Amor e Morte


Saqqara, Baixo Egito - 2630 a.C.

Imhotep preferiu passar primeiro pela casa de Heka, ou teria que responder perguntas indiscretas caso seus criados o vissem chegar naquele estado. E assim também poderia rever Akh...

Ela assustou-se ao vê-los daquele jeito, desgrenhados e cheios de areia. Os dois enrolaram para dar a explicação, dizendo que foi apenas um problema na obra, e correram a tomar banho. Enquanto jantavam, Heka percebeu que Akh evitava o olhar insistente de Imhotep porém, quando o fitava, era com calor. Decidiu dar um basta àquela situação e, chamando o amigo num canto, aconselhou-o:

- Akh tenta disfarçar o que sente. Ainda não perguntei a ela sobre ti... Eu já dei-te minha aprovação, agora tens que ir tu mesmo falar com ela. Para provar que não mando em minha irmã, deixarei que ela responda diretamente a ti, sem interferir. Akh tem juízo. Se ela te aceitar, fico feliz! Senão, nada poderei fazer... Tua casa tem muita gente. Hoje sairei sozinho e dormirei na casa da alegria, há uma garota lá que me encanta! Tu terás a noite toda para conversar com minha irmã em paz... Amanhã ficarei sabendo da decisão dela!

Imhotep abraçou Heka com força, sem palavras para agradecer. Heka saiu sem despedir-se da irmã e ela logo percebeu, pela diminuição da vibração, que ele estava fora. Mas Imhotep ficou... Só de lembrar o que houve entre ambos há poucas horas, Akh estremeceu.

- Meu irmão saiu sozinho a esta hora? - perguntou, da cozinha - Por que não foste com ele?

Logo Imhotep estava a seu lado, sem responder. Akh sentia o calor dos olhos dele em sua nuca e não conseguia virar-se para encará-lo. Não confiava em si mesma o bastante para isso.

Com gentileza e em silêncio, Imhotep tirou de suas mãos uma tijela que ela fingia limpar. Akh tentou pegar alguma outra coisa com que ocupar-se, mas ele não permitiu, segurando-a suavemente pelos braços e forçando-a a virar-se para olhá-lo. E ela viu de novo - a mesma chama daquela tarde, os mesmos olhos em brasa... Sentiu seu próprio rosto corar, seu sangue pulsando quente nas veias, o coração disparado.

Imhotep afastou-lhe o cabelo dos ombros com um movimento lento, admirando os reflexos das lamparinas nos fios claros, embevecido. Sentiu o arrepio que percorreu o corpo dela ao roçar de leve os dedos por seu pescoço, e tomou-a pelas mãos, puxando-a de volta para a sala. Akh seguiu-o sem resistir, incapaz de dizer uma palavra. Ele a fez sentar-se sobre as almofadas e sentou-se a seu lado, admirando-a em silêncio. Tocou-lhe o rosto e sentiu como a pele dela estava quente, febril... Os lábios dela tremiam... Akh aproximou o rosto e ele a beijou, lentamente, saboreando aquela boca que povoava seus sonhos, iluminava seus dias...

- Eu te amo! - Imhotep sussurrou-lhe ao ouvido - Te amo tanto...

- E eu esperei tanto por isso!

- Quero que sejas minha esposa... Quero amar-te assim para sempre!

- Oh, Imhotep! - Ela atirou-se em seus braços - É tudo o que tenho sonhado! Quero-te como jamais quis alguém em minha vida!

Ele cobria-a de beijos, controlando-se para não assustá-la. Com carinho, acariciava-a nos braços e no pescoço, vendo-a arrepiar-se a cada toque. Ela reagia beijando-o com paixão, puxando-o para si como se ele pudesse escapar-lhe a qualquer momento. Vendo que ele parecia disposto a manter o respeito apesar de tudo, ela começou a desatar o cinto da própria túnica, tirou as sandálias e colocou sobre uma almofada a adaga que trazia escondida, esperando que ele entendesse o recado.

- Akh, eu... - começou Imhotep, torturado pelo desejo mas receoso de estragar tudo se prosseguissem - Eu não quero ter-te como tenho as moças da casa da alegria! Elas para mim são apenas um paliativo para o que sinto por ti! Quero-te pela eternidade, só você...

- E eu te amo! - Akh estava decidida - Agora que sei que tu também me queres, é o que me basta!

