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Utiariti - A última tarefa
Missionários e índios na ocupação de Mato Grosso


Joana A. F. Silva
Projeto de Pesquisa apresentado para a obtenção do título de licenciado e Bacharelado em História, Departamento de História, CLCH, UFMT, Cuiabá, Brasil
 

"Louvando a todos os nossos da Comunidade de Juruena e dando a Deus as devidas graças pelo espírito de abnegação e desapego dos cômodos da vida que neles se admiram, peço encarecidamente continuem a oferecer a Deus N.S. os numerosos sacrifícios morais e físicos que a dura vida de missionário lhes impõe, não só a fim de se santificar a si próprios, mas também e em modo especial, para alcançar a conversão sincera à fé católica dos infelizes pagãos para os quais se sujeitam os missionários a tamanhas provações...

Memorial do Juruena

 

Esta é uma contribuição ao conhecimento do trabalho missionário. Ao fazer um levantamento da vida dos índios na missão de Utiariti, pretendo desvendar um pouco do mistério que a cerca. Tal mistério deve-se, em parte, às condições precárias das estradas de Mato Grosso, que dificultavam o acesso e, em parte, ao fato de que até muito recentemente o arquivo da Missão Anchieta (MIA), que conta com um acervo avaliado em cerca de 10 mil documentos, ter sido absolutamente vedado à consulta pública. Isto promovia, em alguma dose, muita desconfiança acerca dos trabalhos e atividades que eram desenvolvidas pelos missionários.

A missão de Utiariti existiu em Mato Grosso mais ou menos entre os anos 1930 e 1970, no município de Diamantino. Utiariti, que dista cerca de 550 km de Cuiabá, é o nome de uma cachoeira no Rio Papagaio, lugar sagrado para a nação Paresi. Utia, quer dizer, sábio e haliti, gente. Para os Paresi, Utiariti #significa lugar de gente sábia. Há uma lenda que diz que os Utia eram um povo à parte da nação Paresi, que faziam previsões do futuro e viviam em um lugar atrás da cachoeira.
 

Os sábios entravam dentro do salto para colher cará, massa de amendoim, mandioca. Até hoje tem gente lá que não morre. Só que tem outro tipo de alma que pode encontrar com eles. Eles sabiam que vinha a missão, mas que depois ia acabar. ( mulher Paresi da aldeia Salto da Mulher, 1992).  O importante desta missão foi o número de grupos indígenas que abrangeu e o momento de sua atuação, que correspondeu à expansão das fronteiras ao norte do estado. Os Nambikwara, os Irantxe, os Paresi, os Rikbáktsa, os Apiaká e os Kayabi foram todos, com maior ou menor intensidade, envolvidos com a Missão. Importante perceber que todos os grupos indígenas envolvidos no Internato pertenciam a uma mesma região, qual seja, a do antigo município de Diamantino, que foi palco de lutas entre índios e seringueiros, quando da redescoberta e reativação dos seringais matogrossenses, após a Segunda Guerra Mundial.

O que destaca Utiariti frente a política jesuítica tradicional, que consistia em estabelecer reduções e catequizar; é o fato de ter sido principalmente dirigida para crianças, que eram mantidas em sistema de internato, separadas de suas famílias. Anteriormente as reduções envolviam o conjunto de uma aldeia, ou de aldeias, com famílias constituídas. Mas os jesuítas, bem cedo, já desde Sete Povos das Missões, percebiam nas crianças uma clientela privilegiada para a pregação doutrinária, por serem estas, no entender deles, mais moldáveis.

Ao conseguirem levar para o internato um grande número de crianças, os jesuítas criaram uma situação "interessante" e atípica em termos de poder no âmbito de situações de contato inter-étnico. Como representantes legítimos da sociedade nacional e seguidores da trilha aberta por Rondon - em sentido figurado e no físico - no norte do estado de Mato Grosso os missionários constrageram uma quantidade expressiva de crianças de diferentes origens culturais a conviverem entre si, graças a uma prática na qual a disciplina sempre foi a mestra principal. Como congênere desta, a clausura.

 

A PRELAZIA DE DIAMANTINO

Subordinada ao arcebispado de Cuiabá, a prelazia de Diamantino foi criada em 1929, através da bula Cura Universal Ecclesiae do Papa Pio XI, com o nome de Prelazia Nullius de Diamantino. Com um enorme território de 354 mil km2 , limitava-se ao norte com
 

Os estados do Amazonas e Pará; a oeste pelo Rio Juruena;a leste pelo rio Xingu e Culuene até o Ribeirão das Canoas; ao sul uma linha irregular cortando os formadores e afluentes do Paraguai, subia pela serra do Tombador, rio Cuiabá e rio Paranatinga para chegar no Culuene. (Padre Moura, na apresentação de Dornstauder, 1975: 03) A prelazia de Diamantino criou, em 1956, a Missão Anchieta - MIA-, entidade com fins sociais e filantrópicos para atuar junto à população indígena e regional., uma vez que havia uma preocupação acentuada por parte dos padres com os seringueiros e recém-chegados. Padre João (1975), por exemplo, expressa muita simpatia pelos seringueiros, e os vê mais como vítimas de empresas extrativistas do que como vetores de problemas e mortes para os povos indígenas da região. Além da Missão em Utiariti, a MIA era também um centro de catequese volante, destacando-se através da assistência religiosa a regionais e a aldeias indígenas

A Missão Anchieta entrou na região num momento de fratura da antiga ordem das sociedades indígenas do norte de Mato Grosso: as nações Paresi, Kayabi, Apiaká, Irantxe, Rikbáktsa e Nambikwara passavam por epidemias, guerras inter - grupais e guerras com os seringueiros. Tal situação formava o cenário para a entrada de missionários que conquistaram, com relativa facilidade, a confiança dos grupos indígenas. Os Irantxe, um caso mais extremo, já debilitados por uma epidemia de sarampo, ao se verem atacados por seringueiros e pelos "Beiços de Pau", grupo belicoso e rival, por volta de 1948 mudaram-se mais próximo à Missão de Utiariti para obter proteção e atendimento médico.

