Começo e Fim


Roma, Península Itálica - 195 a.C.

A festa de boas-vindas aos amigos Imortais recém-chegados, na casa de Methos, transformou-se em festa de noivado.

Na tarde anterior Aka ainda tentou recusar seu pedido de casamento, acusando-o de zombar de seus sentimentos, porém Methos, malgrado seus próprios temores, insistiu até convencê-la de sua sinceridade. Eksamat fingira-se de pouco satisfeito, mantendo a postura de irmão mais velho e ofendido que exigia uma reparação, mas Methos sabia que tudo não passava de aparência. Já conhecia Eksamat o suficiente para entender que caíra vergonhosamente numa armadilha, e agora pretendia ir até o fim. "Fui idiota e pagarei por tudo! Deixarei que me imolem no altar do sacrifício!", resmungou Methos dramaticamente durante todo o caminho de volta para casa, intercalando as lembranças dos breves momentos apaixonados com Aka e o desespero de imaginar o que os amigos diriam ao saber da novidade.

E Methos não se enganava em suas conjecturas. Marconus e Gaicus rolaram de rir ao descobrir a encrenca em que ele tinha se metido, apostrofando-o sem dó nem piedade.

- Methos Remus vai casar, Methos Remus vai casar! - cantarolou o loiro Peter Gaicus, entre gargalhadas - Ave Remus, o mais novo patrício respeitável de Roma!

- Acabaram-se as festas e orgias, Methos! - zombava Titus Marconus, dando-lhe tapinhas no ombro - Agora és um homem decente, para azar das lobas (1) latinas! Imagino o quanto sofrerão as matronas desta capital ao perder tão precioso amigo, e o quanto devem estar aliviados os patrícios ao saber que finalmente entraste para o panteão dos futuros maridos traídos!

- Traído jamais! - Methos empertigou-se, subitamente fechando a cara - Aka não ousaria tanto, eu a mataria na mesma hora!

- Vejam só, ele está com ciúmes da noivinha! Quem diria que um dia o veríamos reduzido a tal estado! - Gaicus não lhe dava trégua, encontrando um novo refrão para atazaná-lo - Methos Remus está com ciúmes, Methos Remus está com ciúmes...

Por sorte Peter Gaicus precisara voltar para a própria casa a fim de resolver alguns negócios, e Marconus saíra para ver uma amante, dando-lhe um pouco de paz pelo resto do dia. Os dois voltaram apenas no final da tarde seguinte, para a festa, e desta vez mais com curiosidade do que com intenção de ridicularizá-lo. Graças à velocidade com que as últimas notícias haviam se espalhado, tinham ouvido falar que Aka era bonita e culta, além de muito rica, e que Eksamat, agora revelado como solteiro e desimpedido, transformara-se em poucas horas num dos rapazes mais cobiçados da cidade. Decerto muita gente que nem tinha sido convidada compareceria à festa de Methos apenas para comprovar se os novos boatos eram verdadeiros, dada a avidez romana por tais assuntos de alcova.

E realmente não tardou para que a casa ficasse lotada, deixando Methos ainda mais contrariado por ter que responder às perguntas maliciosas, enquanto Aka e Eksamat não apareciam. Quando os dois irmãos foram finalmente anunciados, o silêncio de expectativa que tomou conta do átrio e do tablinum fez com que Methos tivesse vontade de sumir. Para disfarçar, fez sinal aos músicos para que tocassem qualquer coisa e correu a receber Aka e Eksamat com efusividade, antes que eles percebessem o desagradável clima de suspense. Comportando-se como se realmente não notassem nada, os irmãos corresponderam aos cumprimentos com igual amabilidade, contudo estavam ambos profundamente consciente dos olhares cravados sobre eles. Methos entrou com Aka pelo braço, levando-a diretamente para ser apresentada a seus amigos Imortais, enquanto Eksamat seguia um passo atrás, parecendo indiferente aos cochichos que aos poucos espalhavam-se pelos salões, até por fim transformarem-se novamente na conversação normal de qualquer festa.

Agradavelmente surpresos ao ver que Aka era realmente uma mulher capaz de cativar qualquer um, até mesmo um homem escorregadio como Methos, Marconus e Gaicus abandonaram definitivamente as zombarias. Aka estava radiante e Eksamat, feliz por ver seu ousado plano sair melhor do que esperava, esbanjava charme e amabilidade, logo garantindo a simpatia dos outros Imortais. Methos, excedendo-se em seu papel de noivo respeitável, não largou Aka pelo resto da noite, cumulando-a de carinhos e atenções, ao mesmo tempo em que, com isso, afastava os convivas indiscretos, desencorajados ao vê-lo tão apaixonado. Os cinco Imortais permaneceram juntos a maior parte da festa, recebendo cumprimentos aqui e ali, pela volta à cidade ou pelo casamento que seria realizado em breve, todos bem dispostos e curiosos a respeito uns dos outros.

