A Mãe


Abtu, Alto Egito - 2991 a.C.

A estação de Peret terminou feliz para a família de Epher, escriba-sacerdote do templo de Khentymentyou. Mahkret, sua esposa, estava cada dia mais saudável e continuava a amamentar a pequena Akh Kheper-Apet. Heka Ma'At começava a frequentar as aulas da escola de escribas do templo (1), tendo Diankós, o melhor amigo de Epher, como mestre. E como o profeta Maneshtu havia previsto, o rei finalmente concedeu a Epher uma merecida promoção, garantindo-lhe por decreto o cargo de profeta-mor do templo, na vaga que era do próprio Maneshtu, e com isso um salário melhor, bem como uma maior participação nos rendimentos e na divisão de donativos do templo. Maneshtu aposentou-se feliz, recebendo presentes do rei por seus serviços, mas seu melhor prêmio foi mesmo ter garantido a sucessão de Epher.

Ainda assim, ocorreram contratempos. Ao descobrir que Epher havia sido nomeado profeta-mor por indicação direta de Maneshtu, Mankherere tentou impedir a sucessão, alegando que, como escriba-sacerdote administrador dos oráculos, não havia sequer sido consultado e não aprovava a indicação. Era óbvio que Mankherere na verdade cobiçava o cargo para si mesmo, pois o profeta-mor era um sacerdote independente que respondia apenas ao sacerdote-mor, administrador-geral do templo de Khentymentyou, e nesse caso era uma figura de posição mais elevada do que a que Mankherere ocupava agora. Mas Maneshtu agiu com previdência e havia consultado o sacerdote-mor antes de pedir a sucessão, e cercou-se ainda de sacerdotes aliados, que enviaram cartas próprias ao rei endossando a indicação de Epher, portanto Mankherere acabou derrotado antes mesmo de começar seus protestos.

Epher e Maneshtu estavam cientes da oposição que Mankherere representaria daí para frente. Diankós também prevenia-se, pois sua amizade com Epher era conhecida e o pequeno Heka Ma'At, que agora frequentava o templo, estava sob seus cuidados. Por conseguinte, ele também passava a contar entre os inimigos de Mankherere. Um tanto desacostumado à politicagem, Epher viu-se obrigado a travar algumas pequenas batalhas administrativas contra Mankherere, mas nada que a influência de Maneshtu ou a esperteza de Diankós não pudessem resolver.

A seca estação de Chemu e a inundação dos meses de Akhet passaram sem maiores complicações até que, nas primeiras semanas da emersão de Peret, a bela Mahkret começou a apresentar sinais preocupantes. De repente seu leite secou e não podia mais dar o peito à pequena Akh, o que forçou Epher a contratar uma ama-de-leite que pudesse amamentar a menina pelos próximos dois anos, como era costume (2). Mahkret queixava-se de dores de cabeça e tonturas, principalmente quando Epher a procurava com carinhos, e sua pele já não apresentava mais o mesmo viço de antes. As criadas reclamavam que Mahkret não alimentava-se mais como costumava, rejeitando a comida, e com o tempo o caso agravou-se: Mahkret às vezes vomitava o pouco que comia. Tentando disfarçar seu problema, Mahkret esforçava-se por parecer bem na presença do marido e das eventuais visitas, mas Epher percebia que sua esposa também não dormia direito, e mais de uma vez acordou com os gemidos dela, após alguma festa em que haviam consumido vinho ou comido algo mais pesado. Logo profundas olheiras começaram a marcar seu rosto, e seu corpo emagrecia visivelmente.

