A Volta do Velho Mestre


Roma - Península Itálica - 149 a.C.

Do tombadilho do barco, Emrys contemplou Roma com admiração. Apesar de ter pego alguns dias de chuva, sua viagem tinha sido tranquila e chegava à cidade no dia esperado, portanto Methos provavelmente estaria aguardando no porto. Será que ele o reconheceria? Emrys mantivera-se a maior parte do tempo enfurnado na cabine e só saíra à noite ou envolto num manto com capuz, para ocultar a mudança de aspecto - estava usando mais uma mistura de ervas para escurecer os cabelos, agora bem curtos, até que os fios tingidos de branco finalmente desaparecessem, e já no primeiro dia a bordo raspara a barba completamente. Queria desembarcar em Roma com outra aparência e inclusive trazia na bagagem roupas totalmente diferentes das que costumava usar no papel de Aristeu, o velho bibliotecário de Alexandria.

Vistoriando o porto com o olhar, em busca do amigo, Emrys concentrou-se e encolheu propositalmente a amplitude de sua vibração. Sabia que poderia ser captado de longe por Imortais mais sensíveis e era melhor ter cuidado, para o caso de haver inimigos em Roma. Emrys há muito tempo sabia diminuir ou ampliar a própria vibração, porém não usava o truque com frequência porque exigia grande esforço e concentração permanente, além de prejudicar sua sensibilidade. Só estava fazendo isso agora pela segurança de Methos, não pela sua. Se mantivesse sua vibração usual, chamaria a atenção de Imortais na cidade inteira, e Methos poderia ser atacado por engano. Caso ele dissesse que não havia perigo, então Emrys relaxaria e deixaria sua energia espalhar-se normalmente.

Na verdade Emrys evitava mas não temia os duelos com outros Imortais, simplesmente porque não tinha medo de morrer definitivamente. Estava há tanto tempo vagando pelo mundo que era até insano pensar a respeito, e acordava todas as manhãs por puro hábito de viver, nem raciocinando sobre a possibilidade de um dia não poder mais abrir os olhos para o sol. Talvez isso acabasse acontecendo, mas a hipótese não lhe parecia realmente assustadora. Sinceramente nem questionava-se mais sobre sua existência, nem filosofava a respeito das misteriosas razões dos deuses, como os seres humanos comuns. Os milênios de convivência consigo mesmo e com outras criaturas ensinaram-no a aceitar o que encontrasse, e sempre haveria algo a encontrar. Aprendera a viver para o momento e o lugar, e mesmo o futuro não lhe era um estranho, pois suas premonições forneciam-lhe frequentes vislumbres do que estava por vir. Pode ser que um dia pressentisse seu próprio fim e isso então o apavorasse, ou pode ser que morresse num instante, sem nem ter tempo de ficar com medo. Pode ser até que um dia algum Poder Superior lembrasse que ainda havia uma criatura esquisita chamada Emrys pela face da Terra e resolvesse evaporá-lo, para que parasse de desafiar as leis da natureza... Quem sabe? Nas raras vezes em que ainda pensava sobre o assunto, Emrys sempre encontrava uma possibilidade engraçada, que o fazia rir sozinho por dias.

E foi sorrindo que Emrys desembarcou procurando por Methos, com a agradável sensação de que algo bom ia acontecer, mas encontrou apenas um grupo de criados aguardando-o. Por um instante até pensou que o amigo estivesse atrasado, porém um dos escravos, depois de perguntar aqui e ali, aproximou-se humildemente:

- Mestre Aristeu? Venho em nome do patrício Methos Adamantinus Remus, estamos aqui para indicar o caminho até a casa de meu patrão!

Emrys logo viu que não era apenas para indicar o caminho que os escravos o esperavam - duas ricas quádrigas com cocheiros estavam paradas pouco adiante e os rapazes, acomodando sua bagagem em uma delas, fizeram-lhe sinal para subir na outra, enquanto eles iriam correndo à pé, ao lado e atrás dos carros, como escolta. Franzindo a testa diante de tamanha cerimônia, que seria exagerada para receber um simples bibliotecário, Emrys desconfiou que havia algo estranho. O fato de estar ainda concentrado em encolher sua vibração não lhe permitia vasculhar a mente em busca de premonições, porém seus instintos lhe garantiam que não havia nenhum perigo iminente, por isso deixou-se levar.

