As Aparências Enganam


Mediterrâneo - 2264 a.C.

Quando aportaram em Rodes, Akh nem sequer teve tempo de desembarcar. Sentiu imediatamente a aproximação de um Imortal, desta vez bem perto, e seu sangue congelou-se nas veias. Parecia ser um dos Imortais que pressentiu em Halicarnasso e, se aquela criatura também fosse um dos que passaram por Kós, provavelmente estava em seu encalço, talvez até soubesse para onde ela ia!

A presença do outro rodeou-a por algumas horas, quase certamente esperando no porto para uma emboscada, e Akh não arredou pé da cabine. Por sorte a criatura não ousou entrar em seu navio e, enquanto permanecesse escondida, estaria a salvo. Só ao anoitecer o outro pareceu cansar-se de esperar e sua vibração sumiu na distância. Akh decidiu alterar seus planos de viagem imediatamente, tomando outro navio qualquer, mesmo que tivesse que retornar a Éfeso. A partir de Rodes enfrentariam mar aberto e havia sempre o risco de piratas. Quem garantia que aqueles Imortais não atacariam seu barco atrás de sua cabeça?

Após certificar-se de que o outro Imortal não voltaria, Akh desceu cautelosamente para o porto. Muita gente ainda circulava àquela hora por ali, a maioria marinheiros e comerciantes. Akh pediu informações discretamente, tentando descobrir algum navio que não fosse para o Egito. Conseguiu afinal encontrar um que rumaria para a ilha de Creta logo pela manhã. O capitão concordou em levá-la, pois estava com poucos passageiros. Tentando não chamar a atenção, Akh levou suas coisas para o novo barco aos poucos, indo e vindo várias vezes com a maior naturalidade possível, e não comunicou ao antigo capitão que não seguiria mais viagem. Temia que algum marinheiro indiscreto desse com a língua nos dentes, avisando ao Imortal que a perseguia sobre seu novo destino, mas ninguém pareceu notar seu sumiço.

Com grande alegria, Akh partiu rumo a Creta em segredo.

*************

Creta era uma ilha maior, com uma arquitetura rica e uma cultura florescente. Encantada com o que viu, Akh decidiu permanecer um tempo por ali. Se tentasse ir para o Egito agora, poderia reencontrar os outros Imortais à sua espera. Se voltasse logo a Éfeso, eles poderiam localizá-la simplesmente descobrindo o caminho que seu primeiro barco havia feito desde o início da viagem. Melhor esconder-se naquela ilha um pouco fora da rota original e torcer para que eles desistissem de procurá-la, antes de recomeçar a viagem.

Havia desembarcado na vila de Palaiokastro, onde o comércio era intenso e muitos navios chegavam e partiam, vindos de diversos lugares. O clima era agradável, a natureza mostrava-se exuberante, e Akh alugou um quarto numa pensão perto do porto, de onde podia ver o cais e vigiar a rua. A princípio saiu pouco, ainda com medo de encontrar seus perseguidores, mas após três semanas sentiu-se à vontade o bastante para andar pela praia e comprar os coloridos tecidos que estavam expostos nas barracas do mercado, aparentemente a última moda local. Quando discutia acaloradamente com um vendedor sobre o preço de uma bela peça tecida em lã colorida, Akh arrepiou-se - havia um Imortal por perto! O alarme vinha da direção do porto, então provavelmente tinham encontrado sua pista!

Sem sequer prestar atenção na resposta do vendedor, Akh largou o tecido para trás e começou a correr para casa, desesperada, pensando apenas em esconder-se. De súbito, um grito explodiu por sobre o vozerio confuso do comércio, paralisando-a.

- AKH! AAAAKH!

Não conseguia mover os pés, sentiu-se pregada ao chão.

- AKH! Onde você está? AAAAKH!

"Não é, não pode ser! Não é..." pensava, olhando para todos os lados sem conseguir enxergar nada, as pernas tremendo. Aquela voz, aquela vibração...

- Heka Ma'At... - ouviu-se murmurar e, antes sequer de raciocinar, começou a gritar com toda a força que podia - HEKA! Estou aqui, Heka! HEKAAAA!

A vibração aproximava-se, podia perceber isso. Tentou correr na mesma direção, empurrando todos os que encontrava pelo caminho, desesperada, furiosa, frustrada. De repente viu, empoleirado sobre um caixote, com uma mão sobre os olhos para protegê-los do sol, o próprio Heka Ma'At, procurando-a com o mesmo desespero, gritando seu nome, a longa trança negra dos cabelos balançando em suas costas. Akh parou de sopetão, encarando-o como se fosse uma miragem, e não sentiu-se capaz de chamá-lo. Sua voz, seu corpo não a obedeciam, e pensou que fosse desmaiar.