Contudo, por mais que Epher se esforçasse em ajudar, Mahkret parecia cada vez mais disposta a ocultar o que a afligia. Diankós tentava manter Heka Ma'At o maior tempo possível na escola do templo, para não sobrecarregá-la, e pedia à esposa que a visitasse constantemente sob os mais variados pretextos, aproveitando-se de sua intimidade com Mahkret para tentar descobrir de que mal ela sofria. Mas nem Mahkret sabia ao certo o que se passava e sentia apenas que piorava rapidamente. O que mais a assustava era ver como seu corpo, antes tão saudável, agora lhe pregava peças e desobedecia-a, deixando-a fragilizada, frustrada e sentindo-se definhar a cada dia que passava. Mahkret chegou mesmo a sofrer alguns desmaios e começou a sentir fortes dores no ventre e na cabeça, mas tentava a todo custo evitar que alguém percebesse seu sofrimento.

Ainda assim, obediente, Mahkret tomava todos os remédios e poções que Epher lhe enviava do templo, visitava outros médicos conhecidos e orava aos deuses e parentes mortos, mas isso só parecia piorar seu estado. Ninguém podia definir o que a atacava por dentro, nem como curá-la, e Mahkret definhava diante de todos, fingindo-se forte e tentando enganar o destino. Até que, ao final da estação de Peret, Epher recebeu a horrível notícia dos oráculos, que agora ele próprio representava e interpretava: Mahkret estava às portas da morte, e nada poderia ser feito para salvá-la.

A profecia tomou-o de surpresa pois, por mais que visse os graves sinais de doença na esposa, Epher negava-se a acreditar no pior. Como a própria Mahkret negava estar tão mal, ele agarrava-se à esperança de um milagre, qualquer que fosse, que finalmente a curasse. E a desilusão, definitiva e arrasadora, prostrou-o ao chão.

Foi Diankós quem, num pressentimento súbito, decidiu procurar por Epher para comentar os progressos de Heka Ma'At na escola e encontrou o amigo largado, como morto, sobre o frio piso da sala principal dos oráculos.

- Que a luz de Rá nos ilumine! Epher, irmão! - precipitou-se Diankós, atirando-se sobre o corpo inanimado do amigo - Acorda, Epher, que ainda sinto vida em ti! Epher, irmão de meu coração, dá-me um sinal de que vives mesmo, ou morro contigo! Epher! EPHER!

Sacudido por Diankós, o profeta finalmente recobrou os sentidos e abriu os olhos. Mas logo Epher recordou-se da revelação dos oráculos e agarrou-se ao amigo, desabando em lágrimas doloridas.

- Diankós, irmão! - soluçou Epher - Ah, Diankós! Não sabes como sofro, e que os deuses jamais permitam que o saibas! Minha vida é só desgraça, meu irmão! Como sou infeliz!

- Que os deuses não ouçam tuas blasfêmias, Epher! - gritou Diankós, ainda branco do susto - O que se passou contigo, para deixar-te assim, às portas de Osíris? De que desgraças estás a falar, homem?

Epher levantou-se a custo, subitamente parecendo ter o dobro da idade que realmente tinha. Diankós conduziu-o até uma poltrona próxima e fez com que o amigo bebesse um pouco de vinho que estava ao lado do altar, pouco se importando que fosse vinho consagrado ou não. Os oráculos com certeza o perdoariam depois, o que preocupava-o agora era o drama terrível que via anunciar-se no olhar sofrido de Epher.

- Ah, Diankós, os oráculos deram-me horrível certeza! - Epher conseguiu enfim dizer - Minha Mahkret, minha doce Mahkret, está condenada! A doença de minha esposa não tem cura, Diankós! Que fizemos nós para merecer tamanha dor? Logo agora, que temos nossos filhos amados e vivemos melhor com o que ganho no templo? Por quê?

- Dói-me ouvir tal coisa, irmão! - Diankós sentia profundamente pela doença de Mahkret, mas de certa forma estava mais preparado para a notícia do que o amigo - Tua esposa é como uma irmã que aprendi a amar, e sofro também por ti, Epher! Não sei o que dizer-te, pois os deuses já te disseram tudo. Há algo que possa ser feito, ao menos para que Mahkret não sofra?