Num gesto rápido, ela puxou a túnica por sobre a cabeça, desnudando-se completamente. Imhotep tremia, num esforço supremo para não atirar-se sobre ela imediatamente. Foi ela quem tomou as mãos dele e puxou-as para que a tocassem, beijando-o com todo o ardor acumulado por séculos de espera. Sentindo como o corpo dele reagia ao contato com sua pele, Akh começou a despi-lo do saiote, desatando o nó que prendia a adaga.

Ele tomou-a nos braços, carregando-a para os quartos no andar de cima. Jogou-se com ela na primeira cama que encontrou, beijando-a sem parar, enquanto ela enlaçava-o com as pernas. Imhotep tentou amá-la com suavidade, mas ela empurrava o próprio corpo contra o dele, selvagem, soltando leves gemidos. Imhotep não resistiu mais e possuiu-a com toda a paixão que era capaz, sem conseguir parar de beijá-la, enlouquecido. Mais tarde, sem fôlego e felizes, permaneceram abraçados por um longo tempo, trocando confidências e juras de amor eterno. E, para dois Imortais, a eternidade não é apenas um sonho...

*************

Heka chegou bem cedo na manhã seguinte, um tanto grogue da bebida e da noite agitada, mas logo despertou ao sentir a vibração de Imhotep em sua casa. Se estava lá àquela hora, antes mesmo do sol erguer-se completamente, então provavelmente nem tinha ido embora na noite anterior. Desconfiando do que poderia ter acontecido, Heka ficou envergonhado e esperou um pouco do lado de fora antes de entrar. Se Akh permitiu que Imhotep passasse a noite com ela, não seria ele quem iria criticá-la ou constrangê-la.

Ouviu sussurros agitados, um móvel sendo derrubado e uma imprecação que provavelmente seria de Imhotep. Heka decidiu entrar para ver o que se passava e pressentiu, mais do que viu, a sombra da irmã desaparecendo no alto da escada, enquanto Imhotep tentava em vão amarrar o saiote, plantado descalço no meio da sala, corado até a raiz do cabelo. Uma banqueta estava caída perto dele, as adagas dos dois no chão. Mesmo alto da noitada, Heka não precisava raciocinar muito para entender que os dois deveriam ter começado tudo na sala e, ao senti-lo chegar, correram para buscar o que haviam abandonado, na tentativa de eliminar pistas. Provavelmente Imhotep tropeçara na banqueta no lusco-fusco da sala, daí o ruído que ouviu.

Logo Akh reapareceu na escada, vestida às pressas, vermelha de vergonha por Imhotep ter sido pego em flagrante. Sabia agora que Heka os deixara a sós de propósito, porém não queria que o irmão soubesse o que tinha acontecido antes de poder dizer-lhe pessoalmente. Desatando a rir da cara de susto deles, Heka puxou Imhotep para si e abraçou-o com força, sussurando-lhe ao ouvido:

- Vejo que ela aceitou-te! Parabéns!

Imhotep corou ainda mais, concordando com a cabeça e retribuindo o abraço. Heka puxou Akh e colocou a mão dela na do amigo, dizendo com os olhos úmidos:

- Sou feliz por ambos, pois amo-os demais! Só espero que nunca me esqueçam...

Akh atirou-se sobre ele num abraço apertado.

- Jamais! - disse - Nunca mais digas tal coisa! Nunca! Agora que sou tão feliz, não abrirei mão de nenhum de vós...

- Amo-te como a um irmão, Heka Ma'At! - acrescentou Imhotep, com um nó na garganta - O irmão que nunca tive! Ficaremos sempre juntos, prometo-te agora e diante de tua irmã!

Os três trocaram promessas de amizade e amor, abraços, beijos, lágrimas de felicidade. Imhotep decidiu que os dois irmãos deveriam mudar-se para sua casa o mais breve possível - a partir do momento em que Akh fosse morar com ele, o casamento dos dois estaria oficializado (1). Dariam então uma festa para as pessoas importantes de Saqqara, para que a união fosse publicamente assumida e com as pompas devidas. Os três tomaram o desjejum juntos, fazendo doces planos para o futuro.