Inicialmente os jesuítas instalaram-se às margens do Rio Mangabal, sob o nome de Missão de Santa Terezinha do Mangabal do Juruena. O objetivo, naquele momento, era trabalhar com os Nambikwara, que não foram receptivos ao trabalho missionário. Com um sistema de vida semi-nômade, habituados a muita liberdade, o grupo recusou-se a se submeter ao império da Igreja, que implicava em disciplinas e #devoções às quais não eram afeitos. Os Nambikwara jamais permitiram que seus filhos permanecessem por muito tempo no internato e nunca se adequaram aos métodos jesuíticos de educação. Entre 1930 e 1945 os jesuítas tentavam catequizá-los quando uma epidemia de sarampo grassou nas aldeias deixando muitos mortos. Os missionários resolveram, então, mudar a sede da Missão. Não existem muitas informações a este respeito, mas há indícios de que os Nambikwara afastaram-se da missão por atribuirem a epidemia de sarampo à presença dos padres, que teriam praticado feitiçaria. Os missionários, para justificar a transferência, diziam que Utiariti apresentava melhores condições para o estabelecimento de uma missão do porte que se pretendia: terras mais férteis, localização mais adequada, queda d'água suficiente para gerar energia elétrica e, possivelmente, um local mais estratégico para atingir mais grupos indígenas.

Em 1945, quando se transferiram para lá, havia um posto de telégrafo instalado por Rondon, além de encontrarem, trabalhando junto aos índios e aos sertanejos, a Inland South American Missionary Union - ISAMU- missão protestante, com a qual estabeleceram certa rivalidade pelo controle sobre os índios que viviam na região. No dizer de Padre Moura (apud Maciel, 1992:25) havia uma "disputa natural" entre ambas missões e o índio fazia o lance do leilão. Corriam para quem dava mais. Os protestantes, por sua vez, procuravam fazer com que os índios desacreditassem dos padres, dizendo que eram "pagãos" e que não conheciam Cristo. Relatos informam que os protestantes arrancavam medalhas dos pescoços dos índios. Levi-Strauss, que teve contato com estes protestantes, expressou muita preocupação porque, de acordo com ele,

as missões protestantes americanas que tentavam penetrar no Mato Grosso Central, por volta de 1930, pertenciam a uma espécie particular: os membros provinham de famílias camponesas do Nebrasca ou dos Dakotas onde os adolescentes eram educados numa crença literal no inferno e nos caldeirões de azeite a ferver. Alguns deles tornavam-se missionários como quem faz um seguro. Assim, tranquilizados contra a sua salvação pensavam nada melhor terem a fazer para a merecerem; no exercício de sua profissão davam provas de uma dureza e de uma desumanidade revoltantes. (1955: 358 e 359) Utiariti, apesar de ser um internato para crianças indígenas, no meio da selva, distante de cidades, isolada do resto do mundo, guardava todas as características do que Goffman ( 1974:17) conceituou como instituição total . o aspecto central das instituições totais pode ser descrito com a ruptura das barreiras que comumente separam essas três esferas da vida. Em primeiro lugar, todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única autoridade. Em segundo lugar, cada fase da atividade diária do participante é realizada na companhia imediata de um grupo relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto. Em terceiro lugar, todas as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários, pois uma atividade leva em tempo pré-determinado, à seguinte e toda a sequência de atividades é imposta de cima por um sistema de regras explícitas e por um grupo de funcionários. .. Em Utiariti havia coincidência de pelo menos três tipos puros de instituição total, descritos por Goffman. Primeiro, pessoas incapazes de cuidarem de si mesmas; o argumento principal dos missionários era que o internato apenas recebia crianças orfãs, o que nem sempre converge com as informações de ex-internos. Como a história do internato coincide temporalmente com as grandes epidemias e com desarticulações das ordens tradicionais dos povos da região, o argumento de cuidar e internar orfãos, que de outra maneira não teriam como sobreviver, era imbatível. Segundo, tinham a intenção de realizar alguma tarefa de trabalho ( quartéis, escolas, etc). Aqui também coincide a intenção de educar e preparar as crianças para integrarem o chamado mundo civilizado. E o terceiro tipo, eram estabelecimentos destinados a servir de refúgio do mundo, tais como abadias, conventos, claustros: Utiariti, é bem verdade, tinha característica de um mosteiro de padres, através do isolamento do mundo externo, do internamento e das feições religiosas.

Outros detalhes em Utiariti mostravam com clareza o seu caráter de instituição total, algumas vezes levados ao extremo. A separação do restante da sociedade, normalmente através dos muros, ali se dava pela presença de matas, rios e cachoeiras que isolavam as crianças do mundo de suas aldeias, isolamento não apenas dado pela distância geográfica, mas pela presença de obstáculos físicos quase intransponíveis, pelo menos para a grande maioria delas. A separação da família, o isolamento do mundo externo, aspectos decisivos para o controle do interno, também ocorria em Utiariti com muito violência. Alguns hoje denunciam esse isolamento ao relembrar que podiam encontrar suas famílias apenas uma ou duas vezes por ano. Não é difícil imaginar como se sentiam os pequenos internos: longe de casa, dos pais, eventualmente orfãos, convivendo com mortes por ataques ou por epidemias em seus grupos de origem, de certa maneira emparedados sob um rigoroso regime disciplinar, obrigados a falar uma língua estranha e a obedecer a regras e comportamentos, horários, em tudo alheios ao que lhes era familiar.

A uniformização dos internos, aspecto crucial para o controle sobre os mesmos, em Utiariti passava pela tentativa, ou pela eliminação de fato, de traços diacríticos que contribuíam para que cada criança fosse identificada com seu povo de origem. Enfeites, cortes de cabelo, comportamentos, alguns dos elementos importantes para a construção de identidades, tinham que ser rapidamente eliminados, para que houvesse uma homogeneização, uma certa eliminação de características que eventualmente pudessem servir de defesa para as crianças -individual ou coletivamente -, ou de elementos para rebeldia.