Epher limpou os olhos com as mãos, mas as lágrimas voltaram: não havia nada a fazer. Tentava concentrar as idéias a respeito da notícia, porém o que ocupava todo o seu ser era que perderia Mahkret, e seus queridos filhos ficariam órfãos, logo no momento mais próspero e feliz de suas vidas. Diankós correu a passar a tranca na porta da sala, para que ninguém viesse incomodá-los, e deu mais vinho a Epher, tentando reanimá-lo e fazê-lo contar tudo o que os oráculos haviam dito.

Os dois passaram parte da tarde trancados, e Diankós dispensou mesmo os alunos escribas que vinham bater à porta, preocupados com sua demora em voltar à escola. Só quando sentiu que Epher estava novamente em condições de apresentar-se com o mínimo de dignidade foi que Diankós destrancou novamente a porta, e mandou imediatamente recado a Maneshtu por um dos aprendizes, pedindo que viesse visitá-los. Epher solicitou a um sacerdote assistente que atendesse em seu lugar aos fiéis que procuravam os serviços do oráculo e, mandando aviso a Mankherere de que sentia-se indisposto demais para continuar as tarefas do dia, recolheu-se para uma sala particular com Diankós, à espera de Maneshtu.

O ancião correu o mais depressa que a idade lhe permitiu ao encontro de Epher. Foi Diankós quem o pôs a par das últimas profecias. Maneshtu, o olhar grave e triste, sentou-se pesadamente ao lado do ex-aluno, que amava como um filho, abraçando-o. Epher imediatamente recomeçou a chorar.

- Sinto muito que sofras dessa maneira, Epher! - disse finalmente o ancião - Sei que passaste por muitas provações e finalmente a vida te sorria, mas não podes fugir ao destino que te foi traçado, meu filho! Há muito eu mesmo já havia recebido a profecia da morte prematura de tua bela Mahkret, Epher, mas nada pude dizer-te então... Esta é a carga a que nós profetas somos obrigados por saber além do que é permitido aos mortais comuns, e precisas aceitá-la se queres manter tua sanidade e preservar teus filhos! Eu também não durarei muito a teu lado, e é preciso que encares estas perdas com o coração forte, Epher, pois muito depende de ti agora! Tens teus filhos pequenos, e deves cuidar deles também, lembras? Aproveita pois as horas que ainda restam ao lado de tua esposa para fazê-la feliz e garantir-lhe uma morte pacífica...

Com muitas palavras sábias e verdadeiras, Maneshtu conseguiu aos poucos aliviar o coração de Epher, e o próprio Diankós sentia-se melhor. Se o destino de Mahkret havia sido traçado pelos deuses, o máximo que poderiam fazer era amenizar-lhe o sofrimento e cuidar para que ela tivesse uma passagem breve e alegre para o reino de Osíris.

Maneshtu fez com que ambos prometessem silêncio sobre as profecias, para que nada chegasse aos ouvidos de Mahkret ou das crianças, perturbando-os antes da hora. Epher e Diankós concordaram, e Maneshtu pediu-lhes que mandassem avisá-lo imediatamente caso algo acontecesse, prometendo ainda enviar algumas poções à casa de Epher. Depois que o ancião partiu, os amigos conversaram ainda algum tempo, e finalmente buscaram Heka Ma'At na escola e partiram para casa, ao fim do dia.

Epher esforçou-se por disfarçar a dor que sentia, principalmente ao rever Mahkret em casa, cada vez mais pálida e abatida. Durante o jantar, ela mal tocou na comida, e desta vez Epher evitou comentários.

A pequena Akh Kheper-Apet, que fazia juz ao nome na exótica cor verde dos olhos (3), continuava uma criança rosada, mas seu cabelo estava um pouco mais escuro, semelhante ao bronze polido. Esperta como Heka Ma'At, Akh já falava algumas palavras e até andava por toda a casa, por influência do irmão, e trazia tudo o que encontrava pela frente para mostrar à mãe. Ao receber seus inusitados presentes, Mahkret tomava-a no colo sempre que possível, alisando-a com as mãos magras, mas desta vez Epher notou-lhe o olhar distante. Heka Ma'At ressentiu-se, tentando chamar a atenção da mãe com travessuras e gritos. Quando Mahkret finalmente lhe dirigiu o olhar, era como se retornasse de um sonho.