*************

Saqqara / Mênfis, Baixo Egito - 2630 a 2603 a.C

Devido ao alto cargo que ocupava, Imhotep precisou da aprovação real para casar-se, mas foi apenas uma formalidade. Netjerikhet Djoser jamais se oporia a uma escolha particular de seu mais importante assistente, e nem fez questão de conhecer pessoalmente a noiva, mandando-lhes apenas ricos presentes. Estava mais preocupado, isso sim, em espalhar templos pelo reino e ver logo concluído o enorme complexo de Saqqara, que incluía, além de sua tumba, outros templos e edifícios, cercados por uma gigantesca muralha. O fato de usarem pedras na construção, coisa incomum no Egito, faria das obras de Netjerikhet Djoser um marco, a começar pela figura inédita de sua tumba em degraus (2).

Sob as ordens do rei, Imhotep por vezes precisou ausentar-se de Saqqara, indo fiscalizar obras distantes ou passando semanas em Mênfis. Akh e Heka acabaram por mudar-se com ele para a capital, onde Imhotep possuía uma casa maior, anexa às dependências do palácio, mas sempre que podiam acompanhavam-no em viagens. Como membros da corte, agora viram-se finalmente obrigados a usar perucas, mesmo que fosse para disfarçar os cabelos naturais.

- Odeio isso! - resmungava sempre Heka Ma'At, coçando a cabeça - Esquenta terrivelmente, meu cérebro está a derreter!

- E tu achas que eu por acaso gosto disso? - ria Imhotep, que usava o cabelo curto e por isso mesmo sofria de terríveis coceiras - Precisas seguir as formalidades para não ofenderes o rei! Queres que ele pense que tu estás de luto diante dele? Seria atrevimento de tua parte! Esconde teu cabelo, há uma ponta aparecendo ali...

Finalmente, em 2611, o rei faleceu e foi sepultado em Saqqara, e as poucas partes ainda em andamento da obra foram encerradas às pressas. Diversas casas de tijolos, já vazias, foram demolidas, para que a tumba e seus edifícios anexos reinassem sozinhos no deserto. O novo rei, Sekhmekhet Djoser Teti, assumiu o trono em seguida, porém só mais tarde mandou construir uma pirâmide menor para si mesmo em Saqqara (3). Foi quando Imhotep sofreu um acidente grave nas obras, morrendo em público - a parede de um velho depósito desabou, soterrando e matando vários operários que voltavam para suas casas no final do dia.

Chamado às pressas, Heka mandou retirarem imediatamente os corpos e, pela vibração, logo encontrou o do arquiteto, impedindo que outros o vissem voltar a si. Num pensamento rápido, Heka mandou Imhotep fingir-se de morto. Aproveitando a escuridão que já se abatera sobre o desastre, conseguiu trocar o corpo do amigo pelo de outro operário que teve o rosto esmagado, estando irreconhecível. Na confusão, ninguém notou a fuga de Imhotep nem a troca dos cadáveres, e pouco incomodaram-se quando Heka anunciou que levaria pessoalmente o amigo para ser lamentado em casa pela esposa. Enquanto o cadáver do operário era levado para a casa de Imhotep, o arquiteto escondeu-se em outro depósito vazio, onde por sorte encontrou água para lavar-se e alguns trapos para trocar de roupa, disfarçando-se de pedreiro.

Avisada por Heka do plano que havia sido armado, Akh comportou-se como uma verdadeira viúva, fingindo desmaiar. Heka anunciou que o corpo do ministro, embrulhado às pressas em peles de carneiro, deveria ser enviado logo a Mênfis, a fim de ser velado e embalsamado pelos sacerdotes da corte real. Akh declarou-se emocionalmente impossibilitada de viajar naquela noite, e mandou que todos os criados e principais assistentes do marido seguissem para a capital em seu lugar, prestando contas da catástrofe ao rei. A decisão pareceu-lhes estranha, mas a comoção generalizada impediu que alguém fizesse perguntas indiscretas. A casa de Imhotep ficou assim vazia, com Akh e Heka livres de curiosos. O arquiteto só reapareceu aos irmãos de madrugada, quando viu seu "corpo" ser levado no grande barco, acompanhado por um cortejo de barcos menores.

O problema seria quando alguém percebesse a troca, e não demoraria muito para que isso acontecesse. Pensando nisso, os três decidiram mudar-se imediatamente, com tudo o que pudessem levar, para a cidade de Ma'Adi, um pouco mais ao norte, onde Imhotep só era conhecido de fama e provavelmente poucos o reconheceriam de vista. Mesmo assim, poderiam sempre inventar alguma desculpa ou fugir para outra cidade.