Viu quando ele finalmente a enxergou no meio do povo, seu sorriso abrindo-se radiante como o sol, acenando-lhe com os dois braços. Num pulo ágil, Heka logo estava correndo em sua direção, empurrando tudo e todos como ela mesma tinha feito. Akh sentiu os joelhos amolecerem e só não caiu porque Heka alcançou-a a tempo, tomando-a nos braços e cobrindo-a de beijos.

- Minha irmã! Akh, minha irmãzinha... - repetia ele sem parar, as lágrimas escorrendo - Minha irmã, que saudade! Oh, Akh... Minha querida!

Akh olhava-o sem acreditar, alisando aquele rosto molhado com mãos trêmulas, incapaz de mais nada. Finalmente abraçou-o com força, um soluço liberando anos de saudade e solidão. Permaneceram assim algum tempo, nem saberiam dizer quanto. Beijavam-se e abraçavam-se sem parar, chorando, rindo e repetindo o quanto haviam sentido falta um do outro.

- Procurei-te por tanto tempo, sofri tanto para te encontrar! - gemia Akh - Andei atrás de cada notícia, segui cada rumor, atravessei cidades e desertos... Achei que nunca mais te veria vivo!

- Eu também sofri, há tantas coisas que me aconteceram e que preciso contar-te! - Heka olhava-a com adoração - Tentei encontrar vossa pista, mas sempre me escapávais! Onde está Imhotep? Não o sinto... Há quanto tempo vós estais aqui?

Uma sombra dolorida passou pelo rosto de Akh, e Heka percebeu. Seus olhos encheram-se novamente de lágrimas antes mesmo que ela dissesse, num fio de voz:

- Imhotep morreu há mais de sessenta anos. Foi um de nós, perto de Yamkhad...

Heka engoliu o choro com raiva. Precisavam conversar e aquele lugar não era apropriado. Akh levou-o para seu quarto, onde podiam falar sem curiosos por perto. Aos tropeções, contaram um ao outro como haviam viajado, os lugares por onde tinham passado, tudo o que fizeram nos três séculos de separação.

Heka contou como foi forçado a casar-se com uma viúva sciasu pelo simples fato de ter caído nas teias amorosas da infeliz, deitando-se com ela sem saber que assim teria que assumi-la e criar seus filhos. Se não o fizesse, sua cabeça seria entregue à viúva num baú! Lógico que o casamento foi um desastre e Heka riu ao explicar como simulou a própria morte para escapar, indo depois para a Ásia. Lá encontrou um Imortal, um mercenário fenehu que fingiu-se de amigo e depois tentou decapitá-lo, e Heka viu-se forçado a lutar, vencendo por pura sorte. Só que sua Iluminação foi vista por várias pessoas e Heka fugiu novamente, até conhecer uma asiática por quem se apaixonou.

Desta vez, casou-se por vontade própria e decidiu voltar ao Egito com a esposa, para apresentá-la à irmã e ao cunhado. Sua felicidade durou pouco, pois em Hazor sua mulher foi assassinada por outro Imortal fenehu, amigo do primeiro, e bem diante dos seus olhos, perto do mercado. Cego de fúria, Heka decapitou o outro Imortal em público e fugiu para Tiro, pensando em tomar um navio para o Egito, mas acabou indo parar em Ugarit, onde tempos depois casou-se com uma jovem mitana. Finalmente conseguiu voltar para o Egito com a nova esposa, atrás de Akh e Imhotep. Só que, em quase três séculos, o casal de Imortais havia mudado tantas vezes que foi quase impossível traçar o caminho que haviam feito, e sua esposa acabou falecendo ainda no Egito, em Pelusa, sem conhecê-los. Heka dedicou-se então a procurar pela irmã e o cunhado, desistindo quando chegou novamente a Tiro. Muito tempo havia-se passado, não fazia sentido continuar a busca, e Heka resolveu arriscar-se ao mar, como ajudante num navio, na tentativa de encontrá-los em alguma cidade por onde passasse.

Akh contou por alto como haviam seguido todas as pistas a respeito dele até Yamkhad, onde Imhotep decidiu fixar-se e acabou morrendo, justamente quando tentava recomeçar a vida. A partir daí, Akh entrou em detalhes explicando como fugiu, conseguiu vencer Deasir, foi parar em Éfeso e, quando tentava voltar ao Egito, foi perseguida pelos Imortais desconhecidos.

- Não sei quem são, nem sequer os vi! Podem até ser vários, não apenas dois, não tenho certeza! Hoje quase morri de susto quando senti tua vibração, por um momento pensei que fosse algum deles novamente!