E seu susto foi sem tamanho quando, ao virar numa rua de belas casas no Monte Palatino, Emrys sentiu o choque da presença de não um, mas CINCO Imortais ao mesmo tempo! Poderia aceitar até dois ou três, caso Methos estivesse com alunos, mas cinco lhe pareceu um exagero, e sem querer deixou sua vibração escapar ao controle. Provavelmente aquilo alvoroçou os outros, pois Emrys notou um aumento na intensidade da energia de alguns deles. Estavam todos tão próximos entre si que era-lhe difícil distingui-los. Pelo jeito três ali eram bastante velhos e Methos deveria ser um deles, mas e os outros dois? Parecia tratar-se de um casal, será que eram quem imaginava? Confuso e com o coração aos pulos, Emrys achou por bem concentrar-se e recolher a vibração mais uma vez, até descobrir o que estava acontecendo.

Foi então que, da casa que já tinha focado como centro daquelas energias, Emrys viu assomar à porta um grupo de rostos sorridentes que nunca teria esquecido - Methos, Aka, Eksamat e até Titus Marconus! Havia ainda outro rapaz desconhecido com eles, mas o coitado estava tão assustado que não oferecia perigo. Emrys não sabia o que pensar, vendo quatro de seus ex-alunos ali juntos, visivelmente felizes à sua espera! Esquecendo-se completamente de continuar encolhendo sua vibração, Emrys pulou da quádriga ainda em movimento e correu até os amigos, parando de repente diante deles, com medo de tocá-los e descobrir que eram uma miragem.

A primeira a aproximar-se foi Aka, que pulou em seu pescoço chorando. Em seguida foi Eksamus, que abraçou Emrys e a irmã ao mesmo tempo, exclamando frases emocionadas de boas-vindas. Emrys beijou-os como se fossem filhos queridos, depois foi abraçado por Marconus, que também chorava. Peter Gaicus apresentou-se com formalidade, pálido e deslocado em meio àquela emoção. Por último Emrys encarou Methos, que tinha permanecido parado, lutando contra as lágrimas. Bastou um sorriso do velho mestre para que ele também se atirasse em seus braços.

Parados a uma distância respeitosa, aguardando instruções, os escravos olhavam para a cena com intensa curiosidade. Sem saber como proceder, Gaicus começou a dar ordens aos gritos, para que levassem a bagagem de Emrys para dentro, arrumassem o quarto para o hóspede e preparassem o banquete, e logo os criados disparavam em todas as direções. Eksamus conseguiu fazer os outros Imortais entrarem, antes que o povo na rua também parasse para espiar, e conduziu o grupo para o tablinum. Emrys reparou na luxuosa decoração da casa, reconhecendo peças antigas e raras espalhadas casualmente pelos cantos, e sorriu. Ele próprio muitas vezes tinha que brigar consigo mesmo para desfazer-se de objetos que colecionava através dos anos, por motivos sentimentais ou meramente por hábito.

- Ainda não entendo! - falou finalmente - O que aconteceu para reunir-vos aqui? Percebo que fui trazido para cá de propósito...

- Estamos juntos há décadas! - explicou Marconus, fazendo o mestre sentar-se a seu lado - Logo que deixei-te em Alexandria, vim para estas bandas e travei amizade com Gaicus. Mais tarde conheci Methos, depois Aka e Eksamus, mas só há pouco eu soube que eras o Emrys de quem tanto falavam! Acabamos descobrindo teu paradeiro e então resolvemos chamar-te para ficar conosco também!

- E qual de vós percebeu que eu e Aristeu éramos a mesma pessoa? - perguntou Emrys - Que eu me lembre tu nunca soubeste meu verdadeiro nome, Titus! Não por falta de confiança em ti, entendas, mas porque adotei o nome Aristeu há séculos, e pretendo continuar ainda algum tempo com ele...