*************

Ma'Adi, Baixo Egito - Cerca de 2595 a.C.

Heka Ma'At começou a inquietar-se com a vida que levavam. Impedidos de conseguir um cargo público relevante, para não serem descobertos, ele e Imhotep tinham de contentar-se com o trabalho de mercadores e artesãos, incrementando a renda servindo como escribas para os mais pobres. Os poucos bens que conseguiram carregar na fuga de Saqqara começaram a escassear.

Mas o que perturbava Heka não era a vida mais humilde, afinal tinham vivido com praticamente nada no deserto por séculos, e pouco ligava para o conforto material. O que realmente o irritava era que não podia mais ir com a mesma frequência à casa da alegria, pois era um lugar caro demais para seu atual padrão. E as moças da alegria de Ma'Adi, em verdade, nem chegavam aos pés das que encontrava antes em Saqqara e Mênfis...

Desde o casamento, Imhotep nunca mais foi à casa da alegria, nem ficaria bem se fosse - Akh teria todo direito de separar-se dele, caso ele se atrevesse a isso. Ao contrário, o casal vivia apaixonado, trocando carinhos e desfrutando quentes noites de amor. Heka podia às vezes ouvi-los, afinal moravam juntos, e isso deixava-o ainda mais excitado para dormir com uma mulher. Apesar da irmã e do amigo jamais deixarem-no de fora de nenhuma conversa e fazer até questão que Heka tomasse parte em todas as decisões - como se fosse um "casamento a três", como Akh dizia - o fato era que Heka já não se contentava mais com o que tinha. A vida de solteiro o incomodava. Também não decidia por casar-se. Nem ele sabia ao certo o que queria - simplesmente sentia que não encontraria o que buscava em Ma'Adi. Os outros dois pressentiam sua crescente inquietação, e preocupavam-se.

- Teu irmão precisa casar-se! - Imhotep sentenciou uma noite a Akh, no escuro do quarto - Ver-nos felizes deve fazer com que ele anseie por viver algo igual... Só não vejo como encontrar mulher que lhe agrade!

Akh sofria ao ver o irmão descontente, sem saber como fazer para sossegá-lo. Até que um dia, numa conversa franca com a irmã e o cunhado, Heka declarou seu desejo de partir sozinho em direção às terras do leste, onde talvez pudesse encontrar uma mulher, de preferência Imortal, com quem se casar. Os outros dois tentaram opor-se à sua partida, pois as terras do leste eram povoadas por tribos pouco conhecidas, algumas até inimigas dos egípcios - o risco era enorme, mesmo para um Imortal. Chegaram a oferecer-se para ir também, mas Heka recusou. A irmã estava feliz ao lado do marido, talvez tivesse chegado a hora de separar-se deles por algum tempo.

Com dificuldade, Heka convenceu-os a deixá-lo partir, e uniu-se a uma caravana de sciasu que seguiria para o Retenu, a nordeste (4). A partida foi triste, mas Heka permaneceu firme em sua decisão, sumindo na imensidão do deserto.

*************

Egito / Síria - Cerca de 2560 a 2400 a.C.

Durante anos Akh Kheper-Apet e Imhotep receberam notícias periódicas de Heka Ma'At através de beduínos que chegavam à cidade nas caravanas e tinham visto ou ouvido falar do egípcio. Às vezes, levavam meses para encontrar alguém que pudesse ter alguma informação. Conforme Heka prosseguia viagem em direção ao nordeste, porém, as novidades escasseavam, até por fim desaparecerem por completo.

Preocupada com a falta de notícias, Akh Kheper-Apet convenceu Imhotep a viajar para Iunu, depois para Naytahut e Bast (5), cada vez mais ao norte, onde finalmente ouviram que Heka havia se casado à força com uma mulher sciasu, anos antes. Sabendo que Heka não era homem de ser forçado a nada, os dois ficaram ao mesmo tempo aliviados e preocupados - aliviados porque Heka ainda deveria estar vivo, e preocupados porque desse casamento forçado só poderia resultar uma desgraça.

