A Outra Face


Creta - 2264 a.C.

Como Heka previu, a viagem até Katsambas foi rápida e tranquila. Mantiveram-se sempre com a orla de Creta à vista, ao lado esquerdo do barco, evitando o mar aberto e os piratas. A chegada foi alegre, pois boa parte da tripulação era da cidade e vários marinheiros foram recebidos por familiares e amigos com festas. Heka logo mandou desembarcar a carga e enviou tudo para seu depósito particular, um prédio quadrado e sem atrativos, perto da casa onde morava.

- Desse depósito - explicou a Akh - despacharei para os comerciantes o que já foi encomendado, cobrando pelo transporte. O que eu trouxe por minha conta, tratarei de negociar nos próximos dias. Trocarei quase tudo por mercadorias para levar ao Egito, e de lá partiremos para Mileto, onde tenho outros negócios encaminhados.

Akh impressionava-se com a prosperidade do irmão. Heka não tinha ficado extremamente rico, mas não podia negar que estava fazendo fortuna depressa. Com a ajuda de Rukhai, Akh levou as coisas pessoais de Heka para a casa dele, um lugar lindo e sossegado no alto de uma elevação próxima ao porto. Foram recebidas por um criado idoso, Menoren, que Heka explicou ser um viúvo sem filhos, homem de sua confiança. Com um sorriso simpático e agradável, Menoren indicou-lhes onde colocar o que iam trazendo. Vendo como elas estavam curiosas com a casa, ofereceu-lhes um refresco de frutas quando chegaram com os últimos pacotes.

- Venham comigo, meninos! - pediu, com um gesto de cumplicidade - Assim poderão descansar um pouquinho e conhecer os jardins!

Dando voltas um tanto desnecessárias, Menoren levou-as por toda a casa, não muito grande, porém ampla e fresca, com paredes pintadas de branco e enfeitadas por belos mosaicos. A mobília era simples e prática, bem ao gosto de Heka, mas também colorida, à moda cretense. Alguns tapetes, que Akh julgou ser bem caros, ornavam os cômodos principais. Os jardins eram vistosos e alegres como os que conheceu em Éfeso, e Menoren mostrou-lhes com orgulho um pequeno tanque onde criava peixes.

- Isso deve ter custado uma fortuna! - exclamou Akh com um gesto amplo, olhando ao redor - Manter uma casa como esta não é para qualquer um!

- Ah, mas nosso mestre Heka é um homem inteligente! - disse Menoren - Ele sabe fazer os melhores negócios, nunca falha com os compromissos assumidos, é generoso e todos na cidade aprenderam a respeitá-lo! Se continuarem a trabalhar para ele, entenderão o que digo!

Akh suspeitou que o termo "aprender a respeitar", em se tratando de Heka, deveria ter envolvido alguma boa briga. Rukhai divertia-se catando uvas, indiferente. Pouco depois Heka juntou-se a eles, descontraído, abraçando Menoren com carinho e presenteando-o com uma vasilha de faiança, ricamente trabalhada. Akh reconheceu a peça imediatamente como sendo egípcia e bastante valiosa. Menoren quase foi às lágrimas, sem palavras para agradecer. Heka explicou que seus dois "aprendizes" iriam morar com ele a partir de agora, e Menoren correu a arrumar os quartos para os hóspedes.

- Não achas que deves contar-lhe quem somos? - perguntou Akh ao irmão, assim que viu Menoren desaparecer dentro da casa - Se vamos morar com ele, logo descobrirá! Tu disseste que confia nele...

- Contarei, com certeza! - Heka afirmou, esparramando-se numa espreguiçadeira junto ao tanque e saboreando o suco que Menoren havia servido - Estou apenas dando a ti uma chance de ver como podes tapear mais do que alguns marinheiros... Menoren perceberá logo, pois sei que é um homem inteligente e vivido demais para ser iludido por muito tempo. Só quis testar a primeira reação dele ao ver-te, e creio que conseguiste enganá-lo!

- Posso tomar um banho? - perguntou Rukhai, trepando numa figueira sem a menor cerimônia - E poderei usar roupas de mulher? Há tempos não tenho um vestido...

- Podes, Rukhai, podes! - Heka divertia-se com o jeito travesso dela - Mas não saias na rua, ou algum de meus homens pode reconhecer-te! Perto deles, agora terás que ser sempre um menino!

