de um único tanque". Nessa guerra assimétrica (nova expressão do Pentágono), "os terroristas se organizam para dirigir contra nós o poder das tecnologias modernas". Mas a estratégia já existia antes do 11/9. Não se tentou adotá-la antes porque os neocons sairam do governo com a derrota de Bush em 1992.

   É compreensível a proliferação de teorias conspiratórias na Internet. Seria tão difícil arranjar pretexto para a nova doutrina como o foi para a Doutrina Truman em 1947, quando o governo, para convencer os americanos sobre a ameaça vermelha, teve de amedrontar o país - "scare hell out of the American people", conforme a frase célebre, na época, do republicano Arthur Vandenberg, que deu apoio a Truman.

    Osama Bin Laden, enfim, realizou o sonho dos neocons. A imagem das torres em chamas é ameaça até mais concreta, para os americanos, do que a do comunismo na Guerra Fria. Diante dela a Pax Americana, com guerras sem fim ("guerras perpétuas para paz perpétua", como disse Gore Vidal), ocupação militar, tropas espalhadas pelo mundo todo, garantindo os interesses econômicos, pode parecer menos criminosa.

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   O funcionamento do capitalismo em seus mais de trezentos e cinquenta anos de história modelou uma mentalidade mercantilista que há muito extrapolou a área comercial. O pensador francês Albert Jaquard já dizia com muita propriedade que o processo de busca do lucro pelo lucro em um mercado competitivo atingiu todos os setores de vivência humana em tal estágio de exagero, que as pessoas (igualmente transformadas em mercadorias e máquinas de competir) simplesmente estão brincando de roleta russa: "Os fundamentos de uma sociedade está nas relações e intercâmbios entre pessoas. Só existe sociedade se existe relação entre pessoas. Uma sociedade cujo motor é a competição e a esnobação como sinônimo de poder é uma sociedade que se propõe o suicídio. Se me ponho a competir com outros, não existe mais intercâmbio, mas apenas estratégias que permitem algum contato tendo por base o interesse. Não posso compartilhar, dividir, somar com ele, mas devo desconfiar de meu concorrente, sondá-lo, retirar dele o que me for útil, eliminá-lo e destruí-lo".

    Leonardo Boff, em seu livro citado, mais uma vez focaliza com muita propriedade o clima doentio da competitividade do capitalismo ao dizer que

    (...) a lógica intrínseca desse sistema não é a colaboração, mas a competição, como a firma George Soros, um dos mais ricos especuladores financeiros do mundo e um dos grandes pensadores do capitalismo do mundo atual, em seu livro A Crise do Capitalismo: se você quer buscar compaixão, compreensão, solidariedade, amizade e amor, não vá ao mercado, porque errou de endereço. No mercado é guerra de todos contra todos, um querendo derrubar o outro pela competição. A crise do capitalismo e uma crise do humano e decorre de tudo ter sido transformado em mercadoria, sem deixar qualquer lugar para a gratuidade, para aquilo cujo valor é sentimento e vivência, não matéria e não facilmente monetarizável: tomar uma cerveja com os amigos no fim de semana, sentar-se com a família e brincar com os filhos (...). O capitalismo mercantilizou tudo, dede o sexo até a mística, e não deixou espaço para a dimensão humana, sem a qual não nos sentimos realizados. É o espaço da gratuidade, daquilo que não é mercadoria" (Leonardo Boff, op. cit., p. 87).

     O sucesso do capitalismo de deve à sua eficácia econômica: a velocidade em que se produz e se consomem mercadorias, possibilitando o objetivo do máximo de lucro em um mínimo de tempo, racionalizando a produção e não levando em consideração aspectos psicológicos, ecológicos e humanistas envolvidos na mesma. Mas, perguntamos junto com Maurice Cury, escritor francês, na introdução ao "Livro Negro do Capitalismo", Editora Record, em benefício de quem e a que preço?