- Acredito que sei quem são - Heka franzia as sobrancelhas, irritado - e fizeste muito bem em fugir! São provavelmente dois malditos fenehus, talvez amigos daqueles que matei! Ouvi alguns rumores... Uma corja de assassinos, ladrões, víboras! Estão atrás de mim por vingança, pelo que entendi o primeiro que decapitei foi mestre dos outros. Por sorte ainda não os encontrei! Não creio que eles saibam que és minha irmã, talvez estivessem apenas caçando cabeças...

Akh arrepiou-se. Ainda não tinha superado o trauma de ter decapitado Deasir e degolado o outro bandido no deserto, às vezes chegava a ter pesadelos com eles. Heka percebeu e abraçou-a com força.

- Sinto muito, fui grosseiro! - consolou-a - Tu passaste por tantas dificuldades, sofreste tanto! Por sorte enfim nos encontramos, e a partir de agora ficaremos juntos novamente!

- Mas tu és um marinheiro!

- Sim, e estou ganhando bem! - o rosto dele iluminou-se - Comprei até uma casa aqui nesta ilha, numa vila chamada Katsambas, e outra em Mileto! Tenho meu próprio barco, estou trazendo linho e cerâmicas do Egito e depois voltarei para lá com madeira e lã!

- E como irei contigo? - Akh sabia que mulheres eram mal-vistas em navios mercantes, e em geral só eram admitidas como passageiras - Vou fazer o quê num navio? Cozinhar?

Heka coçou a cabeça. A vida no mar era perigosa, mesmo para um homem. Tinha alguns contratos a cumprir, seus marinheiros dependiam das viagens para viver. Mas também não podia deixar Akh para trás logo agora, ainda mais com outros Imortais em seu rastro e sem Imhotep para protegê-la. Por fim, decidiu-se:

- Tu irás comigo para minha casa em Katsambas, onde devo passar alguns dias negociando as cargas que levarei para o Egito. Enquanto isso, pensaremos numa saída! Vou agora ao porto, conferir se está tudo como ordenei, e volto para passar a noite aqui contigo, se não te incomodas!

Akh abraçou-o com força, com medo de deixá-lo ir e perdê-lo novamente. Heka finalmente conseguiu acalmá-la e sair, e Akh correu a providenciar um jantar para quando ele voltasse. Passaram a noite em claro, contando detalhes de suas aventuras, e só adormeceram quando faltava pouco para o sol nascer.

*************

- Perdi completamente a noção do tempo, preciso correr ao porto! - Heka saiu sem sequer barbear-se ou comer, os cabelos desarrumados caindo em cascatas negras sobre as costas.

Acordaram tarde, depois da longa noite de conversa, e certamente os marinheiros de Heka deveriam estar à sua espera. Akh aproveitou para arrumar as coisas para a viagem, embarcaria logo que o irmão terminasse os preparativos com a carga. Às vezes, ainda excitada com a alegria do reencontro, ria sozinha e cantava em voz alta. A única coisa que perturbava-a era imaginar como viveria ao lado do irmão, num barco.

Se os marinheiros soubessem que ela seria par constante de Heka à bordo, com certeza abandonariam o serviço. Diziam que mulheres atraíam piratas, além de provocar a ira dos deuses marinhos. Na verdade não havia trabalho para mulheres num navio, e a simples visão de uma fêmea poderia perturbar os marinheiros após algum tempo no mar. Akh sabia disso, pois durante a viagem até Rodes e depois, até Creta, notou que vários marinheiros olhavam-na com insistência, quando pensavam que ela estava distraída, e podia-se perceber que a intenção deles não era ingênua. Além disso, mulheres tinham que ser acomodadas em cabines separadas, era preciso controlar o linguajar para não ofendê-las e algumas inclusive eram cheias de manias e frescuras. Como uma que viajou com Akh entre Mileto e Halicarnasso e vivia reclamando do cheiro de suor e de peixe morto. Na época ainda um pouco enjoada com o balanço do barco, Akh ficou tão irritada que chegou até a pensar em atirá-la ao mar no meio da noite!

Pouco depois Akh foi acertar as contas de sua estadia e encontrou a proprietária da pensão discutindo com um menino de no máximo uns quinze anos, que queria um quarto para passar a noite.

- Por favor, senhora! - implorava ele numa voz fina, os olhos enchendo de lágrimas diante da recusa - É só por hoje, posso dormir em qualquer canto!

- Pois vais dormir no teu navio, moleque! - teimou a mulher - Não tenho quartos e pronto!

- Eu devo sair ainda hoje, senhora! - interrompeu Akh, com pena da cara de desespero do menino - Meu irmão veio buscar-me, logo embarcaremos!

A mulher olhou de Akh para o menino, como se desconfiasse dele.