Dos cinco, Gaicus era o mais falante e atrevido, mas também o mais divertido, contando anedotas da recente viagem. Pelo que Methos já havia comentado sobre ele, os irmãos sabiam que Gaicus era um dos melhores lutadores Imortais da região e já tinha um número considerável de cabeças no currículo. Justamente por sua fama, Gaicus era vítima de constantes desafios e fora por isso que resolvera ausentar-se de Roma com Marconus, indo ao encontro de um antigo inimigo em Spoletium (2). O desaforado desafiante fizera-se esperar por mais de dois meses, tentando desequilibrá-lo moralmente, porém Gaicus vencera-o com facilidade, enquanto Marconus vigiava a uma distância segura, pronto a partir em vingança do amigo caso o pior acontecesse. Há décadas Marconus era o discreto mentor de Gaicus, acompanhando-o sempre de perto e com atenção. Não que Gaicus precisasse aprender algo mais sobre combate, mas simplesmente porque seu gênio estouvado despertava preocupações paternais em Marconus, que era incapaz de mostrar-se indiferente, como Methos. Sem que nenhum dos dois soubesse, Methos na verdade pelava-se de preocupações por Gaicus também, porém preferia deixar que Marconus assumisse o encargo de andar atrás do rapaz, e fingia que não se importava. Gaicus era um chamariz para Imortais sedentos por sangue e o que Methos mais queria em Roma era evitar esse tipo de problema.

E finalmente o quarto Imortal que os irmãos sentiam desde que chegaram à cidade apareceu - Marcus Aediles, um esnobe de fala melíflua e olhares cínicos que, apesar de ter sido recebido pelos outros com a devida cortesia, obviamente não desfrutava de um bom conceito no grupo. Methos havia dito que Aediles não frequentava sua casa e até evitava cruzar seu caminho, mantendo-se respeitosamente longe de seus amigos e seus interesses. Aka arrepiou-se com os olhares que o recém-chegado lhe dirigiu ao cumprimentá-la e apertou-se instintivamente contra o noivo, que abraçou-a de forma tranquilizadora e continuou aparentemente impassivo. Mesmo assim, Aka sentiu que o coração de Methos batia depressa e trocou olhares com Eksamat, cujo semblante estava carregado, obviamente também não gostando da energia negativa que emanava do estranho. Assim que Aediles afastou-se, Gaicus fez uma careta ridícula, indicando que o outro lhe dava nojo.

- Ele é um hipócrita maldito, uma das criaturas mais desprezíveis que já conheci! - resmungou Marconus para Aka e Eksamat, quase cuspindo as palavras de tanta indignação - Foi muita desfaçatez dele aparecer aqui hoje!

- Se eu fosse vós, jamais daria minhas costas a Aediles nem beberia ou comeria nada que viesse das mãos dele! - emendou Gaicus, com visível desagrado - Pode estar envenenado!

Eksamat, que de início tratara os dois novos conhecidos com reservas, apesar de mostrar-se mais do que simpático, acabou por gostar realmente deles após os comentários sobre Aediles - seus instintos diziam-lhe que Gaicus e Marconus eram confiáveis e pacíficos. E não deixou de notar que ambos usavam, cada um com um desenho ligeiramente diferente, uma jóia em forma de Oroborus, coisa que Aediles não fazia, sinal evidente de que o símbolo tinha mesmo sido adotado como um código pelo grupo. Aka também percebeu que não tinha o que temer - Methos exercia evidente influência sobre Marconus e Gaicus, a despeito de tratá-los como iguais. Os dois o olhavam com carinho genuíno, muitas vezes disfarçado sob zombarias, coisa que só amigos verdadeiros aturariam sem ofender-se, e isso era tranquilizador.

Trocando olhares cheios de significado, os irmãos congratularam-se por ter ficado em Roma e adquirido tais companheiros. Por sorte tinham encontrado Imortais que apreciavam a convivência amistosa, como Emrys, e não o bando de caçadores de cabeças que haviam temido no início.

*************

Passada a empolgação dos dias iniciais do namoro, Aka percebeu que conviver intimamente com Methos Remus seria mais complicado do que supunha. Mesmo parecendo fazer tudo para agradá-la, ele dava sempre um jeito de conseguir tudo a seu modo, jogando com palavras de tal forma que, quando ela percebia, Methos já tinha vencido suas objeções, mantendo-se ainda por cima com ar de contrariado, como se tivesse perdido.