- Foi pura coincidência! - explicou Eksamus - Methos contou-nos que iria comprar textos de um tal Aristeu de Alexandria, então Titus falou que havia um Imortal chamado Aristeu por lá, alguém que teria conhecido Sócrates em Atenas. Aka e eu sabíamos que tu eras o único Imortal além de nós que coheceu Sócrates, então foi só juntar os detalhes!

Emrys lançou um olhar de esguelha a Methos, que empalideceu. Methos também conhecera Sócrates, mas por meios tortuosos e razões que nenhum Imortal deveria conhecer. Seus contatos secretos com o filósofo tinham sido em geral por carta e Sócrates jamais mencionou os nomes de Aka, Eksamus ou Emrys em seus relatórios. Só depois, em Roma, foi que Methos descobriu que os três Imortais passaram décadas com Sócrates em Atenas. Methos logo sentira-se traído pelo filósofo, e tinha seus motivos. Quando deduziram recentemente a complexa conexão entre Sócrates e a biblioteca de Alexandria, seu medo tinha sido que suas próprias cartas estivessem entre os papéis cobiçados por Demétrio Falereu, mas disfarçara inventando sobre o diário de Emrys. E agora percebia que o mestre descobrira sua ligação com Sócrates, e poderia até saber a natureza dessa relação! Teria sido por influência dele que o filósofo nunca falou-lhe sobre os Imortais de Atenas? Como Emrys descobriu? Teria sido Sócrates um traidor ainda maior do que Methos imaginara?

- Eu contei a eles sobre a lista de ervas que tu encontraste entre os papiros que Neleu vendeu ao faraó, lembras? - Marconus começou a rir, sem perceber a sutil troca de olhares entre Methos e Emrys - Tu ficaste tão furioso com aquilo... Eu jamais poderia esquecer como praguejaste contra Demétrio Falereu por ter insistido na compra daqueles velhos textos, tu andavas pelos cantos da biblioteca resmungando desaforos hilários! Tu o chamavas de besta loura e dizias que o excesso de água oxigenada lhe fervera os miolos (1)!

Emrys gargalhou com as lembranças e alisou com ternura os cabelos escurecidos de Aka, ajoelhada a seus pés como uma menina. Ela aprendera o truque de mudar de aparência, e a satisfação do velho mestre aumentou ao perceber que os outros também mostravam-se bem adaptados aos costumes romanos. Para um Imortal, evoluir com o tempo e adaptar-se a novos ambientes era uma necessidade constante, e os que não conseguiam fazê-lo através dos séculos um dia perderiam a luta contra as mudanças implacáveis da humanidade.

- Tu conheces todas as ervas, e recordo-me que uma vez passaste uma tarde inteira explicando a receita de um xarope a Sócrates! - disse Aka, também sem notar a breve distração de Emrys - Ele te admirava muito, deve ter guardado a lista como lembrança tua e sem querer isso foi passando entre seus herdeiros, de geração em geração... Se o Aristeu que Titus conheceu foi o mesmo Imortal que deu uma lista de ervas a Sócrates, então esse Aristeu só poderia ser tu!

- Daí percebemos que poderias ainda estar em Alexandria e ser o tal bibliotecário com quem Methos estava se correspondendo! - concluiu Eksamus - Por isso decidimos chamar-te aqui para fazer-te uma surpresa!

- Uma bela surpresa, realmente! - Emrys fez um gesto amplo, admirando a decoração do tablinum espaçoso, que servia de escritório, sala de estar e de refeições ao mesmo tempo - De quem é esta maravilhosa casa? Será que eu poderia recolher-me por alguns instantes para um banho, antes do jantar?

Methos levantou-se de um salto, pedindo que Emrys o acompanhasse a fim de conhecer os aposentos onde ficaria hospedado, e os outros Imortais logo abriram espaço para que o mestre pudesse retirar-se. No quarto que lhe estava destinado, Emrys viu de relance uma banheira com água quente emanando vapores perfumados a um canto e sua bagagem aos pés da cama, e ficou enternecido ao perceber que a decoração e os móveis eram novos, provavelmente tendo sido trocados recentemente apenas para recebê-lo.