Foi então que Epher entendeu que Heka Ma'At sabia que havia algo estranho se passando com ela, pois frequentemente a abraçava com força e, muitas vezes, chorava preextando alguma dor ou medo. E Mahkret sorria, acariciava-o, tornava-se ativa por alguns instantes, antes de isolar-se novamente em devaneios. E as crianças, mais uma vez, faziam algo para chamá-la de volta.

Epher compreendia agora, pela primeira vez, vários detalhes do comportamento da esposa e dos filhos, que antes não via ou tentava não ver. Mahkret segurava-se à vida por causa das crianças, e elas, sentindo-lhe inconscientemente o esforço, faziam o que estava a seu alcance, como crianças, para não deixá-la partir. Era um jogo incansável, triste e silencioso, que os três travavam diariamente nas últimas semanas, e que a doença de Mahkret ia vencendo aos poucos. Epher teve que fazer um esforço supremo para não chorar diante dos três, e prometeu a si mesmo tentar participar desse jogo, até que finalmente Mahkret pudesse descansar em paz.

Nos dias seguintes, Epher concentrou-se ao máximo nos afazeres do templo e disfarçou como pode sua preocupação, abrindo-se apenas com Diankós e Maneshtu. Chegou até a pensar em iniciar as obras de uma bela capela funerária para Mahkret na Cidade dos Mortos, que erguia-se a oeste (4), em direção ao deserto, ao lado da que Maneshtu mandara fazer para si mesmo, mas desistiu com medo de que as fofocas chegassem ao conhecimento de Mahkret. No tempo que podia estar ao lado da esposa, nunca mais recriminou-a por alimentar-se ou dormir mal, nem impediu-a de fazer o que quer que fosse. Cuidava apenas que as criadas não a preocupassem sem razão sobre detalhes domésticos, e nisso foi ajudado pela esposa de Diankós, que assumiu de boa vontade a administração da casa, dentro dos limites possíveis para não ofender Mahkret. Epher passou a ministrar-lhe também os remédios enviados por Maneshtu, que na verdade nada mais eram do que anestésicos para aliviar as dores. Aos poucos, Mahkret começou a perder a percepção do que a cercava, e suas "ausências" eram cada vez mais longas e profundas.

Enfim, na última semana de Peret, tomada de violenta febre que destruiu o pouco de resistência que lhe restava, Mahkret faleceu. Seu corpo já não pesava nem metade do que costumava pesar no ano anterior, seus olhos estavam encovados e o rosto só de longe lembrava a mulher bela que um dia Mahkret havia sido. Epher chorou muito, mas seu coração havia se conformado no último breve mês, e sua consciência estava leve ao saber que fizera de tudo para que a esposa tivesse uma morte digna e sem dor.

Heka e Akh, mesmo tão pequenos, pareciam ter compreendido logo que a mãe partira definitivamente, e choraram por muito tempo em silêncio, abraçados entre si ou agarrados às saias das criadas, sem fazer protestos ou escândalos. Diankós levou-os para passar uns dias em sua casa, junto com seus filhos, enquanto Epher encarregava-se de providenciar os cerimoniais fúnebres e mandar construir às pressas o túmulo de Mahkret. Até Mankherere, que enviou uma carta ao rei queixando-se das ausências de Epher nos serviços do templo, acabou ajudando contra a vontade: ao saber o que se passava, o rei enviou presentes de condolências a Epher e mandou realizar oferendas nos templos de Osíris, pedindo pela boa acolhida de Mahkret no reino eterno dos mortos.

*************

Abtu, Alto Egito - 2989 a.C.