- Heka, isto aqui é quase um palácio! - Akh continuava espantada com a casa - Como conseguiste tanta coisa? Duvido que tenha sido só com teu trabalho, em tão pouco tempo!

Fazendo um sinal para que a irmã chegasse mais perto e falando em egípcio, a fim de evitar os ouvidos curiosos de Rukhai, Heka confessou:

- Herdei muito dinheiro de minhas esposas! Fiz alguns negócios bem sucedidos também, antes de lançar-me ao mar. Quando aprendi o suficiente navegando, comprei meu barco e multipliquei o investimento! Tu devias ter visto a cara que fez meu antigo patrão... De empregado, virei seu maior concorrente! Tenho contado com a sorte, é claro, pois nunca perdi uma carga!

- E Menoren, ele sabe que tu és... - Akh fez um sinal significativo - Tu já contaste algo a ele?

- Sim e não... - Heka agarrou no ar um figo que Rukhai atirou, rindo - Ele já viu o suficiente, mas é discreto demais para fazer perguntas! Eu o trouxe de Kydonia, uma outra vila ao norte da ilha. Ele já está comigo há décadas, trabalhamos juntos antes de eu comprar meu barco. Convidei-o para trabalhar para mim e, desde que a esposa dele faleceu, comprei esta casa e trouxe-o para morar comigo. Agora ele está idoso mas, quando o conheci, era praticamente um menino...

- E ele nunca perguntou por que tu não envelheceste?

- Não, e adoro-o por isto! - Heka ficou triste de repente - Sei que ele não é como nós, um dia terei que vê-lo partir, e sofro com a idéia. Mas Menoren é um grande e fiel amigo... Às vezes penso no assunto e creio que teremos poucas oportunidades de conviver com outras pessoas assim...

Akh assentiu com a cabeça, em silêncio. Não podiam dar-se ao luxo de criar raízes por muito tempo em lugar nenhum, ou logo as pessoas perceberiam que eles não envelheciam, como ocorreu com ela em Éfeso. Ou então virariam lenda, como tinha acontecido nos séculos que perambularam pelos desertos. Na época ainda podiam contar com as superstições de povos ignorantes, mas numa cidade a situação era mais difícil. No máximo poderiam desfrutar algumas décadas de convivência. Depois, era preciso sumir, viajar para algum lugar onde ninguém sabia quem eram, e recomeçar de novo.

Menoren apareceu à porta avisando que os quartos estavam prontos e indicou-lhes o caminho. Akh ficou com o quarto mais próximo do de Heka e encantou-se com a vista do mar. Quando Menoren voltou com a água para os banhos e deixou-as a sós, Heka puxou-o a um canto e contou-lhe a verdade sobre os novos hóspedes. Menoren a princípio ficou assustado, temendo ter cometido alguma indiscrição. Heka tranquilizou-o, rindo, e logo Menoren dava gargalhadas quando ouviu as traquinagens que as duas haviam aprontado durante a viagem.

A pedido de Heka, Menoren comprou um vestido e sandálias novas para Rukhai e buscou um vestido especial para Akh no depósito pessoal do patrão. Espalhando o aviso de que não receberia visitas naquela noite, como costumava fazer sempre que chegava de viagem, Heka revirou seus cofres e separou jóias para a irmã, bem como alguns anéis para agradar Rukhai. Estava apegado à menina, gostava do jeito expansivo e divertido como ela se comportava, e decidiu presenteá-la por isso.

Quando as duas apareceram para jantar, Heka deslumbrou-se. Akh surgiu em toda sua feminilidade madura, linda como nos bons tempos em Mênfis, e Rukhai revelou a beleza adolescente que ocultava debaixo das roupas sujas de menino. Menoren não conseguiu ser discreto o suficiente, olhando-as boquiaberto, sem acreditar que aquelas beldades eram os mesmos carregadores fedendo a peixe que passaram pela porta horas antes. Rukhai parecia constrangida em aparecer vestida como mulher, e ficou ainda mais sem graça diante dos olhares dos outros três. Até Akh estava surpresa ao vê-la com os cachos negros brilhantes, o vestido colorido, o rosto limpo e usando os brincos de prata que guardava como última lembrança da família. Heka presenteou-as com as jóias, deixando ambas estupefatas.