- Não sabes como me sinto em ver-te outra vez! - sussurrou Methos da porta - Há séculos ando à tua procura... Estiveste bastante tempo na Grécia e sabias que eu conhecia Sócrates, mas me evitaste de propósito!

- Sim, também andei à tua procura, e na verdade fui à Grécia justamente para ver-te! - confessou Emrys, tomando uma das mãos de Methos nas suas - Só que por acaso encontrei primeiro estes que hoje são teus amigos, e Sócrates estava com eles, então preferi manter-vos afastados para não atrapalhar tua nova vida...

- Então sabes também sobre os...

- Claro, há muito tempo! - Emrys sorriu - Tanto que inverti teu jogo e, guardando teus segredos, vigiei-te à distância até o dia em que sumiste novamente. Não é uma ironia que agora estejamos todos juntos?

- És um malandro! E os textos de Neleu?

- Não te preocupes, eram só documentos inúteis! - Emrys baixou a voz e fez-lhe sinal pedindo discrição - Não havia nada perigoso neles e, se houvesse, eu mesmo os teria destruído ou alterado!

Methos sorriu, os olhos cheios de carinho, e puxou o mestre para um abraço apertado.

- Não façamos dramas... Deixa-me tomar meu banho, que ainda estou cheirando a peixe! - Emrys afastou-se a custo de Methos e caminhou para sua bagagem, tentando disfarçar a emoção - Teus amigos te esperam e não quero atrasar o jantar!

Feliz, Methos avançou rapidamente e sapecou um beijo no rosto do mestre antes de deixar o quarto correndo. Assim que viu-se a sós, Emrys arrancou as roupas de viagem e mergulhou na água morna com uma exclamação de prazer.

*************

- Ele não é velho como pensei! - comentava Gaicus em voz baixa aos amigos quando Methos voltou ao tablinum - Pelo que ouvi, imaginei uma criatura enrugada, corcunda, falando baixo e andando apoiada num bastão, mas ele é jovem e saudável como qualquer um de nós, talvez até mais!

- Esqueceste que ele é Imortal? - Methos teve que fazer força para ocultar um sorriso - Ele não envelhece!

- Sim, porém todos falavam que ele era um sacerdote, um bibliotecário ancião, então me veio à mente essa imagem venerável!

- Quando o conheci em Alexandria ele tinha os cabelos bem brancos, apesar de não ter rugas! - exclamou Marconus - Hoje ele parece décadas mais jovem, é impressionante!

- Em Atenas ele usava barba e cabelos compridos, também parecia mais velho do que agora! - Aka recostou a cabeça no ombro do marido - É tão estranho saber que ele está aqui conosco outra vez... A presença dele me acalma, sinto-me criança de novo!

- E quem não se sentiria? - riu Eksamus - Emrys age mesmo como o pai de todo mundo, e até os mais velhos de nós ainda são jovens comparados a ele!

Quase uma hora depois o mais antigo dos Imortais apareceu para o jantar, desta vez trajando suas novas roupas em estilo romano. Os outros elogiaram sua elegância, fazendo-o ruborizar.

- Devias manter-te sempre assim, ao invés de te esconderes com aquela barba de antes! - Aka comentou em grego - Aposto que muitas mulheres em Roma esticarão olhos cobiçosos quando passares!

- Como podes estar com os cabelos tão negros agora? - cismou Marconus - Estás usando alguma tinta?

- Eu usava quando me conheceste, para que ficassem brancos... Mas não era água oxigenada! - explicou Emrys também em grego, rindo, porém sem deixar de notar que havia um criado empertigado ao lado de seu divã, que correu para ajeitar suas almofadas e servir-lhe vinho - Um pequeno truque antigo que depois vos ensinarei. Agora só estou aplicando umas ervas até que voltem à cor normal... É preciso mesmo que este senhor fique junto a mim como uma sombra?

Methos assegurou que o homem não entendia nada de grego, assim como os outros empregados da casa, portanto poderiam conversar sem problemas. Há várias décadas, desde que soubera que tinha sido traído pelos empregados, que delataram suas atitudes suspeitas a Aka, Methos fazia questão de tratar bem todos os escravos, porém exigia que nenhum tivesse a mínima idéia sequer de grego. Sempre que percebia que algum deles estava começando a entender as primeiras palavras, talvez por força da convivência ou mesmo na tentativa de agradá-lo, Methos vendia o escravo e comprava outro. Gaicus por vezes reclamava que nunca sabia se o criado que servira o desjejum seria o mesmo que lhe traria o jantar, mas Methos preferia prevenir-se e inventava uma desculpa qualquer para justificar a troca constante de serviçais.