Dois anos passaram-se desde a morte de Mahkret, e Epher ainda atrapalhava-se com a organização doméstica. Sem uma esposa que pudesse encarregar-se das finanças da família e das pequenas tarefas diárias, sua casa não ia muito bem. As duas criadas por vezes desentendiam-se com a ama-de-leite de Akh, que finalmente conseguiu ir embora quando a menina atingiu idade suficiente para deixar de mamar. A esposa de Diankós e algumas vizinhas revezavam-se tomando conta das crianças, conferindo a limpeza das roupas, fazendo compras e outros pequenos cuidados, porém notava-se a falta de um pulso firme que organizasse tudo de perto, e Epher começava seriamente a pensar em casar-se novamente, pelo bem da casa e das crianças.

Heka Ma'At, que fazia visíveis progressos na escola de escribas do templo, era constantemente elogiado por Diankós e pelos outros mestres. Só havia um porém: o menino sentia um preconceito velado por parte dos colegas, devido ao fato de ser estrangeiro, de ter sido um dia tido como possuído pelo demônio, de ser filho do profeta-mor e, principalmente, por carregar um nome divino. Crianças podem ser cruéis em sua sinceridade, e também em sua inveja, e Heka sofria com as pequenas troças e piadas que faziam a seu respeito. Suas reações nem sempre eram apenas verbais, e mais de uma vez Diankós precisou usar de força para separá-lo de outros meninos, dentro e fora do templo, para desgosto de Epher. Magro e alto demais para sua idade, Heka chegava a enfrentar até meninos mais velhos, nem sempre com sucesso, o que irritava-o ainda mais.

As únicas horas em que Heka parecia realmente feliz e sereno era ao lado da irmã. Akh adorava-o de paixão e chorava quase todos os dias ao vê-lo partir para a escola pelas mãos do pai, fazendo festas e gritarias quando eles voltavam. Heka sempre corria para casa na frente de Epher, tomando Akh no colo e cobrindo-a de beijos, fazendo-a gargalhar de prazer. Os dois irmãos comiam do mesmo prato, viviam aos cochichos e mais de uma vez Epher flagrou-os dormindo agarrados, junto com os gatos, que ainda eram habitantes constantes da cama do menino. Heka passava mais tempo com Akh do que o pai e, sem que Epher soubesse, contava-lhe tudo o que se passava no templo e ainda inventava lindas histórias de terras distantes, de heróis e monstros. Akh deliciava-se, mesmo sem entender muito do que Heka lhe dizia. O irmão parecia-lhe um herói, uma miniatura do pai que ela ganhara só para ela, que a adorava com exclusividade, e os dois passavam horas a fio nessas confidências.

Com efeito, as tarefas do templo e da casa sobrecarregavam Epher, e era até com certo alívio que ele via a amizade entre os filhos, pois quando estavam juntos eles não lhe davam o mínimo problema. Heka ajudava as criadas a darem banho na irmã, penteava-lhe o cabelo, arrumava-lhe as roupas e ensinava-a a desenhar as primeiras letras, ficando assim ocupado demais para arrumar brigas, e por influência dele Akh estava crescendo uma menina inteligente e sadia.

A primeira crise veio quando Heka ouviu Epher comentar com Diankós, no caminho para casa, que talvez devesse casar-se novamente a fim de garantir uma mãe que completasse a educação dos filhos. A reação de Heka foi imediata e violenta:

- Eu não quero outra mãe! - gritou, largando a mão do pai com um safanão - Minha mãe era Mahkret, e ela morreu! Ela me amava! Quem iria amar-me como ela?!

Epher ficou lívido de susto. Nem sequer percebeu que Heka pudesse ter prestado atenção em sua conversa, muito menos desconfiou que ele pudesse reagir de tal forma.

- Vou escrever para Mahkret e colocar a carta em seu túmulo para que ela saiba disso! - continuou Heka, as sobrancelhas negras e grossas quase unidas no centro da testa, o olhar furioso - Ninguém me quis porque eu era um estrangeiro maldito, mas ela recebeu-me sem fazer perguntas! Agora tu queres arrumar uma mulher que trate-me mal e mande-me embora, não é? Tu não me amas mais!