- E por que queres dormir aqui, pequeno? - perguntou a proprietária por fim - Acaso aprontaste alguma e teu capitão te expulsou? Aqui só aceito gente de bem...

- Não, senhora! - o rapazinho parecia a ponto de chorar - Não fiz nada, apenas tenho medo! Os homens do navio olham-me com jeitos estranhos, incomodam-me, não confio neles! E sou muito pequeno para defender-me... Por favor, deixa-me dormir aqui por hoje, amanhã vou-me embora cedo, eu juro! Eu posso pagar!

Akh analisou-o de cima a baixo, curiosa. Nos barcos em que viajou não tinha visto meninos tão novos a bordo, e aquele era um lindo garoto. Reparou que ele tinha cílios longos e uma boca delicada, certamente iria tornar-se um belíssimo rapaz em pouco tempo. Mas Akh reparou também que ele tinha marcas arroxeadas no braço, como se alguém o tivesse agarrado à força, e arranhões no pescoço. Fez sinal à dona da pensão para que esperasse um momento e chamou o garoto à parte.

- Estou notando que alguém maltratou-te ultimamente - disse Akh, apontando discretamente para os hematomas logo acima dos cotovelos dele - e, se foi castigo porque tu fizeste algo errado, seria melhor dizeres logo! Acaso roubaste algo?

- Não, longe de mim tal coisa! - indignou-se o menino - Mas sou novo, sou pequeno... Os outros homens zombam, propõem coisas indecentes... Desculpe, mas não deveria dizer nada à senhora! É muito feio!

Akh compreendeu de repente que o menino devia ter sido assediado sexualmente, e seu coração apertou-se. Já tinha visto com tristeza, nas caravanas, um ou outro menino bonito tornar-se alvo de rapazes mais velhos, e mesmo em Abtu e Saqqara tinha ouvido rumores de rapazolas que deitavam-se com homens em troca de presentes ou proteção. Heka inclusive confessou-lhe que na casa da alegria de Saqqara moravam dois meninos que vestiam-se como mulheres para atender clientes. Apesar de jamais ter-se sentido atraído por eles, Heka foi forçado a admitir que os dois eram bastante cobiçados e um deles inclusive poderia passar por uma linda menina na rua.

- Se eu não soubesse quem era - disse ele uma vez, rindo - certamente olharia quando ele passasse! O diabinho tem corpo de mulherzinha, fala fino, anda requebrando os quadris... Enganaria qualquer um!

Akh sentiu pena do menino à sua frente, apoiando-se ora num pé, ora no outro, impaciente por voltar à negociação com a dona da pensão.

- Acho que sei o que está a passar-se contigo - disse ela enfim - e compreendo teus receios. Pois vou convencer a senhoria a aceitar-te por hoje, desde que prometas que não te meterás em encrencas! Tu devias arrumar outro serviço, ao invés de te arriscares assim! Um dia, poderás encontrar alguém que não te deixe escapar tão fácil!

O menino olhou-a encabulado, sem responder. Akh conversou então com a dona da pensão, explicando-lhe discretamente os receios do garoto, e ela acabou por amolecer, penalizada. No final, combinaram que ele ficaria no quarto que Akh desocuparia naquela tarde. Após acertar as contas com a senhoria, Akh convidou o menino a almoçar com ela e preparou um almoço no fogareiro do quarto, com o resto do que tinha guardado. Pensava em talvez convencer o irmão a levar o coitado para Katsambas, dando-lhe serviço em seu barco.

Heka chegou tarde para almoçar, atarantado com os últimos preparativos da viagem, e espantou-se ao encontrar a irmã na maior conversa com o garoto.

- Este é Rukhai, e ele está procurando serviço em algum barco... - apresentou Akh rapidamente, preparando-se para chantagear Heka se fosse necessário - Tu terias alguma vaga para ele?

Heka olhou Rukhai de cima a baixo, coçando a cabeça. Não era um garoto forte nem alto, não tinha músculos suficientes, talvez estivesse até subnutrido. Parecia até uma menina desleixada, em seu saiote muito comprido e sua blusa grande demais, os cabelos encaracolados e mal cortados caindo no rosto por sob o lenço colorido que usava na cabeça. Heka ia abrindo a boca para responder que não sabia o que fazer por ele, mas parou antes de dizer qualquer coisa. Franziu a testa e começou a rodear Rukhai, examinando-o com mais atenção. Os olhos do menino, grandes e assustados, eram também bonitos e inteligentes. Heka tomou-lhe as mãos finas e viu que, apesar das unhas sujas, ainda não tinham calos. Segurou uma mecha dos cabelos dele entre os dedos, e logo largou-a sem dizer nada.