- Mas... Isso é caríssimo! - Akh não conseguia crer no colar de ouro e pedras que o irmão colocava em seu pescoço - Heka, é maravilhoso!

Mais encantada ainda estava Rukhai com os novos anéis, tirando e pondo todos sem parar. Menoren serviu o jantar com cerimônia, como se estivessem em uma festa, e Heka praticamente teve que obrigá-lo a sentar-se para comer com eles. Rukhai logo desandou a rir sem parar, embriagada com o vinho doce, enquanto Heka não escondia o orgulho de poder oferecer um jantar como aquele. Desde os tempos da corte do rei não via a irmã tão ricamente trajada. Sabia que ela merecia muito mais, e desta vez estava em condições de proporcionar-lhe isso. Era o mínimo que poderia fazer.

Menoren desfiou histórias engraçadas ocorridas na cidade durante a ausência do patrão e Heka contou algumas aventuras da viagem, esticando o jantar por horas agradáveis. Rukhai foi a primeira a recolher-se, tropeçando. Menoren foi dormir em seguida, após certificar-se de que não precisavam mais de seus serviços, e os irmãos ficaram finalmente a sós.

- Rukhai é tão bonita! - comentou Akh - Não imaginava como ela seria sem aquelas roupas. Já é uma mulher! Às vezes penso se ela não gostaria de voltar a viver assim, como uma moça da idade dela deveria fazer, e arrumar um namorado...

Heka puxou a irmã para o colo, abraçando-a, e olhou-a profundamente nos olhos.

- E tu, minha irmã? - perguntou num sussuro - Não pensas em encontrar um novo amor?

Akh encarou-o sem responder, enrolando uma das longas madeixas dele entre os dedos. As lágrimas brilharam em seus olhos, mas lutou para contê-las.

- Não sei se um dia conseguirei amar de novo... - respondeu com um suspiro - No começo eu não acreditava que um dia pudesse me casar. Passei tanto tempo esperando por alguém especial, e esse alguém foi Imhotep! Ainda não o esqueci, talvez nunca esqueça! Para mim ainda é cedo para pensar sobre isso. Estou bem aqui contigo, saber que tu estás vivo e prosperando é suficiente! Um dia, quem sabe?

- E pretendes contar algo a Rukhai sobre nós? - Heka gostaria de ter a menina mais tempo por perto, porém não sabia se seria conveniente - Queres levá-la conosco ou preferes deixá-la aqui? Menoren pode tomar conta dela, providenciar-lhe uma boa educação...

- Veremos como ela reage a tudo isso primeiro - Akh decidiu - e deixemos que ela mesma resolva que vida quer levar. Estranhei quando ela pediu um vestido, e no fim achei-a linda! Apesar de tudo, Rukhai é vaidosa... Eu gosto dela, sinto pena em saber o quanto já sofreu. Não me atrevo a deixá-la sozinha novamente!

Heka puxou a irmã de encontro ao peito. Permaneceram em silêncio por um longo tempo, pensando em milhares de coisas. Akh finalmente decidiu que era hora de descansar e os dois separaram-se com dezenas de beijos. Minutos depois, contudo, Heka ouviu ruídos e sorriu quando sentiu a irmã enfiando-se sob suas cobertas. Adormeceram abraçados, lembrando de quando eram crianças em Abtu.

*************

Akh acordou com o irmão saindo para o depósito a fim de despachar as cargas. Rukhai levantou-se pouco depois, com uma ligeira ressaca. Akh descobriu que Menoren havia aprendido muito sobre ervas com Heka e passaram um longo tempo discutindo os efeitos de este ou aquele remédio. Quando ele foi preparar o almoço com a ajuda de Akh, Rukhai ficou gravitando em torno dos tachos pretextando que queria aprender alguma coisa, e aproveitou para beliscar a comida antes da hora. Heka voltou para almoçar, avisando que naquela noite precisaria receber alguns convidados para o jantar.

- São comerciantes e homens importantes com quem tenho muitos negócios! - explicou - Costumo oferecer um jantar a todos sempre que retorno à cidade, a fim de comunicar sobre a carga que tenho disponível. Ontem consegui mantê-los afastados, porém hoje preciso dar continuidade ao ritual... Não seria de bom tom deixá-los esperando!