Como se verá adiante, os depoimentos de ex-internos e os fatos principais que guardaram na memória, são muito enfáticos ao salientar justamente os elementos que caracterizam as instituições totais: o controle de atividades, do horário, até mesmo da supressão da comunicação verbal nas línguas originais das crianças. Goffman afirma que as instituições totais são estufas para mudar pessoas e que cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer com o eu. Alguém que já foi internado em uma instituição total, para sempre será um ex-interno. Sua identidade pessoal sempre estará mesclada com a informação de que foi "detido" em tal ou qual instituição. As marcas recebidas para sempre estarão impressas na vida e na personalidade do ex- interno.

Machado (1994), em seu estudo sobre as relações inter-étnicas entre os Paresi e a sociedade nacional, vistas através da ótica da passagem da Comissão Rondon para a passagem das linhas telegráficas na região, chamou a atenção para a criação de uma nova identidade, após a passagem dos jesuítas por Mato Grosso: a de "índios da missão" . Uma espécie de identidade "trans-étnica" que supera as fronteiras da etnicidade para impregnar um grupo que foi submetido a uma mesma circunstância de subordinação, a uma entidade, que nada nada, representava a sociedade nacional, encravada dentro de um "país indígena" como era o norte de Mato Grosso. Se não for muito grosseira a comparação, uma espécie moderna de " cavalo de Tróia " .

O mundo dos internos dividia-se em dois, na realidade: o dos dirigentes e o dos dirigidos. Apenas os primeiros podiam manter contato com o mundo externo e a eles cabia a legitimidade do poder controle da ordem interna. A eles, e apenas a eles, cabia o direito de punir. Porém, em Utiariti, também os missionários eram submetidos à disciplina da ordem jesuítica. Por exemplo, uma das recomendações que se fazia aos missionários, era a de que usassem batinas ao saírem para visitas, com o objetivo de manter o decoro. Eles mesmos eram vítimas de suas regras, pois usar batinas no clima de Mato Grosso, não devia ser fácil. Porém, a batina deveria funcionar como uma espécie de marcador da distância social entre os padres e suas "ovelhinhas" e da hierarquia entre os mesmos.

Em contrapartida, havia a "mortificação do eu", relatada por Goffman ( idem: 29). No Memorial do Juruena, de 1936 ( em epígrafe ) há claramente uma alusão aos "sacrifícios morais e físicos" impostos à vida missionária, às tamanhas provações. Há um sentido de necessidade à renúncia aos confortos da chamada vida "civilizada" e à dedicação aos ofícios da fé. O eu dos internos era mortificado, mas também o dos dirigentes missionários. Mas não importava. O que importava era a fé, a salvação, através do sacrifício dos dirigentes e da obediência dos dirigidos. Tudo, afinal, por amor à civilização. Santificação de uns, etnocídio para outros, liberação de territórios para terceiros, com se verá .

Goffman chama de "exposição contaminadora" (ídem:31), uma variante da mortificação do eu, onde as fronteiras individuais são violadas, e onde determinados aspectos da coletividade têm que ser vividas, objetos e presença física devem ser divididos ou suportados. Essa exposição mortificadora deveria ocorrer com muita intensidade em Utiariti. Relembremos que crianças de grupos indígenas inimigos foram obrigadas a conviverem entre si, a dividirem tarefas, refeições, dormitórios, enfim, a manterem uma intensa convivência física com pessoas que talvez lhes fossem repulsivas. Quando adultos, muitas vezes foram obrigados a contrair alianças matrimoniais com estes mesmos inimigos. Há que se imaginar a sensação, a partir de uma citação de Goffman, de um entrevistado de um campo de concentração.

Deitavam-se duas pessoas em cada cama. E era muito desagradável. Por exemplo, se um homem morria, não era retirado senão depois de vinte e quatro horas, pois o grupo evidentemente desejava obter a ração de pão e sopa destinada a essa pessoa. .. E por isso a gente precisava ficar todo esse tempo na mesma cama com a pessoa morta. ( apud, Goffman, op. cit. :34). Evidentemente, o tipo de exposição a que as crianças eram submetidas em Utiariti não tinha o mesmo caráter evidenciado nesta fala; porém, poderia causar o mesmo mesmo sentimento de contaminação em uma criança indígena, conviver com um representante de um grupo inimigo.

 
O CONTEXTO DE UTIARITI

A região de Diamantino já no século XVIII havia sido palmilhada por garimpeiros; no início do século XX, a extração da borracha e da poaia atraiu um grande contingente humano. Porém, até a década de 60, sem contar a população indígena, desconhecida até então, calcula- se que viviam cerca de 62.000 pessoas, distribuídas entre os municípios de Diamantino, Chapada dos Guimarães e Barra do Garças. Portanto, população muito rarefeita.

Toda a extensa região do município de Diamantino era dominada por várias nações indígenas: Cinta-Larga no Aripuanã, cujo território era limítrofe com o dos Rikbáktsa, Paresi e Nambikwara, Münky, Enenawê-nawê, Irantxe e Beiços de Pau , Kayabi e Apiaká, todos vizinhos entre si.

No dizer do Padre João Dornstander, (S.J.)

Existe um cordão de índios, desde a beira do Juruena, no Oeste, até o Coluene, último formados do Xingu, no leste da prelazia. Do sul avançam seringueiros e a colonização, e do norte, por sua vez, os civilizados: é a hora dos índios: ou se rendem ou serão exterminados. É também a hora do missionário, e a última de nossa tarefa. (Arquivo MIA, 20/2/54) Os embates entre índios, recém-chegados e invasores dos territórios indígenas eram episódicos, porém violentos. A partir da década de 60, iniciou-se uma ocupação e colonização mais oficial do estado de Mato Grosso. A situação agravou-se mais com a construção e pavimentação da rodovia BR-364, que se transformou em uma via de entrada muito importante para o escoamento de migrantes provenientes de regiões do sul, sudeste e do nordeste. Este momento de maior afluxo de migrantes e de ocupação econômica coincidiu, justamente, com o desativação das dependências da Missão de Utiariti.