Rukhai aguentou a inspeção em silêncio, encolhendo-se e olhando para Akh em busca de socorro. Ela fez sinal de que tudo ficaria bem. Ainda de cara fechada, Heka coçou novamente a cabeça e olhou para a irmã com a mesma curiosidade, deixando-a sem entender nada. Quando ele começou a rodeá-la como fizera com Rukhai, Akh não conteve um risinho nervoso.

- Heka, meu irmão, que tens? - perguntou - Estás a olhar-nos de um jeito estranho!

O rosto de Heka aos poucos modificou-se e ele abriu um grande sorriso, olhando ora para Akh, ora para Rukhai. O menino corou e abaixou os olhos.

- Acabo de ter uma idéia! - disse Heka afinal - Só não sei se te agradaria, minha irmã... Mas acho que encontrei uma solução para nossos problemas, inclusive para o dessa criança aqui! Agora deixai-me comer, que explico-vos tudo com calma! Estou a morrer de fome!

Mastigando o resto da comida que tinham guardado para sua chegada, Heka continuava a olhar de um para outro com um risinho maroto, enquanto Akh explicava-lhe por alto os problemas que Rukhai havia enfrentado, tentando preencher o silêncio enervante. Só quando ela ameaçou arrancar-lhe o prato da frente foi que Heka decidiu contar seus planos.

- No meu barco, não teremos problemas - disse, apontando a colher para Rukhai - pois sempre cuidei para que meus homens ganhassem o suficiente e tivessem tempo de divertir-se em cada porto. Já viajei em barcos onde os homens atacavam até galinhas... AI! - Akh deu-lhe um beliscão, mas Heka não se fez de rogado - É verdade, Rukhai já deve ter visto isso! Não viu, Rukhai?

O menino fez um sinal afirmativo com a cabeça, corando até a raiz dos cabelos. Heka continuou:

- Pois bem, se um homem não tem tempo nem dinheiro para procurar mulheres, começa a enxergá-las até onde não existem, ainda mais no mar, com sol na cabeça. Não gosto disso, faço questão de que meus marinheiros se resolvam em terra e fiquem alertas na viagem! Uma vez levei uma viúva, uma passageira, de Tiro para o Egito no meu barco, e não tive problema algum. Se eu levar meninos para trabalhar, certamente serão respeitados!

Rukhai sorriu timidamente em agradecimento, os olhos grandes brilhando. Akh abraçou Heka, enchendo-o de beijos, mas ele afastou-a com um sorriso malicioso.

- Só que tem um detalhe... - começou Heka, encolhendo-se para o lado, já preparando-se para o que viria a seguir - Eu falei MENINOS, não mulheres para trabalhar! E tu não poderias ficar conosco no barco à toa, Akh! Mas...

- Mas o que, Heka Ma'At? - ela fuzilou-o com o olhar, pressentindo alguma armadilha - Por acaso tu queres abandonar-me aqui? Tu bem sabes por que preciso permanecer a teu lado!

- É que, se tu fosses homem, seria mais fácil! - Heka desviou o braço do tapa que ela tentou acertar-lhe, rindo - Mas tu cismas em ser mulher...

Akh ia levantando a mão para estapeá-lo novamente quando percebeu que Heka tinha um plano, e conteve-se para não assustar Rukhai, que olhava de um para outro com visível ansiedade.

- Então, - perguntou, desafiando o irmão - o que queres que eu faça? Já vi que tens algo admirável em mente, estás apenas a torturar-me! Vamos, diga-me o que pensas! Se não posso ser mulher, que serei eu? Homem?

Heka continuou encarando-a cinicamente. Rukhai não conteve uma risadinha quando Heka sorriu para ele, como se dividissem uma piada que ela não havia percebido. Akh encarou Rukhai com raiva infantil, sentindo-se uma tola, mas logo amoleceu ao ver como os olhos dele arregalavam-se novamente de susto, os longos cílios parecendo querer tocar as sobrancelhas. Por um segundo, chegou até a compreender porque os homens o perseguiam... E só então entendeu.

- Como não vi isso antes! - murmurou ela, logo pulando sobre Rukhai e arrancando-lhe o lenço da cabeça, revelando uma bela cabeleira negra, cheia de cachos - Tu nunca foste homem! Tu és uma menina, isso sim!

Rukhai pulou da banqueta em que estivera e tentou cobrir com as mãos os cabelos que desabavam por seus ombros, mas Akh foi mais rápida e, puxando pela gola da blusa, apalpou-lhe o corpo - Rukhai era uma moça, com seios pequenos e cintura fina disfarçados sob o tecido grosso. Heka quase desabava do banco de tanto rir.

- Foste muito esperta, Rukhai! - disse ele - Até eu quase me deixei enganar!

- Como fui idiota! - Akh fuzilava os dois com o olhar - Cheguei a ter pena dessa criatura! Que tolice, que palerma que sou!