Akh sentiu-se triste em ter que voltar a usar roupas de homem. Heka deu algumas peças de ouro e prata a Menoren para que comprasse tudo o que fosse necessário para o jantar, bem como algumas roupas adequadas para as duas - roupas de homem, bem entendido. Era necessário manter a farsa o máximo possível. Menoren não demorou muito a voltar do mercado, acompanhado por um carregador para trazer tudo o que havia comprado. Distribuiu as roupas novas - e finas - entre Akh e Rukhai, que puderam até escolher o que lhes ficava melhor, e rumou decidido para a cozinha, a fim de preparar o jantar.

Heka voltou pouco antes do horário combinado, para tomar banho e fazer a barba. Alguns convidados chegaram quase em seguida, outros viriam depois. Esperta, Rukhai agiu como se fosse um copeiro, servindo vinho aos recém-chegados com a maior naturalidade e mantendo-os entretidos enquanto Heka terminava de arrumar-se. Seguindo o exemplo de Rukhai, Akh falava pouco e sorria discretamente, oferecendo travessas com aperitivos. Percebia que Heka vigiava-as pelo rabo dos olhos, certificando-se de que tudo corria bem, mas os convidados nem sequer deram atenção às duas, mergulhando a atenção nas conversas sobre negócios, leis locais e culturas estrangeiras.

Enquanto os homens jantavam na sala, Akh e Rukhai comeram às pressas na cozinha com Menoren. O velho estava satisfeito e explicou que Heka certamente fecharia bons negócios naquela noite, tendo por base apenas a presença de tantos comerciantes.

- Meu mestre é esperto, - comentou Menoren com orgulho - ele sabe o que eles querem e traz sempre as melhores mercadorias! Nunca o vi ter prejuízos, e acho que tê-los deixado esperando por uma noite só aumentou a curiosidade de todos!

- E o negócio é tão lucrativo assim? - Akh estava impressionada com as jóias e roupas de alguns convidados - Todos parecem ricos demais!

- Nem todos são tão ricos! - Menoren permitiu-se uma risadinha maliciosa - Às vezes é mais importante parecer do que realmente ser... Faz parte do negócio mostrar-se próspero! Alguns deles têm apenas estas jóias que tu vês hoje aqui, enquanto outros possuem cofres cheios delas... E quem os vir e não os conhecer julgará que são todos igualmente ricos! E nem todos são comerciantes, alguns deles são governantes, militares, criadores de gado. Eles aparecem para comprar uma ou outra carga especial, obras de arte, jóias, ou simplesmente negociar o transporte de animais, a entrega de correspondências importantes... E há os que vêm só para aparecer, ouvir as novidades, passar o tempo...

Akh viu uma lógica enviesada em tudo aquilo, sentindo que ainda tinha muito o que aprender. Quando comerciava nos desertos, ou mesmo quando teve sua loja, jamais imaginou que os grandes negócios envolvessem tanta política. Parecia simples ser comerciante - vendia-se o que os outros precisavam e recebia-se em troca algo que se precisava. Mas Heka estava num patamar muito acima disso, lidando com grandes quantidades de produtos trazidas de lugares distantes, mercadorias finas e caras que nem todos poderiam comprar. Não era como vender punhados de ervas numa lojinha em Éfeso!

Assim que terminou de comer, Akh voltou a circular por entre os convidados. Agora que sabia a verdade, podia perceber quais eram os homens realmente influentes naquela reunião, os donos do poder e da riqueza. Estes estavam quase sempre com algum criado finamente trajado grudado à sua sombra, enquanto os mercadores menos ricos agrupavam-se em volta deles, rindo de suas piadas. Os poderosos eram, em certas ocasiões, menos polidos com os que os circundavam, pois decerto sabiam que estavam sendo bajulados. Heka era a única exceção, tratando todos com amabilidade. Mesmo os mais ricos davam um jeito de aproximar-se dele com sorrisos nos lábios, para cochichar a seu ouvido. Dependendo da resposta de Heka, alguns afastavam-se visivelmente satisfeitos, enquanto outros pareciam um tanto desconcertados. Akh não sabia sobre o que conversavam, desconfiava apenas que estavam fazendo propostas de negócios que Heka ora aceitava, ora recusava, daí as reações diferentes de cada mercador.