Naquela noite, Gaicus mal reparou nos criados e não conseguia disfarçar a admiração por Emrys. A idéia de um Imortal tão velho e ainda assim com aparência tão jovial era-lhe desnorteante. Mesmo sabendo que Methos era bem antigo e Aka e Eksamus talvez o fossem também, Gaicus no fundo imaginava que um dia até os Imortais começariam a apresentar pequenos sinais de idade ou cansaço, porém o máximo que podia notar em Emrys eram algumas leves rugas de expressão na testa, ao redor dos olhos e nos cantos da boca, e que só apareciam quando ele sorria ou franzia as sobrancelhas. As novas roupas também evidenciavam seu tórax musculoso, seus braços e pernas fortes. Os movimentos elásticos, apesar de serenos como tudo mais em Emrys, denunciavam um homem afeito aos exercícios saudáveis - não eram como os gestos por vezes pesados de um soldado ou a grosseria muscular de um simples gladiador, e sim feitos com a vigorosa fluidez de um atleta maduro, no auge da força física. Para um mortal, ele aparentaria ter cerca de quarenta anos - talvez entre trinta e cinco e quarenta e poucos anos, nunca mais que isso. Ainda assim, todos os outros o tratavam como um pai, e Emrys não se incomodava, até gostava! A situação era desconcertante.

Gaicus também tinha esperado algo sobrenatural no velho Imortal, uma aura de mistério e magia, e o primeiro choque da possante vibração de Emrys quase o deixou sem fôlego. E seu susto foi ainda maior quando de repente aquela energia retrocedeu, parecendo uma gigantesca onda de mar revolto que encolhe para depois avançar com redobrada violência, arrasando tudo em sua estrondosa passagem. Gaicus nunca fora dado à religião, mas por um instante ficou apavorado, imaginando que algum deus olímpico furioso tinha assumido forma humana e viesse trazer a hecatombe para sua vida. Na hora abandonara a imagem de velho ancião e substituíra-a pela de um gigantesco Netuno armado de tridente, prestes a arrombar as portas da casa para esmagá-lo. E ver que a criatura que emanava tamanha força era um homem absolutamente normal, em trajes comuns, sorrindo e abraçando seus amigos naturalmente - aquilo tinha sido demais. Emrys não parecia ser ninguém especial, e era esse o problema. Onde estava a divindade que estremeceria as montanhas com sua voz? Onde estavam os olhos dardejando os raios de Júpiter, que o fulminariam num instante?

A mente de Gaicus fervilhava com tantas dúvidas que nem sabia por onde começar a perguntar, e permaneceu calado, observando os demais.

- Eu já vivi muito, mas é a primeira vez que vejo tantos de nós assim reunidos, em paz, por vontade própria! - Emrys falava, emocionado - Dois ou três é até normal, porém aqui somos seis! Há outros ainda na cidade?

- Havia um, mas não era amistoso e já desapareceu há algum tempo! - disse Eksamus, corrigindo-se em seguida com um sorriso - Quero dizer, ele foi embora sozinho, ninguém o molestou!

- Às vezes sentimos outros que passam por perto, porém nem sabemos quem são... - acrescentou Aka, fazendo sinal aos criados para que trouxessem as próximas iguarias do banquete - Creio que o fato de estarmos juntos faz todos fugirem correndo!

Apesar dos amigos disputarem sua atenção, Emrys via o espanto que causava em Peter Gaicus e teve um pouco de pena dele. Durante o jantar e pelo resto da noite fez de tudo para incluí-lo na conversa, contudo o rapaz ainda estava impressionado demais com sua presença e acabava caindo novamente em silêncio, constrangido. Mentalmente, Emrys anotou que depois precisaria conversar com Gaicus a sós, a fim de tentar vencer essa barreira que havia entre eles.