A primeira discussão surgiu quando Eksamat pediu que o futuro cunhado viesse morar em sua casa após o casamento, com a intenção de continuar mantendo a irmã sob sua proteção. Porém Methos protestou veementemente, alegando que esse não era o costume e um casal precisava de privacidade. Na verdade, Methos não poderia sentir-se à vontade com Aka se tivesse que viver sob o mesmo teto que Eksamat, que ainda o assustava sob vários aspectos. Já Aka, compreendendo a manobra do irmão, usava a desculpa de que ainda não conhecia Marconus o suficiente para morar na mesma casa que ele. Methos então aceitou abrir mão do eterno hóspede, como se a vontade de Aka fosse soberana, mas depois lamentou ter que afastar-se do amigo. Não que Methos adorasse tanto Marconus a ponto de não poder viver sem ele, ao contrário, era tudo uma manobra para fazer com que Aka ficasse com remorsos e depois o compensasse de alguma forma. Foi assim que o pobre Marconus, sabendo-se inconveniente, acabou indo abrigar-se na casa de Gaicus, e Aka não pôde mais negar-se a morar com Methos, para frustração de Eksamat.

O casamento realizou-se num dia de bons presságios (3), dispensando os festivos cerimoniais da moda em nome da discrição e, após a assinatura do contrato nupcial, Aka finalmente mudou-se para a casa do marido. Nos primeiros meses Eksamat visitava-os quase diariamente, pouco importando-se com as reclamações de Methos sobre privacidade, pois queria ter certeza de que a irmã estava sendo tratada como merecia. No fundo, Eksamat ressentia-se por estar sendo afastado dela. Mesmo quando moravam em casas diferentes, Aka visitava-o ou recebia-o sempre, a qualquer hora do dia ou da noite, e nunca quem morava com eles ousou criticá-los por isso.

Apesar de também sentir muita falta de uma convivência maior com o irmão, Aka por vezes censurou Eksamat pelo excesso de zelo, sabendo o quanto isso irritava Methos, que dava o troco recebendo Gaicus e Marconus com suas amantes e outros amigos para jantar. Aka não pretendia impedir os dois Imortais de virem à sua nova casa, afinal até gostava das alegres reuniões com eles - o que a incomodava era saber a intenção vingativa de Methos ao convidá-los. E mesmo pedindo ao irmão que a visitasse com menos frequência, Aka tinha fortes discussões com o marido para que ele não fizesse cara feia sempre que Eksamat vinha vê-la. Fora de casa, entretanto, Methos sempre tratava Eksamat como um grande amigo - desde que ele não quisesse intrometer-se em sua vida doméstica.

- Não entendo, Methos! - disse Eksamat certa tarde ao cunhado, quando passeavam juntos pelo forum - Implicas quando visito minha própria irmã, mas sei que não tens nada contra mim e eu também gosto de ti! Por que crias tantos problemas?

- Deves entender que Aka agora é minha esposa, e tenho ciúmes dela! - respondeu Methos com um tom de obviedade - Temos nossos problemas, não nego, mas no fim acabamos nos entendendo! Se tu parasses de protegê-la tanto e visses meu lado também, perceberias que Aka nem sempre é razoável quando reclama de mim... Eu sofro nas mãos dela, sabias?

Mesmo não acreditando nisso, Eksamat não podia fazer nada além de emitir seus protestos. Após mais de um ano de implicâncias de ambos, Aka tentou contornar o conflito indo à casa do irmão ao invés de recebê-lo, porém Methos percebeu a manobra e isso gerou novas brigas. Dividida entre os dois homens, Aka mais de uma vez pensou em separar-se, mas seu orgulho a impedia de desistir. Amava Methos e sentia que era amada, portanto era uma questão de honra para ela que o casamento desse certo, de um jeito ou de outro. Confusa em seus sentimentos, passou a ocultar do irmão certos detalhes de sua complicada vida conjugal, para evitar aborrecimentos. Ainda assim sua consciência pesava, sentindo-se infiel tanto a Eksamat quanto a Methos.

Eksamat não entendia nada, pois ora encontrava a irmã furiosa por algum desaforo do marido, ora sorridente, derretendo-se em elogios a Methos. Com o passar do tempo, percebeu com tristeza que parte daquilo era teatro - Aka lhe omitia fatos e o casamento dela infelizmente estava erguendo uma barreira invisível entre eles. Marconus e Gaicus, que desde o primeiro dia tomaram forte e sincera amizade por Eksamat, começaram a arrastá-lo para noitadas, tentando consolá-lo, mas aos poucos o fogo dos três arrefeceu. Mesmo arrumando uma ou outra amante ocasional, aproveitando a popularidade de ter sido reconhecido como realmente solteiro, Eksamat não interessava-se por nenhuma mulher em especial e sentia falta de abrir-se mais vezes com a irmã, ao passo que os outros dois sentiam falta da ironia de Methos, que não podia mais acompanhá-los nas farras.