O que a deixava espantada era a desenvoltura com que o irmão, antes tão incapaz de ceder a qualquer jogo de interesses, agora circulava entre aqueles gananciosos comerciantes como se tivesse crescido entre eles. Definitivamente aquele não era o Heka Ma'At que ela conhecia - o sacerdote orgulhoso de Abtu, o curandeiro nômade de olhar sério e ouvidos atentos, o administrador criativo porém brigão de Saqqara. Esse Heka de Katsambas, vestido como um príncipe e trocando cochichos com políticos e mercadores, sorrindo falsamente, Akh não sabia quem era.

*************

Já era tarde quando o derradeiro grupo de convidados partiu. Assim que viu o último deles desaparecer pela calçada que descia a colina, Heka desabou sobre um divã adamascado perto da porta e, arrancando as sandálias, desandou a praguejar em idiomas que só Akh conseguiu entender. Provavelmente acostumado com outras cenas iguais, Menoren acudiu com uma taça de vinho temperado com ervas e mel, enquanto Rukhai encolheu-se assustada atrás de uma coluna.

- Malditos abutres! Chacais! - xingou Heka, voltando ao idioma local - Ah, o que preciso aturar para manter meu negócio! Juro que, se eu pudesse, arrancaria suas orelhas a dentadas! Bando de idiotas, saem daqui de estômago cheio e pensando que fizeram ótimos negócios enganando-me! Pois sim, veremos!

Akh sentiu-se mais tranquila ao ouvi-lo nervoso. Aquele sim era o Heka Ma'At que conhecia!

- Nada como um dia após o outro! - resmungou Heka, virando o vinho quase num único gole. Durante todo o jantar bebera muito pouco, preferindo permanecer atento ao que se passava - Ainda estou para ver quem haverá de passar-me a perna!

- As negociações desta noite pelo jeito não foram tão boas... - arriscou Menoren - Algum problema, senhor?

Heka percebeu Rukhai espiando por trás da coluna e resolveu moderar o tom.

- O de sempre, meu caro amigo, o de sempre! - disse, com um gesto entediado - Eles tentaram oferecer menos do que vale minha mercadoria... Aquela ladainha que tu conheces. Se não tivessem todos acorrido em massa a esta casa, nem estivessem todos tão preocupados em parecer o que não são, eu teria chegado a duvidar do meu sucesso... Mas bastava ver a agitação deles para saber que vou lucrar muito com esta última viagem!

Menoren apressou-se em recolher as travessas e Rukhai aproveitou para escapar para a cozinha. Vendo-se à sós com o irmão, Akh sentou-se ao lado dele e massageou-o nos ombros, como costumava fazer sempre que via-o nervoso. Heka espreguiçou-se como um gato manhoso.

- Perdão, esses jantares sempre me deixam entediado! - disse ele, num tom mais relaxado - Se não fossem uma necessidade, decerto que evitaria tudo isso!

- Eu bem que estranhei ao ver-te metido em tanta política! - riu Akh, desfazendo-lhe a trança - Tu nunca foste homem de diplomacia, de meias palavras...

- Ah, mas quem disse que nunca enfrentei alguns desses malandros? - Heka sorriu maliciosamente - Aqui em público é uma coisa, quando fico a sós com cada um deles é outra muito diferente! Mas eles nunca espalham isso, para não passar por vencidos... Todos vangloriam-se que obtiveram o que queriam, enquanto eu é que saio lucrando! Eles podem até falar que conseguiram me dobrar, mas pagam o que eu peço! Eu enfrento os piratas e trago as mercadorias mais caras, então eles são obrigados a jogar pelas minhas regras!

- Então é por isso que estás tão rico! - Akh parecia deliciada - Tu trazes coisas que todos querem mas que poucos trazem, e jogas com a ganância destes homens... Estou orgulhosa de ver! Sempre preferiste rolar pelo chão aos murros do que sorrir falsamente para conseguires o que queres...

O tom irônico de Akh não passou desapercebido ao irmão. Mesmo tendo ficado séculos sem vê-la, conhecia-a bem demais. E ela também o conhecia. Levantando-se sorrateiramente para verificar se Menoren ou Rukhai não estavam por perto, Heka voltou ao divã, falando baixinho em egípcio por precaução:

- Há algo que preciso perguntar-te! Tu também mataste um de nossa espécie... - percebendo como ela tentou levantar-se para fugir ao assunto, Heka puxou-a de volta com firmeza - Por favor, escuta-me! Sei que não gostas de lembrar disso, porém preciso saber o que sentiste, o que houve contigo depois daquilo!