Assim como no primeiro dia de reencontro, os próximos que vieram a seguir foram de extrema alegria para o grupo, num clima de festa permanente. Sempre que possível Emrys ficava horas conversando em particular com cada um de seus ex-alunos, querendo saber o que haviam feito desde que tinham se separado dele e contando-lhes suas próprias aventuras. Tinha ouvido consternado a história do casamento fracassado entre Aka e Methos, mas riu muito ao saber como tudo acabou, e até Aka e Methos riram junto, sabendo como algumas de suas atitudes na época tinham sido egoístas.

- Meu casamento com Methos foi um erro... Os segredos dele me atraíam e eu queria forçá-lo a abrir-se comigo mas, se eu mesma não me entreguei inteira, como poderia exigir isso dele? - comentou Aka mais tarde a sós com o mestre.

- E hoje? - perguntou Emrys seriamente - Como te sentes, casada com Titus e ainda convivendo tanto com teu ex-marido?

- Às vezes fico sem jeito com certos assuntos, é claro, afinal Methos e eu fomos casados por quinze anos! - confessou Aka - Só que nunca tivemos confiança um no outro, não o suficiente para um casamento... Eu imaginava que deveria pagar as suspeitas dele com mais mistérios, e ele fazia o mesmo. Se eu tivesse sido franca desde o começo, talvez pudéssemos ter sido felizes!

- E acaso não estás feliz com Titus?

- Claro que estou! - Aka sorriu abertamente, os olhos faiscando - Titus não tem medos que me assustem nem segredos que me coloquem na defensiva! É algo mais tranquilo, mais completo do que com Methos, e com certeza sinto-me feliz! Titus me adora como sou e eu o adoro demais também!

- Ah, eu sempre fico feliz em comprovar que, por mais que o tempo passe, a natureza humana continua a mesma em nós! - Emrys suspirou, divagando - A paixão é tão bela... Nunca seremos velhos demais para amar!

- Só fico triste por saber que fiz Methos sofrer tentando transformá-lo em algo que ele jamais poderia ser, e isso quase custou nossa amizade!

- Tiveste sorte por ele ter preferido deixar-te livre e até alegrar-se por estares hoje com o amigo dele! - Emrys sorriu com um ar condescendente - Isso demonstra que Methos gosta mesmo de ti, apesar de não amar-te da forma como esperavas. Outro Imortal poderia ter sido mais radical...

- Queres dizer que eu poderia ter morrido? - Aka fez um leve aceno com a cabeça - Eu sei, pensei nisso várias vezes quando brigávamos, sempre tive medo de que um dia perdêssemos mesmo a paciência e... Bom, acho que nunca é fácil apaixonar-se por outro de nossa espécie! Mas agora estamos em paz novamente, e Methos tornou-se um grande amigo!

- E que essa amizade seja eterna como nós, minha filha! - exclamou Emrys, satisfeito.

*************

Espantado com Roma, da qual até então só tinha ouvido falar, o vetusto Imortal logo tratou de adaptar-se à nova vida de patrício latino, como aliás sempre adaptou-se a tudo. Muitas situações o desagradavam, principalmente a impossibilidade de conviver diretamente com o povo, como fizera em Atenas e Alexandria, e também o excesso de promiscuidade. Em Roma tudo era demasiado público - não só os banhos eram um evento social, nas luxuosas termas forradas em mármore e ouro, mas até as necessidades fisiológicas eram feitas em coletividade, em salões onde patrícios sentavam-se lado a lado em vasos sanitários e conversavam como se estivessem em suas próprias salas! Na primeira vez em que encontrou-se numa situação dessas, Emrys teve que esforçar-se para manter a naturalidade. Não que tivesse preconceitos - que preconceito sobreviveria após tantos milênios? - o fato foi que achara aquilo tão escatológico que por pouco não irrompera em gargalhadas desenfreadas. Por sorte seus amigos Imortais mantinham banheiros domésticos muito decentes e reservados, preservando o decoro graças a costumes antigos demais para ser abandonados por influência do ambiente... Mas Emrys não tardou a perceber que nunca conseguiria espaço para suas idéias e ideais em Roma.