- Vamos, Rukhai, dize lá, - perguntou Heka, tentando controlar o riso - há quanto tempo tens pregado esta mentira? Quantos anos tens?

Rukhai deu alguns passos rente à parede, aproximando-se de Heka por medo que Akh avançasse. Sem tirar os olhos dela, respondeu baixinho:

- Tenho dezoito anos, fugi de casa há quatro anos porque meu pai quis casar-me com meu primo... Mas ele era velho e feio, me dava nojo! Meu pai dizia que ele era rico... Eu não queria casar, queria viajar e conhecer o mundo... Perdão!

Akh continuava a encará-la com raiva. Rukhai fez menção de pegar suas coisas para ir embora, mas Akh não permitiu.

- Agora tu ficas aqui, onde pensas que vais? - disse ela, arrastando Rukhai pelo braço de volta à mesa - Logo zarparemos e tu não tens onde dormir! E então, Heka, que faremos com ela?

Heka olhou de uma para outra com um sorriso. Sabia que a irmã tinha coração mole, por mais irritada que estivesse jamais permitiria que Rukhai saísse sem ajudá-la. Falou por fim:

- Estou com tudo pronto para a viagem, aguardaremos apenas a mudança da maré para partir. Se Rukhai quiser manter o disfarce, poderemos levá-la facilmente conosco. Acho que seria melhor do que abandoná-la por aqui, à mercê da sorte. O problema na verdade agora é contigo, Akh! Se ao menos tu te disfarçasses como Rukhai...

Akh não conteve uma exclamação de indignação.

- Não achas que já temos problemas demais com ela? - perguntou - Para que tu queres DUAS mulheres disfarçadas de homem? E eu estou um tanto velha para passar por um menino, não achas?

- Nem tanto, minha cara! - Heka levantou-se e rodeou-a novamente com olhar crítico - Se tu usares roupas largas como as de Rukhai e cortares teus cabelos um pouco, ou no mínimo os ocultares com um lenço, acho que poderíamos ter aqui outro rapazinho!

Akh bufou e xingou por algum tempo, mas os argumentos de Heka eram lógicos. Rukhai já estava há quatro anos disfarçada e disse que só uma vez, há dois anos, descobriram que ela era uma mulher, quando o capitão levou os homens de surpresa a um bordel, para comemorar uma viagem bem sucedida. Uma das moças logo tentou agarrar Rukhai e percebeu seus seios, alardeando o fato e forçando-a a fugir como louca pela cidade, para escapar da vingança dos marinheiros enganados. Ainda assim, alguns homens queriam dormir com "o belo menino", como havia ocorrido na noite anterior - um marinheiro quis agarrá-la à força, pensando que ela era mesmo um rapaz.

Alegando que seria melhor se seus homens vissem Akh já disfarçada desde o primeiro encontro, Heka correu ao mercado para comprar roupas de homem. Trouxe ainda uma navalha, mas Akh não permitiu que ele lhe cortasse os cabelos.

- Se tu usas tua trança, farei o mesmo! - teimou ela - Uso no máximo um lenço!

Rukhai sujou as roupas novas esfregando-as pelo chão, dizendo que se parecessem usadas ficariam mais autênticas. Heka trançou rapidamente os cabelos da irmã, improvisando um longo lenço com um pedaço de um velho vestido de Akh, apesar dos protestos dela, e sujou-a no rosto e nas mãos com fuligem do fogareiro. Rukhai usou o resto do vestido rasgado para fazer uma faixa apertada sobre os seios de Akh, evitando que seus contornos aparecessem sob a blusa. Depois de devidamente vestida, Akh olhou-se no espelho e sentiu-se horrível. A fuligem parecia a sombra de um bigode adolescente sobre sua boca, o saiote balançava pouco abaixo de seus joelhos e deixava suas canelas à mostra.

- Nunca enganarei ninguém desse jeito! - choramingou - Pareço o que sou, uma mulher vestida de homem! Nunca dará certo!

Heka e Rukhai olhavam-na seriamente, apreciando a obra com satisfação. Só que Akh tinha os quadris mais largos, coisa difícil de esconder. Até que Rukhai tomou um dos tecidos coloridos que Akh havia comprado e, rasgando-o sem piedade, amarrou uma longa faixa enrolada à cintura dela, com um nó volumoso. Como toque final, enfiou ali a longa adaga que vira Akh usando, deixando-a propositalmente visível, e Heka aplaudiu.

- Perfeita! - elogiou ele, rindo - Pareces até um bandidinho dos desertos! Depois arrumaremos outros trajes parecidos com o que sobrou de tuas roupas, mas por enquanto este basta. Agora vamos, que meus homens devem estar esperando!