 
A VISÃO DOS ÍNDIOS

Do internato de Utiariti restam hoje apenas as ruínas. Ruínas de uma imponente estrutura mas, muito mais do que ruínas, restam lembranças, algumas muito tristes, povoando as mentes dos muitos adultos que, em outros tempos, quando crianças, viveram lá. No internato, grupos indígenas, antes hostis, foram obrigados a conviver entre si, como foi o caso de três grupos Rikbáktsa - do Juruena, do Sangue e do Arinos (cf.Arrruda, 1988:71), dos Kayabi com os Paresi e com os Nambikwara.

Importante dar a palavra aos índios, para que contem sua experiência e passagem por Utiariti. Por volta de 1963, Costa ( 1985) calcula, baseada em um relatório de trabalho de Utiariti, que havia 187 crianças indígenas internadas; oito padres e sete irmãs cuidavam de catorze criancas no Jardim de Infância e de 73 crianças que estudavam no primário. Curvo (1992) avalia que mais ou menos em 1967, o internato chegou a abrigar cerca de 300 internos. As meninas e criancas muito pequenas eram abrigadas junto com as irmãs, enquanto que os garotos eram alojados no mesmo prédio que os padres .

Tivemos a oportunidade, em trabalho de campo, de conhecer vários ex-internos, provenientes da nação Paresi, Irantxe, Kayabi, Nambikwara, de distintas aldeias. De uma maneira geral pudemos notar que, se por um lado as lembranças são penosas; por outro, eles manifestam respeito pelo trabalho dos missionários e mostram bastante ética ao se referirem a Utiariti. Algumas pessoas guardaram muito rancor, porém procuram expressar de uma maneira não muito violenta. Ademais há outro problema: várias aldeias ainda recebem equipes volantes da Missão Anchieta, que embora tenha alterado seus objetivos, continua praticando trabalho missionário, e os Rikbáktsa ainda contam, em seu território, com missionários jesuítas que são muito atuantes no tocante a questões de terras e educação.

Os missionários diziam que as crianças que foram levadas para o internato eram órfãs de pais falecidos em lutas intertribais, com seringueiros ou durante epidemias. Para os padres e irmãs, o que eles estavam fazendo era uma caridade. Porém, muitas vezes, a visão dos mais velhos e mesmo das crianças que foram levadas para Utiariti é outra. Parte dos entrevistados sentiu-se arrancado dos braços da família, muitos ainda quando bebês, outros entre cinco e sete anos.

.... com 5 anos eu fui para Utiariti, meu irmão tinha 8 anos. Padres tomaram de mamãe. ( mulher Paresi, da aldeia de Sucuruína) Todos relatam a desolação e o medo que sentiam no colégio, longe da família e sem poder relacionar-se com pessoas do mesmo grupo de onde eram provenientes. Não podia ficar dois, três meninos juntos. Era castigo na certa. Além do controle sobre o comportamento das crianças e do imperativo que os jesuítas tinham para impedir que laços culturais fossem mantidos e cultivados dentro do internato, para facilitar a evangelização e a integração das crianças, tanto às normas do colégio, como às da sociedade nacional, havia ainda preocupação com a sexualidade, sendo a visão católica a este respeito bastante conhecida: sexualidade e pecado andam de mãos dadas. Meninos e meninas na escola não podiam olhar para cima (mulher Paresi, 1992)

Quando as meninas estavam trabalhando no porto, fazendo farinha de mandioca, os rapazes não podiam chegar perto." Mais tarde fez lavanderia para as meninas não irem para o rio. (homem Rikbáktsa, 1992)

Se os padres pegasse nós conversando, era castigo na certa. nós não podia olhar do lado das menina que eles falava que nós tava namorando. (F.P., in Curvo: 1992:10)

Os relatos colocam maior ênfase na preocupação que os padres tinham com a homossexualidade dos meninos. A gente era pequeno, tinha medo de ir no banheiro e chamava um coleguinha e os padres suspeitavam da gente. Pensava que a gente transava com o coleguinha. A gente tinha que falar que fez para ganhar castigo menor. Se não falasse era pior. Eles dava surra. Teve criança que fugiu, atravessou o rio a nado e foi embora. Quando eles conseguiam pegar o fugitivo, era castigo duro mesmo. ( V.P. Jul.1992, apud Curvo, 1992, 20)
 
A ORGANIZAÇÃO INTERNA

Os elementos percebidos como fundamentais pelos jesuítas do internato de Utiariti eram o aprendizado de algum ofício e a escola : nela se ensinava o português, matemática, geografia, história, religião, artes e ofícios (tricô, corte e costura, bordado, artes culinárias para as meninas e para os meninos marcenaria, pecuária, serraria e mecânica). Porém, no entender de alguns ex-internos, estes saberes não tiveram utilidade.

Os índios trabalharam como escravos e os padres levaram as coisas em vez de deixarem. Treinaram e formaram os índios, mas isso não serve para nada, não tem utilidade. A pista de avião foi destocada a mão, fez pocilga, plantou seringa (ex- interno, residente em Utiariti, 1992) Alguns, porém, têm uma visão melhor : a missão foi tão bom prá nós, porque hoje tudo tem profissão, porque é alguma coisa na vida. Aprendia de tudo, costurar, bordar, cuidar de criança. Eu gostei muito. Nao acho nada de ruim. Eu acho que tem várias pessoas que passaram na época que era ruim, antes de 60, mas eu não tenho queixa. (R.P., 1991, in Curvo,1992, a:29) Outros, nem tanto: ... conseguimos um pouquinho de poder se virar no mundo dos brancos, entender um pouco melhor, mas é pouca coisa só. (V.C. 1991, In Curvo, 1992, a: 29). Algumas demonstrações de revolta referem-se ao fato das crianças desde muito cedo serem obrigadas a compartilhar os serviços de manutenção e funcionamento da missão, tais como cozinhar, lavar roupas, limpar, roçar, trabalhar na serraria, e etc. e ainda a trabalhar nas construções. Todas as dependências do colégio foram erguidas e mantidas graças ao trabalho dos índios que aí viveram. Algumas famílias que moravam próximas à missão, de acordo com os depoimentos, eram também obrigadas a participar dos trabalhos. Tinha vez que as Irmã mandava nós faze serviço ruim e nós falava que num ia fazê. Mas não adiantava nada. Elas obrigava a gente a fazê e se reclamasse muito, levava castigo ou apanhava,. (M.P. In Curvo, 1992:20 ) Quando perguntados sobre como era o castigo, respondem que Castigo era surra, serviço, ficar de joelhos. Estudar até mais tarde. ( Irantxe, 1992) Outros depoimentos explicam um pouco mais sobre os castigos, muito comuns na época. No internato tinha vários tipos de castigo. Tinha o de capinar o dia todo. Às vezes não davam comida, se você levasse castigo severo. Se você comesse tinha que ajoelhar uma hora em cima do cascalho. Se você tivesse amizade com uma menina ou com um rapaz, também era castigado. ( V.C. In Curvo, 1992, a.:22)