- Como, o que houve? - Akh olhou-o sem entender, não disfarçando a impaciência - Eu o matei! Cortei-lhe a cabeça e ele não levantou-se mais, só isso!

- Sim, mas o que aconteceu então? - Heka estava disposto a insistir - O que sentiste, o que viste? Por favor, eu preciso saber...

Akh suspirou e, vendo que a curiosidade dele era séria, recontou com o maior número de detalhes possíveis o que ocorreu, ou pelo menos aquilo de que ainda podia lembrar-se. Falou sobre como o vento moveu-se sozinho a seu redor, sobre as luzes estranhas que estalavam, as vozes que ouviu e a horrível sensação de sentir seu próprio corpo ser tomado por uma força invisível e indomável. Heka acompanhou tudo com atenção.

- Pensei que eu fosse explodir! - disse Akh - Nada fazia sentido, eu ouvia e via coisas! Era como se nem fosse eu mesma...

- É isso! - interrompeu Heka de repente - É isso mesmo o que senti! Parecia que não era eu, e às vezes ainda acho que não sou!

- Tu também? - Akh arrepiou-se - O que sentes? Tu também tens pesadelos?

- Tenho, mas são coisas estranhas, que sei que nunca vi ou vivi... Ainda ouço vozes!

- Então não sou só eu! - Akh parecia ter tirado um peso dos ombros - Pensei que tivesse enlouquecido! É como se aquele homem horrível me perseguisse do Reino dos Mortos...

- Não, eu sinto o mesmo! - Heka abraçou-a - Desde que matei o primeiro, senti forças novas agindo em mim! Às vezes me vejo fazendo ou pensando coisas que eu não costumava pensar ou fazer antes, isso incomoda-me! E quando matei o outro depois, tudo piorou... São como demônios lutando dentro de mim, e tenho que vencê-los diariamente!

- Ah, meu irmão, é assim mesmo que sinto! - Akh apertou-se contra ele - Como se ele estivesse dentro de mim e eu precisasse fazê-lo calar-se! Será que todos sentimos essas coisas?

- Não sei... Talvez!

- Imhotep nunca falou-nos sobre isso!

- Imhotep nunca matou outro de nossa espécie! Ele nunca soube o que é decapitar alguém!

Heka sentiu Akh afastar-se involuntariamente. Sim, Imhotep ensinou-lhes tudo o que sabia, mas ele nunca soube tudo. Ele fugiu assustado quando seu mestre decapitou outro Imortal e nunca mais viu o tal mestre. Akh e Heka eram inexperientes, nunca representaram uma ameaça e confiavam nele completamente. Quando encontrou seu próximo Imortal, a sorte de Imhotep tinha acabado e ele não escapou com vida.

- É por isso que hoje sou capaz de lidar com esses mercadores, - explicou Heka, mudando o rumo da conversa sem sair do assunto - pois aprendi de repente a mentir! Aprendi a manipulá-los, a enganar, a representar... Nós mentíamos quando andamos aquele tempo todo no deserto, porém agora é pior! Às vezes as palavras saem sem que eu pense realmente sobre o que estou dizendo. Eu não era assim antes!

Akh pensou por alguns segundos antes de perguntar:

- Tu disseste que aquele primeiro Imortal que encontraste tentou enganar-te... Que mentiu para ti. Achas que essa tua mudança tem algo a ver com ele?

- Estou quase certo disso! - Heka confessou, sério - Nos primeiros dias senti tonturas, tive vontade de arrancá-lo de dentro de minha cabeça... Quase podia ouvi-lo rindo de mim! A primeira coisa que fiz quando encontrei uma caravana foi desfiar um monte de mentiras tristes sobre como fui parar sozinho no deserto... Senti-me péssimo, mas as palavras pulavam de minha boca sem parar! Quase não reconheci minha voz... Tu sabes que nunca gostei de inventar coisas quando o assunto é sério! E o pior é que todos acreditaram em mim, tudo fazia sentido para eles! Foi horrível perceber que eu não tinha controle sobre minhas próprias palavras...

- E hoje? - Akh notou que ele tremia - Ainda sentes o mesmo?

- Não como antes! - Heka afastou-a e olhou-a nos olhos - Aos poucos consegui controlar isso, não é tão forte agora. Porém acostumei-me a criar histórias complicadas quando preciso ocultar meu passado, quando me pressionam. Virou um hábito... É como se uma máscara cobrisse meu rosto e minha mente produzisse detalhes que ninguém seria capaz de dizer que foram inventados!