Decidiram mudar-se mais uma vez, subindo para Avari (6) ao nordeste. Após quase duas décadas sem novidades, viajaram para El Qantara a leste, acompanhando uma caravana militar egípcia. Esperaram vários anos e decidiram rumar ainda mais para leste, beirando o terreno pantanoso do extremo do delta, até chegarem a Pelusa, junto ao mar. A cidade era rota segura para as diversas caravanas e expedições militares que iam e voltavam pelos desertos do sciasu do norte ou atravessavam o Retenu, e o porto vivia agitado por navios mercantes. Após cinco anos foram informados, por um mercador asiático, de que um egípcio havia desaparecido em nuvens e fogos estranhos depois de lutar contra um mercenário fenehu (7).

Pela história cheia de fantasias que o homem contou, Akh e o marido logo deduziram que Heka devia ter decapitado seu primeiro Imortal. Se o homem era um fenehu, então Heka deveria estar em algum lugar do território do Retenu, e o casal mudou-se outra vez. Seguindo pelo litoral em direção ao nordeste, estabeleceram-se na vila de Gaza à espera de notícias.

Após vários anos, novos rumores levaram-nos para Ascalona, Azdod, Jope, Dor e Megido, subindo enfim até Hazor (8), onde afirmavam ter visto um egípcio de longos cabelos negros, casado com uma asiática, negociando com os mercadores sciasu na cidade. Chegando lá, ouviram que aparentemente o tal egípcio teve a esposa raptada por um bando de fenehus e, ao tentar recuperá-la, viu a mulher ser assassinada. Enfurecido, o egípcio matou um dos sequestradores e seu corpo foi envolvido por fogos mágicos vindos do céu, causando pânico em quem viu a cena de longe. O egício sumiu no deserto, provavelmente indo em direção à vila de Tiro, no litoral, e mais nada sabia-se de seu paradeiro.

Imhotep preocupava-se com Akh, pois cada notícia sobre as aventuras perigosas em que Heka andava envolvido deixavam-na profundamente transtornada, às raias da histeria. Se os rumores fossem verdadeiros, então Heka já havia matado outro Imortal e perdera a segunda esposa, tudo em pouco mais de um século. Akh exigiu mudar-se para Tiro (9), na esperança de reencontrar o irmão, e por lá permaneceu com Imhotep por mais de três décadas, sofrendo com rumores que não diziam nada de concreto.

Transferiram-se então para Biblos, ao norte de Berit (10), em busca de qualquer pista. Após mais de vinte anos, descobriram que ele havia passado recentemente por Ugarit (11), desta vez casado com uma jovem das tribos dos mitanos. Akh e Imhotep seguiram para a cidade, mas não conseguiram sequer confirmar se a notícia era verdadeira. Vinte e cinco anos depois, Imhotep a custo concordou em ir para Yamkhad, no interior, onde haviam muitos mercadores mitanos (12) e talvez pudessem descobrir, entre eles, algum parente, mesmo que distante, da última esposa de Heka, se é que ela ainda estava viva.

A mudança trouxe poucas esperanças - só após uma década descobriram enfim quem era a tal esposa de Heka, porém seus parentes há muito tempo não sabiam por onde ela andava com o marido. Decidiram esperar então que ela reaparecesse na cidade ou que algum parente a encontrasse e trouxesse novidades sobre seu paradeiro, e por consequência do paradeiro de Heka Ma'At.

*************

Mesopotâmia - Cerca de 2330 a.C.

A espera, longa e infrutífera, começava a inquietar Akh novamente. Só que Imhotep, desta vez, bateu o pé e não aceitou empreender nova viagem, para onde quer que fosse.

- A esta altura, a última esposa de Heka já deve estar morta! - teimou, tentando acalmá-la durante uma discussão - Ele pode estar em qualquer lugar da Ásia, ou pode mesmo ter voltado ao Egito atrás de ti! Com tantas mudanças e viagens, mesmo tendo ficado bastante tempo em cada lugar por onde passamos, no fim só estamos dificultando mais as coisas! Talvez Heka nem saiba que estamos a procurá-lo e imagine que ambos ainda o esperamos em Ma'Adi...

Akh chorou e protestou, mas Imhotep manteve-se irredutível, não aceitando nem a proposta de voltar ao Egito nem de subir para o norte pelo Retenu, onde nos últimos tempos crescia uma certa hostilidade contra os povos ágades do nordeste e os semitas do sudoeste (13) - o clima em Yamkhad estava tornando-se tenso, mas viajar para qualquer lado agora seria até perigoso.