Enfiando a navalha no próprio cinto, um presente de Heka, Rukhai foi na frente para conferir se a dona da pensão não estaria por perto para vê-los sair, e acenou que não havia perigo. Heka deixou duas peças de ouro no quarto para pagar com sobra a diária que Rukhai supostamente ficaria devendo, e rumaram para o porto. Decidiram que Akh falaria o menos possível até acostumar-se ao linguajar masculino, para não cometer deslizes, e as duas dormiriam na cabine de Heka, fingindo ser seus novos criados.

Heka valeu-se do privilégio de ser capitão do barco para não ter que dar satisfações sobre os novos passageiros e escondeu-os logo na cabine, dando ordens de partir imediatamente. Os marinheiros nem deram importância aos dois rapazinhos. Estavam mais atarefados em levantar âncora e remar para o mar aberto, calculando o quanto ganhariam ao chegar a Katsambas.

Sabendo que seus homens conheciam bem o caminho a seguir, Heka jantou fechado na cabine com Akh e Rukhai, ensinando à irmã as gírias dos marinheiros e descrevendo o trabalho no navio. Atenta a detalhes, Rukhai lembrou-se de ensinar Akh a coçar-se acintosamente nas partes baixas e a sentar de pernas abertas, como os homens costumam fazer, levando Heka às gargalhadas com suas demonstrações perfeitas.

Quando enfim cansaram-se de tudo aquilo, Rukhai acomodou-se num canto do chão e logo pegou no sono, acostumada a dormir em lugares até piores. Agarrada a Heka e embalada pelo balanço do mar, Akh mergulhou num sono profundo e sonhou com os jardins floridos de Éfeso.

*************

Akh acordou sozinha na cabine e ficou um pouco assustada, mesmo sentindo a reconfortante presença do irmão no convés. Logo Rukhai apareceu, trazendo-lhe frutas, e as duas conversaram por horas.

Rukhai contou a vida que levava desde que fugiu de casa, trabalhando como carregadora nos mercados ou como assistente nos navios, roubando comida quando não ganhava o suficiente para comprar, dormindo sobre rolos de cordame ou sacos de grãos no porto ou nos barcos quando não podia pagar por um quarto de pensão. Levava pouca coisa além da roupa do corpo - algumas peças de prata que recebeu pelo último trabalho, uma caneca de cobre, um par de brincos de prata herdados da avó e uma faca sem cabo, agora substituída pela navalha que Heka lhe deu -, tudo embrulhado num lenço encardido que amarrava à cintura. Às vezes escondia ali pão ou frutas roubados, ou qualquer coisa de valor que servisse como moeda de troca em caso de necessidade.

Akh admirou-se da simplicidade e objetividade com que aquela menina vivia. Se não tinha com que viver, pedia. Se não ganhava, roubava. Se fosse apanhada, mentia. Se não podia brigar, fugia. Se não podia fugir, se escondia. E ela contava tudo isso com naturalidade, dando de ombros, na amoralidade de quem precisa lutar para sobreviver. Tudo básico, lógico, cruel - uma vida regida pela lei da necessidade. E Rukhai era contudo extremamente esperta, tinha recebido uma educação razoável, escrevia e falava bem, não precisaria passar por tudo aquilo.

- Meu pai me batia muito! - contou como quem falava de outra pessoa - Minha mãe morreu quando eu era pequena, minhas irmãs casaram cedo para sair de casa. Quando meu pai perdeu a loja e ficamos pobres, resolveu vender-me para meu primo! Queria que eu casasse com aquele velho gordo e feio! Acho que estou melhor agora do que se tivesse aceitado aquela vida... Conheço tantos lugares!

Heka veio ter com elas para o almoço, comentando que provavelmente encontrariam tempo bom pelo resto da viagem até Katsambas. Rukhai deliciou os irmãos com suas histórias e quase fez Heka estourar de rir ao revelar seu repertório de palavrões. Quando ele voltou ao convés Rukhai acompanhou-o sem medo, mas Akh preferiu passar o resto da tarde escondida, costurando novas blusas e saiotes a partir de seus vestidos. Só atreveu-se a subir ao entardecer, protegida pelo lusco-fusco, e ainda assim com o rosto encoberto por uma ponta do lenço jogada sobre o ombro.