As coisas boas que encontrou, contudo, a princípio compensaram suas decepções, e estar ao lado dos ex-alunos, reunidos e em harmonia, era-lhe a maior das felicidades. Todos o cobriam de atenção e carinho, parecia haver sempre algum evento acontecendo na cidade e, em meio àquela balbúrdia, ninguém deu muita atenção ao desaparecimento de um idoso bibliotecário recém-chegado de Alexandria, que talvez teria se perdido em algum beco de Subura em hora errada e caído nas garras de malfeitores. Crimes assim aconteciam todos os dias, não?

A estranha ligação do antigo Imortal com os textos desaparecidos dos filósofos gregos tinha suscitado algumas perguntas dos mais jovens, porém Emrys habilmente evitara entrar em detalhes sobre o assunto, e Methos obviamente ajudara. Ainda não era hora de revelar certas coisas que ambos sabiam. Um dia talvez explicassem tudo, e provavelmente os outros compreenderiam a razão de tanto mistério, mas por que preocupá-los à toa? Por enquanto era preferível deixar que a vida seguisse seu curso.

Entratanto, quando descobriu que Aka e Eksamus ainda não tinham sentido nenhum pré-Imortal nem acolhido alunos próprios, Emrys ficou assustado.

- É estranho, pois tenho encontrado muitos em estado latente pelo mundo! - comentou numa manhã em que passeava a esmo com Eksamus entre as barracas do mercado - No Egito encontrei vários, e também alguns Imortais recentes que vagavam por aquelas terras ancestrais na esperança de encontrar ali seus primeiros mestres... Eu não podia ficar com todos ao mesmo tempo, e cheguei a mandar alguns para amigos meus que vivem em terras além do Oriente. Se soubesse teria mandado-os para vós, porque aqui eles estariam em segurança!

- Encontrei uma mulher da nossa espécie há algum tempo numa cidade menor, ao sul, mas ela fugiu e nem sei seu nome! - Eksamus não quis confessar seu medo de ser responsável por um jovem Imortal - Foi a primeira que vi além de Aka... Elas são raras?

- Nem tanto, meu filho! - esperto, Emrys não permitiu que a conversa tomasse outro rumo - Elas poderiam ser tantas quanto os homens se tivessem o devido acompanhamento, se encontrassem mestres generosos que aceitassem protegê-las nos primeiros anos... Tua irmã é uma exceção porque viveu isolada contigo por séculos nos desertos, e o primeiro Imortal que encontrou além de ti foi um excelente homem. Se tivesse sido um de má índole, hoje tanto ela quanto tu estariam mortos! É por isso que precisas dividir teus conhecimentos com os mais novos, senão eles nem terão uma chance... Até eu precisei de um mestre!

- Mas como vou ter alunos se eu nem sequer os encontro? - lamentou-se Eksamus, impaciente - Os Imortais que conheço já podem virar-se sozinhos, e os outros que por acaso percebemos andando por aí ou tentam atacar-nos ou fogem de nós!

- Reconheço que dificilmente um Imortal estranho entraria em Roma sabendo-vos aqui reunidos, porém os que ainda estão em estado latente não podem sentir-vos, e certamente após esse tempo todo deveria haver algum perdido na região... - Emrys ficou pensativo - Eles nascem por toda parte, em qualquer época, o difícil é transformarem-se como nós e sobreviverem aos primeiros anos!

- Pois nós viajamos com frequência por toda a península de norte a sul, e até agora não encontramos nenhum! Sei que Methos tem alguns contatos misteriosos que podem ser outros Imortais, e Titus disse que já teve alunos, porém eu só vi mesmo aquela mulher, que nem deveria ser tão nova! E eu queria tanto tê-la conhecido melhor...

- Sei o que pensas, Heka Ma'At de Abtu, és um malandro! - Emrys de repente gargalhou - Queres é casar-te com alguém de nossa natureza, como tua irmã tem feito!

- Ora, e que mal há nisso? - Eksamus corou, tanto por ter sido pego em flagrante quanto por ter sido chamado pelo nome original, que hoje só sua irmã e o mestre sabiam - Aka já está no terceiro casamento com outros como nós, por que eu não poderia fazer o mesmo?