Na verdade, Imhotep estava farto de mudar-se de um lado para outro e viver como um ninguém, um estrangeiro qualquer perdido num território estranho. Por mais que tivesse viajado antes, sempre permaneceu em território habitado por egípcios, e todas as viagens foram-lhe de alguma forma enriquecedoras - ora ganhava muito dinheiro e fama, ora aprendia coisas novas que depois lhe valeriam muito. Mas, durante os últimos séculos, tudo o que fizeram foi pular de cidade em cidade, de vila em vila, trabalhando como artesãos, curandeiros, escribas, mercadores, estafando-se em viagens perigosas, carregando suas tralhas em lombos de bois. Haviam praticamente deixado toda sua fortuna para trás em Saqqara e em todo esse tempo nunca mais voltaram ao padrão anterior, e isso começava a aborrecê-lo. Sentia sua inteligência desperdiçada e achava que já era hora de decidir-se de vez por um lugar onde recomeçar de verdade, e de reconstruir de alguma forma sua carreira.

Akh às vezes ressentia-se das brigas com o marido. Toda vez que pedia-lhe para mudar de cidade, tinham longas e acaloradas discussões, antes que conseguisse convencê-lo a partir. No começo não tiveram tantos atritos, pois Imhotep na época estava tão interessado quanto ela em reencontrar Heka. Entretanto, percebia que na maioria das últimas vezes em que viajaram, Imhotep só concordou com a mudança por medo de deixá-la ir sozinha. Não que o amor entre os dois tivesse desaparecido, ao contrário - sofria só de pensar em perdê-lo, e reconhecia que ele sacrificava-se para fazê-la feliz. O problema parecia ser a vida que levavam, bem mais humilde e limitada. Mesmo ficando décadas em cada lugar, e apesar das fronteiras egípcias por vezes terem estendido-se para além de Yamkhad, ainda assim eram sempre como estrangeiros, e sentiam que havia um certo preconceito rondando suas vidas.

O auge do conflito entre os dois foi quando Imhotep, após algum tempo refletindo sozinho sobre o assunto, decidiu unir-se às tropas do rei ágade Sharrukin (14). Os ágades haviam conquistado aos poucos cidades importantes, localizadas bem acima de seu território, que antes era delimitado pelos rios Tigre e Eufrates, a leste. A região de Yamkhad agora estava sob o controle dos soldados de Sharrukin, e seus simpatizantes estavam sendo agraciados com cargos públicos e presentes.

- Tu nunca foste um soldado! - gritou Akh entre lágrimas, tentando a todo custo demover o marido da nova idéia.

- Mas sou Imortal! - replicou Imhotep, o cenho franzido - No fim, é tudo a mesma coisa! Temos que lutar quando somos desafiados, não temos? E certamente não será uma simples flechada que me matará!

- E eu ficarei sozinha? Tu me deixarias? E se algo me acontecer?

- Akh, por favor compreenda! - Imhotep conhecia as chantagens dela de cor e salteado - Sou homem, tenho ambições! Precisamos reconstruir nossas vidas, estou farto de implorar por serviços e trazer tão pouco para casa no final do dia! Quero algo mais e sei que sou capaz de conseguir!

Akh calou-se. Mesmo na dor da decepção, percebia que era a honra dele como homem que estava em jogo, e nada o faria desistir. Não lhe importavam os luxos ou favores que ele pudesse conquistar, queria-o apenas a seu lado, e em segurança - já havia perdido o irmão, não suportaria perder o homem que amava. Mas o que a magoava ainda mais era o fato de ele ter decidido tudo sem consultá-la, quando já estava praticamente engajado nas tropas ágades, não lhe dando sequer a chance de discutir o assunto com antecedência.

Durante a semana seguinte os dois falaram-se pouco, e quando o faziam era novamente para discutir. Nem sequer dormiam mais juntos, pois Akh recusava-se a permitir que ele a tocasse, na esperança de fazê-lo mudar de idéia. Na véspera da partida para juntar-se às tropas ágades, Imhotep perdeu a cabeça e levou-a para a cama à força, e os dois fizeram amor quase com a mesma selvageria da primeira noite em que dormiram juntos, acabando ambos entre lágrimas de despedida e juras de amor eterno.

Foi com enorme dor no coração que Imhotep partiu pela manhã, vendo-a chorar amargamente, mas havia decidido permanecer o mais próximo possível de Yamkhad que a vida militar lhe permitisse, a fim de voltar a vê-la em breve.