Diankós logo percebeu que a raiva de Heka brotava do preconceito que sabia existir contra ele, e tentou intermediar antes que Epher reagisse:

- Teu pai ama-te mais que tudo, Heka Ma'At! Jamais repitas tal coisa! Deves entender que teu pai também sofre muito com a ausência de Mahkret entre nós, mas a casa de um sacerdote como teu pai precisa de uma mulher que possa ajudá-lo...

- Eu não quero outra mãe! - gritou novamente Heka Ma'At, os olhos brilhando de lágrimas raivosas - Eu não vou deixar ninguém tirar Akh de mim! Eu dei ela para minha mãe Mahkret, só para ela! Eu sei que nós temos uma maldição em nós! Todos dizem isso! Tu queres mandar-me embora, pai Epher, eu sei! Tu não nos amas mais! Tu tens medo de nossa maldição!

- Cala-te imediatamente! - gritou Epher, como nunca havia tido coragem de fazer com o filho antes, nem mesmo ao ouvir as queixas dos professores do templo sobre seu comportamento agressivo - Cala-te ou vais arrepender-te pelo que dizes!

Heka calou-se, os olhos arregalados de susto e raiva. Seu corpinho magro tremia, as lágrimas começavam a escorrer-lhe pelo rosto. Frustrado, o menino disparou sozinho para casa, deixando Epher e Diankós sem saber o que pensar. Após alguns instantes Epher tentou correr em seu encalço, mas Diankós deteve-o com um gesto conciliador.

- Deixa-o ir, irmão! - pediu Diankós - Deixa-o pensar a respeito disso tudo, e tu também deves acalmar-te e pensar. Procurá-lo agora só te deixaria mais nervoso e a ele mais teimoso...

- Tu viste como ele agrediu-me, Diankós?! - Epher estava inconformado - A mim, que apenas vivo pelo bem dessas crianças... Como pode ele pensar que quero expulsá-lo de minha casa, se amo-o mais que a vida?

Diankós sabia mais dos problemas de Heka Ma'At do que Epher, pois nem sempre contava-lhe tudo o que ouvia na escola a respeito do menino para poupá-lo. Contudo, era preciso esclarecer a situação, visto que Heka estava levando a sério o preconceito que o rondava.

- O menino tem medo que ocorra-lhe o mesmo de antes, Epher! - ponderou Diankós - Ele sabe que é um estrangeiro aqui, e lembra-se muito bem de como rodou de casa em casa, sem família, carregado por um, expulso por outro... Tu bem te recordas de como nós o encontramos, uma criança sofrida e sem amor-próprio, amaldiçoado pelo oleiro, que ameaçava até jogá-lo aos crocodilos!

Epher franziu as sobrancelhas, sério e pensativo. Seu semblante fez com que Diankós lembrasse imediatamente do olhar de Heka Ma'At há poucos instantes, tão parecidos eram os dois!

- Creio que Heka Ma'At apegou-se por demais a Mahkret porque ela amou-o ao primeiro olhar! - prosseguiu Diankós, diante do silêncio do amigo - Ela aceitou-o como um presente, e não por caridade ou obrigação! Ele então a viu sofrer e morrer, e essa foi mais uma perda na vida dessa pobre criança, Epher! Como queres que ele se sinta, após tanta dor? Para ele, Mahkret era mais do que uma mãe, era sagrada! Ninguém poderá jamais substituí-la no coração dele!

- Compreendo tudo o que dizes - falou Epher finalmente - e como sempre tens razão, meu irmão. Mas ainda estou perturbado pela agressividade desse menino! Um dia chegará em que deverei casar-me novamente! Já estou ficando velho e eles precisarão de alguém que possa educá-los no futuro! Tu bem sabes as profecias a respeito deles!

- Sim, sei, e Heka Ma'At também sabe! Sabe até bem demais, irmão!

Epher percebeu a insinuação na voz de Diankós.

- Que queres dizer com isso? - perguntou.