O castigo era tanto, que uma vez um guri de 7 anos fugiu de lá, de tanto apanhar. Ele gastou uma semana para chegar na aldeia. ( F. In: Curvo, 1992. a:22)

Na verdade, os métodos disciplinares do colégio eram muito rígidos e apenas foram abrandados a partir de meados da década de 60. Um método considerado corretivo em Utiariti foi o famoso "trenzinho", onde várias crianças eram castigadas em bloco; o detalhe é que uma deveria bater na outra com uma vara, de maneira que cada uma fosse surrada por todas as outras. Acreditava-se então, que a disciplina vista e aplicada sob esta ótica era fundamental para a manutenção da ordem no internato, acrescentando-se que o rigor disciplinar jesuíta é sobejamente conhecido por todos.

A disciplina norteava todas as atividades a que as crianças internas deveriam se submeter: horário para levantar, para trabalhar na roça ou em outras tarefas reservadas a eles, horário para o estudo, para missa, para banho. Enfim, durante todos os dias as crianças estavam sujeitas a uma disciplina rígida, inclusive para o estabelecimento das conversas, uma vez que falar a língua original também era objeto de repreensões e castigos. O fato dos missionários exigirem que a língua portuguesa fosse falada, em detrimento das línguas maternas das crianças, era certamente um dos instrumentos mais poderosos de controle sobre os internos. Não é difícil imaginar como deveria se sentir uma criança, arrancada dos braços de seus pais ou familiares, levada para um lugar com hábitos e língua completamente diferentes dos seus e sujeita a castigos.

Muitos dos que passaram uma parte de sua vida em Utiariti esqueceram seu falar materno, enquanto outros, que foram para lá muito crianças, foram aprender suas línguas depois de adultos, quando voltaram para suas aldeias de origem. É o caso de uma mulher Paresi que nos contou o seguinte:

Aprendi a falar a língua (Paresi) com o marido. As freiras não queriam que eu casasse com ele porque ele não tinha estudo. ( aldeia Salto da Mulher, 1992) Muitas crianças não suportavam o tipo de tratamento que recebiam dos missionários, por elas identificado como maus tratos, e procuravam fugir do internato e voltar para seus lares. Este é o caso de uma mulher que vive atualmente na aldeia do Cravari (Irantxe) e que fugiu de Utiariti com 8 anos. Eles davam castigo. Um dia saí com uma amiga pegar fruta no mato e ficou tarde. Fiquei com medo dos padres. Minha amiga voltou e apanhou. Eu fugi e fiquei três dias no mato, comendo frutinha e bebendo água das folhas. Já estava quase morrendo quando encontrei um posto do S.P.I. e a mulher do inspetor me acudiu. Até hoje não me arrependo. (1992) Em finais de semana as crianças tinham liberdade para fazer passeios nos arredores de Utiariti ou para sair à procura de frutas, mas As saídas eram marcadas no relógio, chegar fora do horário era castigo na certa. (1992, homem Irantxe) À medida que as crianças internas cresciam, era natural e inevitável que surgissem namoros e casamentos. Entrevistados de várias aldeias sugeriram que havia um controle sobre as possíveis uniões, ou seja, padres e irmãs procuravam determinar as futuras parcerias de acordo com o que consideravam um bom casamento. Além disso havia, é claro, o controle sobre o tipo de namoro que as pessoas poderiam ter e, pelo que os entrevistados contaram, pode-se compreender que as formas de controle eram parecidas com as utilizadas #pelas famílias brancas ?, em tempos antigos. Quando ia namorar, fica a freira e o padre, cada um de um lado para escutar o que ia falar. (mulher Paresi, 1992) Com relação a este controle sobre os namoros um homem protesta, em referência a recentes casamentos de alguns ex-padres que foram integrantes da Missão de Utiariti: os padres e as irmãs se casaram, porque trataram os índios assim? ( homem Irantxe, 1992) Como agravante, muitas vezes os casamentos patrocinados pelos missionários eram um problema para as famílias dos internos, pois tratavam-se de uniões entre grupos tradicionalmente inimigos. Pelo menos um dos depoimentos colhidos em campo, dá notícia de uma avó que se suicidou por este motivo.
 

A VOLTA PARA CASA

A partir de 1960, com a revisão das linhas da Igreja, após o Concílio do Vaticano II e da Conferência de Medellin (1968), a Missão Anchieta decidiu desativar gradativamente a estrutura de Utiariti. Houve, segundo indícios fornecidos por informantes,( Curvo, 1992: 03) uma divisão inicial quanto ao que seria melhor fazer: os jesuítas mais tradicionais optaram pela continuidade do Internato de Utirati, mas os mais progressistas tiveram mais peso na decisão. Porém, parece que os internos e as famílias que viviam em simbiose com a missão não foram informados das modificações dos planos e diretrizes missionárias. Pelo menos, várias pessoas com quem tivemos oportunidade de conversar, manifestaram desconhecimento. Em 1970, os internos foram obrigados a retornar para suas aldeias.