Heka levantou-se e serviu-se do vinho temperado que Menoren havia deixado num jarro de prata.

- Na vida que levo, todos querem saber com quem estão lidando, fazem perguntas para certificar-se de que podem confiar seus negócios a estranhos. Por onde passei, inventei uma vida diferente. Aqui em Katsambas todos acham que sou filho único e herdei os negócios de minha família. Só Menoren sabe parte da verdade! E tu, para quem jamais consegui mentir...

Agora Akh compreendia tudo com mais clareza. Depois de ter decapitado Deasir ela ouviu-se dando ordens aos homens da caravana, tomando decisões pelo grupo, carregando caixas enormes. Nunca fora de esconder-se à sombra de ninguém, tinha até fama de encrenqueira, mas aquilo foi diferente. Às vezes flagrou-se tendo pensamentos maldosos, calculistas, e ficou assustada. Em Éfeso esteve em paz por décadas, mas no navio para o Egito viu-se com raiva da mulher que reclamava do cheiro ruim, planejando até jogá-la ao mar. Em outros tempos, o máximo que faria seria arrumar uma bela discussão, quem sabe trocaria uns tabefes com a outra - jamais teria idéias criminosas. Talvez fosse a energia pesada de Deasir ainda agindo em sua mente!

Uma risada de Rukhai na cozinha despertou os irmãos dos pensamentos em que haviam mergulhado sem perceber. Heka voltou-se da janela junto à qual tinha permanecido e sorriu olhando para o vinho no fundo da taça.

- Queres ouvir uma coisa engraçada? - perguntou de repente à irmã, com uma careta - Aqui em Katsambas não há casas da alegria decentes...

Akh olhou-o por alguns segundos sem entender. De repente começou a rir alto, e Heka Ma'At acompanhou-a. Logo estavam às gargalhadas, cantando juntos uma música obscena que Heka tinha aprendido na primeira noite em que foi à casa da alegria de Saqqara, com Imhotep. Os dois voltaram completamente bêbados naquela noite, e foi Akh quem cuidou de ambos. Cantar aquela música agora era como uma catarse.

Rukhai e Menoren assomaram à porta com visível curiosidade. Viajado e acostumado ao palavreado estrangeiro do patrão, Menoren compreendeu algumas frases em egípcio e tentou tirar Rukhai da sala, mas já era tarde - ela conhecia uma música parecida e sabia palavrões o suficiente para entender do que se tratava, rindo até não poder mais. Heka pediu que Menoren trouxesse mais vinho e, desta vez, Akh decidiu beber também, incentivando todos a sucessivos brindes. Heka começou a batucar numa banqueta estofada, desfiando novas canções obscenas e levando todos às gargalhadas. Incentivado pela bebida, Menoren desenterrou um alaúde e acompanhou-o, enquanto Akh e Rukhai dançavam e batiam palmas no meio da sala. Heka juntou-se às duas com a banqueta debaixo do braço, inventando passos estranhos e quase fazendo Rukhai cair de tanto rir. Akh enchia os copos sem parar enquanto dançava, bebendo como nunca tinha feito antes.

Perdendo de vez a compostura e com a voz pastosa dos ébrios, foi a vez de Menoren cantar músicas tão indecentes quanto as de Heka, relembrando os tempos em que era um marinheiro e frequentava tabernas suspeitas. Rukhai desabou rindo num divã e acabou por mergulhar na inconsciência da bebedeira, sem que os outros sequer dessem por sua falta. Akh dançou com a taça na mão, acompanhando Heka em uma coreografia caricata, até que ambos caíram sentados no tapete, rindo um do outro e dos sons ridículos que Menoren agora tirava do alaúde, completamente grogue.

Vendo os primeiros raios do sol, Menoren ainda encontrou o caminho para seus aposentos, enquanto Akh e Heka acabavam com o resto do vinho, largados pelo chão e falando asneiras. Akh conseguiu subir para um sofá e atirou almofadas no irmão, quando este tentou puxá-la pelo saiote para terminar de contar uma piada. Falando e rindo sozinho, Heka agarrou-se às almofadas e desmaiou no tapete, roncando alto, mas Akh nem percebeu - já estava adormecida.

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