    É ainda esta autor francês quem continua:

    Após seu grande período de expansão no século XIX, devido à industrialização feroz e à feroz exploração dos trabalhadores [que incluíam velhos, mulheres e crianças em jornadas que podiam ir até 16 horas diárias, sem direito à férias], o movimento [de globalização da economia] que se acelerou nas duas últimas décadas levou quase à extinção o pequeno produtor rural, devorado pelas grandes explorações agrícolas [ou pela ganância especulativa de latifundiários], trazendo consigo, além da instabilidade emocional, migrações desesperadas, poluição, a destruição de paisagens naturais e a degradação do meio-ambiente (e tudo isso a custa do contribuinte, uma vez que a agricultura foi sempre subsidiada); o quase desaparecimento do pequeno comércio, particularmente de alimentação, em benefício da grande distribuição dos hipermercados, a concentração das indústrias em grandes empresas nacionais, depois transnacionais que tomam tais proporções que chegam a ter tesourarias mais importantes que as dos Estados e até, por conta de seu poder, fazem as lei (ou pretendem fazê-la), tomando medidas para reforçar o seu poder sem controle, como por exemplo, através do Acordo Multinacional sobre o Investimento (AMI), acima dos estados (a United Fruit é patrão em vários Estados da América Latina).

     Os dirigentes capitalistas poderiam até temer que o desaparecimento do pequeno produtor rural e do pequeno comerciante, do artesão e da pequena burguesia industrial e comercial reforçasse demais, além da linha de segurança, as fileiras do proletariado, tendo como conseqüência um potencial aumento de poder político destes. Mas o "modernismo" mecanicista veio trazer-lhes o cabresto e o controle com a automação, a miniaturização e a informática. Após o despovoamento dos campos, assistimos agora o das fábricas e escritórios. Como o capitalismo não sabe nem quer partilhar o lucro e o trabalho (vemos isso nas reações indecentes e histéricas do patronato à jornada de 35 horas semanais - medida de resto bem tímida), chegamos inelutavelmente ao desemprego e ao seu séqüito de desastres sociais (Op. cit. pp. 17-18).

    Então, ao que vemos, o tal mundo livre não é tão livre nem tão natural assim, a não ser no discurso: monopólios, oligopólios, cartéis e atuações de várias multinacionais destroem a coesão cultural e a personalidade (se chegaram a ter ao menos um esboço de alguma) própria dos países do Terceiro Mundo, além de explorarem sem dó nem piedade os recursos naturais e humanos destes "países periféricos". A tal concorrência benéfica passa a ser fantasia diante das monstruosidades que são as mega-empresas transnacionais que podem, inclusive, ajudar e derrubar governos que julguem desfavoráveis aos seus interesses, seja de que ramo for, impondo preços e tarifas e condicionando o comportamento de indivíduos e grupos sociais. Se entre estes existem ainda pessoas que se ocupam do homem, aqueles se preocupam com a mercadoria. Aliás, estas só lhes trazem benefícios enquanto o homem só traz despesas e complicações. Afinal, já se ouvi falar de mercadorias que exijam justiça social? Concordando com Gilles Perrault, diria que os únicos balanços que valem alguma coisa nas frias planilhas e gráficos das empresas multinacionais são os balanços contábeis, demonstração do extremo racionalismo aplicado à máxima obtenção de lucros e nada de humanismo. Para os arautos bem nutridos do sistema, 

"só mesmo a arrogância fútil dos idealistas em querer mudar este estado de coisas, com as lamentáveis conseqüências cíclicas que já sabemos: revolução, repressão, decepção, contrição e a volta ao ninho capitalista. Eis precisamente o verdadeiro pecado original do homem: esse perpétuo bicho-carpinteiro que o leva a sacudir o jugo, a ilusão lírica de um futuro livre de exploração, a pretensão de mudar a ordem natural das coisas"(Gilles Perrault, O Livro Negro do Capitalismo, página 11)

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