Até hoje o índio não sabe porque acabou. A desconfiança é de que os índios que estudaram iam se responsabilizar e eles quiseram espalhar os índios. (Paresi de Utiariti, 1992)

Eles não avisaram que ia acabar. Primeiro foi um padre embora, depois foi outro. Cada um que ia levava uma coisa embora. O primeiro padre levou a serra. O segundo irmão levou o laboratório do hospital. O terceiro padre levou a boiada em caminhões. E não falava nada para os índios. O quarto levou a máquina de arroz. Os índios trabalhavam com as máquinas. O último caminhão foi o Padre "tal" que vendeu. (Terena, 1992)

A explicação para entender o fechamento do colégio foi buscada em um acidente de carro; a desativação de toda esta estrutura foi entendida como uma iluminação que os padres tiveram e que resultou, para algumas pessoas, na volta da cultura indígena. Eles ( os jesuítas) foram lembrar que destruíram a cultura do índio quando tiveram acidente de carro em 1974, o padre Tomás, o Edgar e Schimidt ( esse morreu). Chamaram Xumrali para curar o padre com hemorragia. Tinha que colocar nome de índio senão não voltaria ao normal. No pesadelo, o padre percebeu e disse para Joaquim Zalaizoê. Ele que fez voltar a cultura do índio (Tomás ?) porque era muito importante. Aí acabou a missão e renasceu a cultura do índio. (mulher Paresi, 1992) O saldo, para alguns, do fechamento do internato, foi muito positivo. Foi uma beleza que acabou Utiariti, porque voltou a cultura do índio. ( homem Paresi, 1992) Porém, a maioria dos que tiveram que voltar para suas aldeias, depois de tantos anos de ausência, longe da cultura, dos parentes, terminaram por se sentir novamente desamparados e deslocados, conforme pode-se perceber do relato a seguir: A gente que morou em Utiariti desde pequeno, aprendeu tudo com os brancos. Aprendeu a falar português, a comer comida de branco, a rezar e tudo outras coisa. Quando voltamo pra aldeia, nós sentimos triste, né. Lá era tudo diferente. nós não sabia falar na língua, não gostava da comida de índio, não sabia cantá nas festa. Não sabia nada. Foi difícil de acostumá. (V.C. jul. in: Curvo, 1992,12) Várias pessoas, ao voltarem para suas aldeias de origem estavam, como se percebe, muito modificadas, e passaram por difíceis problemas de adaptação. Mas o mais complicado foi a não receptividade por parte de seus parentes. Não é difícil imaginar a reação dos que continuaram em suas aldeias, frente aos que voltaram depois de tantos anos confinados em Utiariti, educados pelos padres jesuítas e na religião católica: gestos, falas, roupas, tudo a denunciar a diferença que agora deveria ser abolida, em razão das diretrizes de autonomia ditadas pelos missionários. #

Primeiro a negação da cultura , todo o esforço em separar, modificar, apagar. Agora, a afirmação da diferença, a valorização do outro, a política de conferir o direito à autonomia e à autogestão de destinos pessoais e grupais. Porém, o que fazer com a fratura causada por todo processo histórico vivenciado pelos grupos indígenas durante a atuação da Missão e pelo processo pessoal dos que foram obrigados a crescer e viver sob a égide dos jesuítas durante tantos anos ?

Os que voltaram para suas aldeias, principalmente os que se envolveram mais com a maneira de ser ensinada pelos missionários foram discriminados e tiveram, como ficou explícito através de depoimentos, muita dificuldade de integrar-se ao grupo. O mais difícil, para eles, era entender porque houve esta mudança tão brusca. É verdade que as intenções foram boas; afinal, a Igreja compreendia que seu papel de intermediária da "civilização" com os índios não era o mais razoável. Porém, a mudança em suas propostas não deixou de continuar autoritária. Ao decidir pelo fechamento do colégio e pela desativação das instalações de Utiariti, arrogou-se novamente no direito de determinar o destino das pessoas.

Os Nambikwara não conseguiram voltar porque perderam as terras. Os Irantxe também. Os Paresi não conseguiram voltar para Tangará e seguiram o outro lado do rio. Os Canoeiros passaram semanas até chegar no lugar que ficavam antes. (homem Irantxe, da aldeia do Cravari, 1992). Algumas pessoas, nas aldeias, chegam a responsabilizar os missionários por perdas parciais de territórios tradicionais. De fato, até a década de 60, não havia preocupação por parte da Igreja com a demarcação de territórios indígenas. Apenas após a década de 60 é que a Missão Anchieta passou a ter uma postura mais agressiva com relação à defesa de terras indígenas. Aparentemente, a visão missionária era a de que as terras ocupadas por povos indígenas não tinham donos. O Padre João Dornstauder expressou muita preocupação quando percebeu que a presença de seringueiros começava a aumentar; o Padre Moura, no prefácio para o livro "Como Pacifiquei os Rikbáktsa" afirma, talvez impensadamente, que " os donos das terras foram chegando (1975: 05), para referir-se à entrada de colonos no noroeste de Mato Grosso esquecendo-se, evidentemente, que estas terras eram imemorialmente ocupadas pelos povos indígenas que alí viviam.

Mas existem outros elementos importantes que resultaram na perda de terras dos vários grupos indígenas desta região. Os Irantxe, que desde o início do século foram atacados por seringueiros, passaram por epidemias, guerras com os Beiços de Pau, com quem disputavam território, e mais tarde vieram a sofrer vários ataques muito violentos de invasores de suas terras. Mais ou menos em 1940, os Beiços de Pau desferiram um grande ataque aos Irantxe e arrasaram suas aldeias, que eram em número de treze. Entre 1940 e 1948, os Irantxe, fragilizados e doentes, refugiaram-se em Utiariti. A versão dos missionários e dos próprios Irantxe sobre esta aproximação são muito coincidentes.