- Casar com Imortais pode ser perigoso! Aka e Methos separaram-se em paz apesar de tudo, porém isso poderia ter terminado em desgraça... - um brilho triste passou pelos olhos de Emrys - E qual a vantagem de um casamento eterno, afinal?

- É porque há a esperança de amor etern... - só então Eksamus percebeu o ar repentinamente absorto do mestre - Emrys, estás querendo me dizer que já foste casado... E com uma Imortal?!

- Casado exatamente não, mas foi praticamente a mesma coisa! - surpreendido, Emrys riu diante do assombro do amigo - Então não lembras que teu próprio pai era sacerdote e foi casado?

- Sim, eu mesmo fui sacerdote, e bem que tentaram casar-me várias vezes!

- Pois houve tempos em que éramos realmente obrigados a casar, para gerar herdeiros com nossos poderes mágicos! Hoje em dia é que andam inventando essas seitas que pregam a castidade, contrariando a natureza humana... Claro que eu nunca gerei filhos, seria impossível, mas tive várias esposas, às vezes uma porção ao mesmo tempo! - por um instante os olhos de Emrys pareceram fitar algum lugar distante no passado, porém logo ele prosseguiu, vendo que Eksamus ia perguntar-lhe algo mais - E sim, meu caro, também vivi belos e complicados romances com Imortais!

- Mas foste feliz?

- Feliz? Sim, por um tempo! - Emrys suspirou pesadamente - Mas posso garantir-te que nem sempre o amor resiste ao primeiro século de convivência, e o pior é quando se vive numa cultura que não permite a separação! Como evitar então que um corte a cabeça do outro na hora da raiva, ao invés de simplesmente quebrar alguns vasos e ir dormir em outro quarto?

- E precisaste cortar a cabeça de alguma esposa? - Eksamus arregalou os olhos.

- Não, mas quase cortaram a minha, e também levei muitos vasos e panelas aqui! - o Imortal mais velho apontou a própria cabeça - Sabes como são essas brigas de amor...

- Concordo, as mulheres são difíceis às vezes... - Eksamus afastou algumas lembranças tristes com um aceno distraído - Minha irmã é diferente, conheço-a como ninguém e não vivo sem ela, mas eu bem que gostaria de arriscar um namoro com outra Imortal!

- Ah, esses jovens românticos! - exclamou Emrys, revirando os olhos - Quando eles tomarão jeito?

- Falar é fácil, tu nem namoradas tens mais... Ou tens?!

- Que indiscreto que estás me saindo hoje! - Emrys sorriu - Eu ainda sou homem, se é o que queres saber!

- Ora vejam só... - após alguns instantes de choque, Eksamus começou a gargalhar - Então queres dizer que tens mulheres escondidas por aí, senhor conquistador Imortal?

- E acaso tenho cara de múmia? - apesar de tentar evitar, o velho Imortal sentiu que corava de leve - Posso ser quase tão velho quanto o mundo, mas ainda tenho sangue correndo em minhas veias, meu filho!

- Emrys, acho que posso viver o resto de meus dias a teu lado e ainda descobrir coisas novas a teu respeito!

- Isso é para aprenderes a não alimentar preconceitos! - o velho Imortal apressou o amigo de volta para casa - Vamos, Titus cismou que devo ter meus próprios escravos para viver como um patrício decente e fiquei de acompanhá-lo a um leilão. Odeio isso, aqui em Roma os escravos vivem colados em nós! Nunca tive servos forçados e provavelmente estragarei os meus, tratando-os com liberdades excessivas!

- Nós também não gostamos, mas Titus é generoso com seus próprios escravos e saberá escolher alguns que possas mimar à vontade sem perder-lhes o respeito! Agora conta-me direito aquela história dos setenta juízes hebreus que o faraó Ptolomeu Filadelfo contratou para traduzir os textos sagrados...

*************

Notas explicativas:

1 - Demétrio Falereu realmente usava água oxigenada para clarear os cabelos desde quando ainda morava em Atenas, e entrou para a História, entre outros méritos mais dignos, por ter sido o primeiro ateniense a ousar fazê-lo.
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