Sabia que os ágades andavam empenhados em conquistar novos territórios na região e em instalar postos avançados de vigilância na fronteira, o que talvez lhe permitisse viver em algum lugarejo próximo, de onde pudesse zelar pela segurança de Akh. Porém, o sonho de Imhotep durou pouco, e a vida de Akh tornou-se um amargo pesadelo.

O ex-arquiteto foi decapitado por um Imortal durante uma batalha e Akh, completamente sozinha e apavorada, desejou apenas poder morrer para escapar ao desgosto. Nem ao menos pôde ter o corpo do marido de volta para um funeral, e isso deixou-a prostada, sem vontade sequer de alimentar-se. Após semanas de depressão, decidiu fugir para o norte de volta ao litoral, com medo que o mesmo Imortal que decapitou Imhotep pudesse encontrá-la desprotegida. Juntando-se às caravanas que partiam para o norte, além de Naharina (15), oferecendo-se como curandeira e artesã, a infeliz embrenhou-se pelos desertos do noroeste.

*************

Notas explicativas:

1 - O casamento entre os egípcios antigos era apenas uma formalidade, sem cerimoniais específicos. A partir do momento em que um homem e uma mulher passavam a morar juntos, eram considerados casados, e o marido deveria respeitar a esposa como dona de sua casa e administradora de seus bens.

2 - O material de construção normalmente empregado eram os tijolos crus, mesmo para tumbas e templos, que por isso mesmo precisavam de manutenção e reformas constantes. Quando uma casa residencial ficava em ruínas, era demolida e construíam outra no mesmo lugar. O faraó Netjerikhet Djoser foi provavelmente o primeiro a ter seus monumentos construídos em pedra, graças à engenhosidade de Imhotep. As tumbas antigamente eram monumentos horizontais, achatados, chamadas mastabas. A tumba em degraus de Netjerikhet Djoser foi, assim, a primeira de sua espécie e serviu como esboço para a futura construção das pirâmides.

3 - A tumba de Sekhmekhet Djoser Teti, também em degraus como a de Netjerikhet Djoser mas em tamanho menor, ficou inacabada por motivos desconhecidos.

4 - Retenu era como os egípcios chamavam a região do Oriente Próximo a nordeste do Mar Vermelho, que atualmente engloba os territórios de Israel, Líbano, Síria e parte da Jordânia. Na época desta história, a região era considerada uma "terra de ninguém", pois foi habitada por diversos povos e tribos, quase sempre rivais entre si, mas na maioria de origem hicsa ou semita.

5 - Iunu seria o nome original da cidade depois rebatizada pelos gregos como Heliópolis. Naytahut, depois chamada pelos gregos de Leontópolis, é também conhecida pelo nome árabe de Tell el Yahûdîya. Bast, também chamada de Bubastis, hoje é conhecida como Tell Basta.

6 - Avari, ou Avaris, hoje tem o nome árabe de Tell el Dab'a.

7 - Fenehu seria a tradução mais apropriada para a palavra egípcia FN-HU, ou seja, os fenícios.

8 - Gaza, Ascalona, Azdod e Jope eram cidades na região que anteriormente pertenceu aos hicsos e que depois foi dominada pelos cananeus. Dor, Megido e Hazor eram provavelmente nesta época reinos independentes que ora aliavam-se aos egípcios, ora submetiam-se aos povos mesopotâmios.

9 - Tiro, ou El Tiro, era na época uma próspera cidade fenícia.

10 - Biblos e Berit, hoje conhecida como Beirute, eram na época importantes cidades fenícias.

11 - Ugarit, chamada depois de Ras Shamra, era na época uma cidade fenícia que servia de ponto de passagem avançado para as caravanas de comércio, próximo à Mesopotâmia.

12 - Yamkhad, também conhecida como Aleppo, ficava ao sul da região chamada Naharina, ou Terra dos Rios, próxima à Mesopotâmia. Os mitanos eram povos que habitavam o leste, para além do Rio Eufrates, já na região da Mesopotâmia.

13 - Os semitas transformavam-se em uma poderosa nação na região junto ao rio Jordão. Os ágades, ou acádios, formavam um novo império na região da Mesopotâmia, comandados pelo Imperador Sharrukin.

14 - Sharrukin, também conhecido como Sargão I, foi o rei fundador do império ágade.

15 - Região dos rios, na Ásia Menor.
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