Atualmente este povo, com uma população muito reduzida, por volta de 150 pessoas, vive em duas aldeias- Paredão e Cravari - , bastante próximas as ruínas de Utiariti. Guardam uma memória muito dolorida deste período de perdas. Muitos deles casaram-se com mulheres de outras etnias (Kayabi, Rikbáktsa, Cinta-Larga e Paresi), seguem o catolicismo e freqüentam escolas. Porém, continuam identificando-se como Irantxe.

Uma parcela dos Irantxe permaneceu autônoma. São os Münky, um sub-grupo que entrou em contato com a sociedade nacional apenas em 1971 e que vive em uma área a 53 km do município de Brasnorte. Sob a custódia da Missão Anchieta, com a nova orientação, representam uma experiência paradigmática no sentido de estabelecimento de contato realizado com cuidado, sem o risco de epidemias ou problemas advindos de relações interétnicas, tais como o alcoolismo, prostituição, etc. A partir da desativação de Utiariti e de toda a reformulação do pensamento missionário católico, surgiu a proposta de "inculturação" ou a encarnação do missionário enquanto índio; a postura da Missão Anchieta entre os Münky tem sido a de proteção de suas terras e saúde. (Amarante, 1987: 89-91).

Mas, no dizer de Arruda, que estudou a Missão Anchieta, relacionada com os Rikbáktsa,

Em que pese as profundas alterações, o discurso e a prática jesuítica (e da pastoral indígena em geral) continua a manter a ambigüidade na sua base. Uma contradição entre os objetivos professos de desvendar nas culturas indígenas "as sementes do Verbo" e, ao mesmo tempo, respeitá-las na integridade de suas especificidade. Não podemos menosprezar o fato de que a reinterpretação teológica da noção de "encarnação" se funda num complexo de fatores. Ao nível dos interesses institucionais ela se configura como uma reelaboração estratégica da catequese. O intento final da "inculturação" continua a ser a evangelização dos povos indígenas, exercitada agora de uma forma bastante mais sutil. (Arruda, 1988:40). Os Rikbáktsa, de língua pertencente à família Macro-Jê, que vivem na bacia do Rio Juruena com uma população atual de cerca de seiscentas pessoas passam, desde o fechamento de Utiariti, por um processo muito interessante, registrado por Arruda (1992), onde valores tradicionais e novos convivem de uma forma muito aguda, através dos mais antigos que permaneceram em suas aldeias e dos mais jovens que voltaram do internato, com novos valores, porém desconhecendo sua história, língua e cultura.

Anteriormente ao contato, na década de 40, calculava-se que sua população fosse de mais ou menos 1.200 pessoas. Durante mais ou menos dez anos os Rikbáktsa lutaram bravamente para defender seu território da intrusão de seringueiros. O contato deste grupo foi realizado oficialmente em 1956 pelo padre João Dornstauder, da Missão Anchieta, com o patrocínio de seringalistas da região. (Dossiê, 1987:121). Neste processo de "pacificação", que terminou em 1962, eles sofreram várias epidemias de gripe, sarampo e varíola, e sua população reduziu-se a 25% do contingente anterior. Também perderam 90% de seu território tradicional. A Missão Anchieta tem sido presença constante na vida deste grupo desde então, mantendo-se com um posto na aldeia principal dos Canoeiros (assim são chamados regionalmente) e visitando as demais. Porém, sua maior significação entre o grupo reside no internato de Utiariti, para onde foram levadas as crianças órfãs da guerra pelos seringais do Juruena. Após a redefinição da Igreja Católica, os missionários jesuítas que ainda trabalham entre os Canoeiros buscam mais efetivamente a proteção das terras, saúde e educação do grupo.

# Quanto ao grupo Nambikwara, que vivia próximo a Utiariti, de fato parece ter perdido suas terras vivendo atualmente em uma pequena aldeia Paresi. Porém o território Nambikwara mais tradicional está um pouco distante da região de Utiariti. Apesar de nunca terem se submetido aos jesuítas de Utiariti, tampouco deixaram de freqüentemente visitar a Missão e, no entender de Arruda (1988), em busca de ferramentas de ferro .

A nação Nambikwara mantém contatos com a sociedade abrangente desde o século XVIII; viram e enfrentaram levas de garimpeiros já no século XX, além de seringueiros e poaieiros e, a partir de 1970, com a rodovia BR-364 e a execução do Projeto Polo Noroeste, por agropecuárias

Os Paresi, que vivem a sudoeste de Mato Grosso, estabeleceram contato com a sociedade abrangente há 260 anos atrás, através de bandeirantes que entraram pelos sertões a procura de índios. Mais tarde, o apresamento em combinação com a mineração fez com que o território Paresi fosse continuamente palmilhado por exploradores e garimpeiros. No século XIX, os seringueiros e poaieiros que invadiram seus territórios estabeleceram com eles relações muito violentas, o que quase provocou a extinção de todos Paresi.

No início do século XX, Rondon cortou o território Paresi com o objetivo de implantar as linhas telegráficas para comunicar Mato Grosso e Amazônia. Esta travessia em seu território trouxe conseqüências em vários níveis para os Paresi - desde seu envolvimento como trabalhadores das linhas e posteriormente na sua manutenção, modificação da localização das aldeias, introdução de novos hábitos, de novas necessidades e mesmo difusão de epidemias (cf. Machado, 1994).

A partir de 1946, os Paresi entraram em contato com os jesuítas, na antiga estação telegráfica de Utiariti. Com a desativação do internato, os missionários passaram a trabalhar diretamente nas aldeias, em consonância com a nova proposta da Missão Anchieta.

Os Enenawê- nawê, ou Salumã, que vivem na margem esquerda do Rio Iquê, parecem ter parentesco com os Paresi e se supõe que tenham se separado deles em tempos imemoriais. Por sua localização, ficaram bastante protegidos das mazelas que atingiram seus irmãos e demais povos indígenas do norte de Mato Grosso. Foram contatados em 1974 pela Missão Anchieta e juntamente com os Münky constituem-se em exemplos paradigmáticos de contato cuidadoso; quando contatados tinham uma população de 100 pessoas e em 1987 , este número havia aumentado para 174. (cf. Dossiê, 1987: 86). Em 1977, a OPAN - Operação Anchieta - substitui a presença da MIA junto aos Salumã.