Vendo que ninguém parou para olhá-la, Akh foi sentar-se sobre um rolo de cordas perto de Heka e começou a prestar atenção em como ele comandava o serviço. Aquele era um navio maior do que os outros em que tinha estado, feito para viagens mais longas e com maior capacidade de carga, e era também mais difícil de manejar, apesar de ser extremamente rápido. Uma curiosidade é que ele usava velas além dos remos, acelerando a velocidade do navio, coisa que outras embarcações em alto mar ainda não faziam. Somente um egípcio, acostumado aos barcos do Nilo, para ousar tanto! Akh calculou que Heka deveria estar lucrando muito para dar-se ao luxo de ter um barco como esse e ainda manter duas casas em cidades diferentes. Sentiu uma ponta de orgulho pelo irmão, vendo-o manobrar o leme e conferir o rumo com um complicado aparelho, que Heka erguia em frente aos olhos em direção ao horizonte.

Mesmo já tendo visto os marinheiros trabalhando, pela primeira vez Akh observou-os em detalhes. Reparou em como eles puxavam as velas, manejavam os remos em sincronia, trepavam pelo mastro ou gritavam uns com os outros, prestando atenção em como moviam-se e como falavam. Se quisesse enganá-los precisaria agir exatamente como eles, imitando-os em tudo.

Quando a lua surgiu no céu, outro grupo de marinheiros assumiu o serviço e Akh desceu com Heka e Rukhai para jantar, cheia de perguntas e comentários. Alguns deixavam Heka desconcertado, pois nunca havia pensado em coisas como a maneira como se espreguiçava ou coçava as axilas, gestos tão naturais e que agora Akh e Rukhai esmiuçavam cientificamente. Outros detalhes faziam-no rir, como quando elas imitaram-no cuspindo, roncando e até urinando por sobre a amurada. Nem pensou que elas o observavam, e decidiu que tomaria mais cuidado com o que fazia perto das duas.

O que mais o incomodava era a mudança, sutil mas profunda, que notou na irmã. Agora tinha tempo de pensar a respeito com calma, e via que Akh estava diferente. As roupas de homem não o impressionavam, pois já a tinha visto antes do disfarce e sabia que, por fora, ela continuava a mesma. Só que Akh agora às vezes apresentava um olhar distante e sério, até um tanto triste, quando ficava em silêncio. Sua capacidade de observação estava mais aguçada do que nunca, mais objetiva e sintética. Dava a impressão que ela havia descoberto uma forma nova de olhar o mundo, e nem sempre esse ponto de vista a deixava feliz. Claro que Akh continuava risonha, impetuosa e brincalhona como antes, e estava ainda mais carinhosa com ele. Mas havia algo maior, uma dor que a havia endurecido, alguma coisa que foi talhada mais fundo em sua personalidade.

Heka sentiu o coração apertar-se, pensando que certamente sua longa ausência foi a causa do sofrimento que a fez mudar. Se não tivesse sumido sem mandar notícias, Akh não teria abandonado o Egito com Imhotep, e ele talvez ainda estivesse vivo...

Akh provavelmente pressentiu os pensamentos do irmão, ou quem sabe tenha visto as lágrimas que por um momento brilharam nos olhos dele, pois logo espreguiçou-se e encerrou a conversa, propondo que fossem dormir. Até isso Heka notou - discreta e simplesmente, sem deixar que Rukhai percebesse, ela dava a entender que continuavam ligados até a alma.

Quando deitaram juntos na cama, com Rukhai acomodada longe, num colchão perto da porta, Heka abraçou a irmã e começou a soluçar baixinho, escondendo o rosto nos seios dela. Sem uma palavra, Akh apertou-o contra o peito, beijando-o e embalando-o como uma mãe faria com uma criança assustada.

- Perdão... - sussurrou Heka - Sinto-me culpado por ter ficado tanto tempo longe de ti! Tanta coisa poderia ter sido diferente!

- Shhhhh! - Akh colocou um dedo sobre os lábios dele, sentindo que logo começaria a chorar também - Agora nada mais importa! Tu és um homem próspero, feliz com teu trabalho, e eu estou aqui contigo!

- Mas Imhotep morreu, tu passaste por tantas dificuldades! E agora tens que usar roupas de homem... Não é justo para contigo, estou sendo egoísta novamente!

Akh olhou-o com paixão e, mesmo tento apenas o luar para iluminar a cabine, Heka pode perceber o brilho de uma lágrima escorrendo pelo rosto da irmã. Com um suspiro, Akh beijou-o entre os olhos e disse num sussurro decidido:

- Se eu acreditar que não posso suportar esta vida no mar, aviso-te e pensaremos em outra coisa. Temos a eternidade pela frente, esqueceste? Por ora, o que mais quero neste mundo é ficar a teu lado, e para isso eu faria qualquer coisa! Agora sossega e dorme, senão Rukhai pode ouvir-nos e fazer perguntas!

Cansado do trabalho, Heka acabou adormecendo primeiro, enquanto Akh deixava o olhar perder-se nos reflexos do mar que via pela pequena janela da cabine. Nem percebeu quando pegou finalmente no sono, embalada pelo balanço do barco.

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