Diankós não sabia a melhor forma de explicar e resolveu ser direto:

- Epher, teu filho já tomou conhecimento, sabe-se lá de que maneira, das profecias feitas a respeito dele e de Akh Kheper-Apet. Alguém no templo deve ter ouvido nossas conversas e algumas coisas chegaram aos ouvidos desse menino, e da pior forma possível. Ele descobriu que os dois correm perigo porque são especiais e precisam ser vigiados, mas entendeu isso como se fosse uma maldição... As crianças da escola zombam dele por causa de seu nome divino, e por ele ser estrangeiro. Você sabe como crianças podem ser invejosas e cruéis! Acho que Heka Ma'At tem medo de trazer-te algum mal, pensa que tu serás perseguido por causa dele! E pelo que ouvi, ele teme demais pela irmã também...

Uma nuvem passou pelo semblante de Epher. Seu filho sofria com o preconceito... E agora achava que o preconceito tinha fundamento, pelo que ouviu dizer das profecias! Quanta injustiça, quanta maldade! Um menino ainda, e sofrendo assim!

- Já entendi tudo, irmão, e agradeço-te sinceramente pela franqueza! - falou Epher, a voz pastosa - Meu filho é um injustiçado, uma criança frágil obrigada a sofrer nas mãos de gente invejosa e má! Mas eu protegerei minha família, Diankós, isso eu juro por Rá! Sofri muito querendo ter filhos que embalassem minha velhice, e os deuses me enviaram estas crianças maravilhosas, mas infelizmente Mahkret não viveu para fazer-nos companhia neste mundo. Pois bem, eles são tudo o que me restou, e nada jamais irá separar-me destas pobres crianças enquanto eu viver!

Diankós sentiu-se mais aliviado ao ouvir a resolução de Epher. De certa forma, bem no íntimo, temia que o amigo pudesse um dia sucumbir à tentação de abandonar Heka Ma'At por causa do temperamento difícil do menino e das profecias envolvendo seu futuro. Pelo visto suas suspeitas eram infundadas, ainda bem. Mas, e quanto ao novo casamento?

- Não me casarei, se isso faz tanto mal a meu filho! - respondeu Epher antes mesmo que Diankós formulasse a pergunta - Arrumarei novas criadas, se for preciso, mas cuidarei sozinho dos dois pequenos enquanto tiver saúde para isso! Só rezo para viver o suficiente até vê-los em paz, criados e encaminhados... Meu irmão, se eu não puder completar minha missão, tu poderias assumir tal carga em meu nome, Diankós?

- Claro que sim! - respondeu Diankós imediatamente, uma ternura enorme pelo amigo invadindo-o - Sou teu irmão e amo a ti e a tua família como se fôssemos todos do mesmo sangue, Epher! Jamais duvide de minha fidelidade à tua casa!

Um sorriso, cansado mas aliviado, iluminou o rosto de Epher. Com um longo abraço, estreitou Diankós junto ao peito, agradecido. Sem mais palavras, os dois seguiram lado a lado para a casa de Epher, a fim de conversar com Heka Ma'At e explicar-lhe a decisão do pai.

*************

Notas explicativas:

1 - As escolas egípcias eram acessíveis a praticamente qualquer pessoa, e em sua maioria eram mantidas pelos templos. A educação começava em geral aos cinco anos e, se não houvessem problemas de aprendizado, um aluno estaria formado como escriba por volta dos dezesseis anos.

2 - As crianças eram amamentadas normalmente até completarem três anos de idade. Se a mãe não tivesse leite, era necessário contratar uma ama-de-leite pelo período restante.

3 - Akh era o nome egípcio da ave também conhecida como Íbis Comata, Íbis Coroada ou Íbis Sagrada, que possuía plumagem verde-escura salpicada de manchas de cor metálica brilhante.

4 - Era costume, para as pessoas mais abastadas, encomendar a construção de suas próprias tumbas ainda em vida. A Cidade dos Mortos, ou o local onde eram construídas as tumbas, normalmente localizava-se a oeste da Cidade dos Vivos, pois acreditava-se que o lugar onde o sol se punha era a morada dos deuses.
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