Os Kayabi, de língua Tupi, vivem atualmente em uma pequena área às margens do Rio dos Peixes, em Reserva Indígena ao Sul do Pará e no Parque do Xingu. Eles são citados, no século XIX , como "bravos e indômitos", porque resistiam à entrada de não índios em seu território que se espraiava pela bacia do Rio dos Peixes e no Rio Verde. Aparentemente, em meados do século XX ocorreu o contato pacífico; uma parcela de sua população foi transferida para o Parque do Xingu em 1970. Com a criação do PIN - Plano de Integração Nacional, com recursos para a integração da Amazônia e com a criação da SUDAM - Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia - que financiou a instalação de fazendas e de empresas agro-pecuárias, as sociedades indígenas do norte de Mato Grosso viram aumentar a pressão sobre suas terras. É neste mesmo contexto que os Suyá foram transferidos para o Parque do Xingu.

As notícias sobre os Apiaká, também de língua Tupi, ao contrário da dos Kayabi, dão conta de um povo de "índole branda". Com uma população (estranhamente) calculada entre 2.000 e 16.000, em relatórios de Presidente de Província no século XIX, atualmente não chegam a 50 pessoas. São muito citados por viajantes e suas aldeias foram espécie de entrepostos de abastecimento de alimentos para bandeiras, comerciantes e viajantes que adentraram o sertão de Mato Grosso(cf. Xavier:1991). Os Nambikwara e os Suyá atacavam os Apiaká e talvez por este motivo eles mantivessem relações amistosas com os não índios. Habitavam as margens dos rios Arinos e Juruena, mas hoje estão confinados em uma pequena reserva do Rio dos Peixes. Foram massacrados no início deste século por coletores de impostos do estado de Mato Grosso. Supõe-se que ainda hoje existam sub-grupos isolados e autônomos. Após o encerramento de Utiariti os Apiaká continuaram sendo assistidos pela Missão Anchieta, principalmente no que tange à saúde e à educação.
 

CONCLUSÃO

Ironia ou não, de fato a atração dos povos indígenas na região de Utiariti foi a última tarefa dos jesuítas tradicionais em Mato Grosso. Os Münky e os Enenauê-nauê, atraídos mais tarde, não têm maior significação em termos de volume populacional ou de área ocupada. Por outro lado, não deixa de impressionar a área percorrida pelos missionários e ainda que tenham atraído quase todos os grupos indígenas que viviam ao norte do estado. Pela atuação da Missão Anchieta, se assim quiser ser pensado, um vasto território indígena foi liberado para a ocupação de seringueiros e fazendeiros. De alguma maneira as políticas nacionais casaram-se com a atuação missionária. "índio pacificado" é igual a território liberado.

Quando, após a década de 60, com o fechamento do internato uma massa de jovens regressa para suas aldeias porque a Igreja decidiu que, a partir de então, os índios deveriam ter autonomia e gerenciar seus próprios destinos, já era muito tarde. Internos haviam perdido todo contato com a realidade de seu povo. Afinal, haviam sido criados sob os dogmas e sob a disciplina institucional da Igreja Católica. Por outro lado, os parentes e os demais que permaneceram nas aldeias no mesmo período, sofreram ataques, guerrearam, perderam terras, passaram por epidemias. Tampouco os remanescentes Rikbáktsa, Kayabi ou de qualquer outro grupo, eram os mesmos; o tempo passou e talvez não tenha passado da melhor maneira possível. Alguns grupos, em função da política indigenista, foram separados, divididos e distanciados entre si. Os territórios diminuídos, fragmentados ou deslocados, transformados em terras "indígenas". Mesmo as próprias condições históricas,ao nível interno das sociedades foram diferenciadas, como é o caso dos Paresi, separados dos Enenauê-nauê e dos Irantxe, separados dos Münky.

Para sobreviver, os grupos indígenas de Mato Grosso que estiveram sob o domínio dos jesuítas tiveram que redefinir inúmeros aspectos de sua cultura, reprocessar informações, hábitos e mesmo suas identidades. Mesmo que a Igreja Católica tenha decretado uma volta ao passado, este já estava morto. Mas uma vasta extensão de terras do estado já estava liberada para a ocupação consoante a política nacional.

Para terminar, devo dizer que a visão missionária da Missão de Utiariti, continua um mistério para todos nós. Zelosamente este segredo vem sendo guardado e a documentação oferecida ao público pelos atuais guardiões dos documentos não contribui muito para o conhecimento desta visão. Como a alteração das diretrizes missionárias católicas é recente, a maior parte dos missionários que trabalharam em Utiariti ainda estão vivos e viveram este período de transformações. Isto significa que conviveram com as posições mais tradicionais da Igreja Católica, onde os índios eram ainda tidos como pagãos a serem cristianizados e selvagens a serem civilizados. Com a Teologia da Libertação, e com o contato de padres com a antropologia, estas posições foram alteradas e é possível que a política tradicional da Igreja cause constrangimento aos ex-missionários de Utiariti.

De qualquer maneira, o estudo desta missão pode fornecer mais alguns elementos para que se compreenda as formas de contato interétnico, em uma situação concreta, a que foram submetidos os povos indígenas brasileiros. O desvendamento dos processos de contato mostra como as relações de poder ocorreram nesta região de Mato Grosso, e de que maneira, missionários católicos atuaram como intermediários entre a sociedade nacional e os povos indígenas, em especial entre seringueiros, governo, invasores (legítimos, na concepção missionária) e índios A pedagogia missionária pressupunha a docilização dos internos através de técnicas disciplinares e próprias das instituições totais. Porém, não previa a alteração dos rumos das diretrizes eclesiásticas, ditadas através do Vaticano II e de Medellin. A ação, a partir daí, modifica-se. A diferença cultural, a autonomia, a liberdade passam a ser enfatizadas.

Podem ter vindo muito tarde estas novas posições?


 
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