Enquanto isso, Marcus Aediles manteve-se distante, como de praxe, e no fim mudou-se de Roma, sendo apenas ocasionalmente visto em bordéis da cidade, quando vinha sondar as novidades, mas sempre sumia em seguida e ninguém dava-lhe muita importância.

Nos anos seguintes, para fugir da constante agitação de Roma e desligar-se dos confusos problemas da irmã, em várias ocasiões Eksamat acompanhou Marconus ou Gaicus em viagens. Raramente os três iam juntos, pois preferiam deixar alguém de olho em Aka e Methos. Nenhum queria que o casal chegasse a extremos em suas discussões, porém os dois continuavam na mesma, brigando e fazendo as pazes num ritmo quase constante, como se aquilo tivesse se transformado numa rotina.

E era de fato uma insólita rotina, pois após um tempo Methos e Aka já não conseguiam passar sequer um mês sem trocar desaforos cabeludos. Quando tudo ficava calmo demais, um dos dois começava a irritar-se e provocava uma nova confusão.

Até que, enfim, a situação piorou e tornou-se insuportável.

*************

Roma, Península Itálica - 180 a.C.

- Aka acha que tens uma amante!

Tendo chegado na véspera de outra viagem e ainda irritado pelos contratempos do caminho, Eksamat não conseguiu fazer rodeios ao confrontar o cunhado com as acusações que Aka lhe confidenciara ainda há pouco. Methos tinha saído de cara amarrada tão logo Eksamat entrara para ver a irmã, demonstrando que algo ia mal de novo, e refugiou-se na casa de Gaicus e Marconus. Após ouvir as queixas inéditas de Aka, Eksamat rumou imediatamente atrás do cunhado para tomar satisfações. Sabia que o casal não perdia a mania de brigar por qualquer coisa e há tempos não se intrometia entre eles, porém desta vez Aka fizera-lhe revelações preocupantes.

- Mas é lógico que não tenho amante nenhuma! - retorquiu Methos com indignação - Nem tempo para isso eu tenho! E por Júpiter, Eksamat, eu amo tua irmã! Se ao menos ela fosse menos teimosa...

- Ela reclama que tens passado muito tempo fora de casa!

- E onde eu iria esconder essa amante? - Methos andava de um lado para outro, enquanto Marconus distraía-se observando o desenho de um vaso e Gaicus tentava concentrar-se numa carta que escrevia - Eu nunca ando por aí sozinho! Se não estou com Aka, estou contigo ou no forum, cercado de conhecidos que podem testemunhar por mim! Nem viajar eu viajo mais, para não magoá-la... No máximo venho passar algumas horas com Marconus e Gaicus, e eles podem atestar que nunca recebo mulheres aqui!

Gaicus e Marconus voltaram-se para Methos ao ouvir a última frase, incapazes de continuar fingindo-se alheios ao assunto. Sob o olhar duro e interrogativo de Eksamat, ambos acenaram confirmando que o amigo dizia a verdade.

- Methos não tem vindo às nossas festas e faz tudo para entender-se com Aka! - afirmou Marconus, aproximando-se de Eksamat com ar conciliador - Ela deve estar apenas com ciúmes bobos, nada mais!

- E as jóias que tiraste de tua arca ontem, que fim deste a elas? - atirou Eksamat ao cunhado, revelando que sabia detalhes demais para engolir qualquer desculpa - Onde estão o colar e os brincos de ouro que levaste ontem à tarde ao sair para o forum?

Methos gelou ao ouvir sobre as jóias. Tinha imaginado que ninguém o observava quando tirou-as do grande cofre, cuja chave escondia num vaso ao lado da cama ao dormir ou levava ao pescoço sempre que saía de casa, mas pelo jeito alguém estivera espionando. Não era Aka, disso ele tinha certeza, pois ela estava no banho naquela hora, ele próprio a vira entrar no banheiro com algumas criadas.

- Eu... Paguei dívidas com elas, dívidas de que Aka não deveria ter conhecimento! - sentindo que agora até Gaicus e Marconus o fitavam à espera de uma explicação, Methos corou contra a vontade - Eu perdi uma grande aposta, foi só isso! Por que eu teria que dar satisfações sobre esse deslize a ela? Para ouvir mais recriminações por ter ido ver as corridas no circo (4)? Dane-se, Eksamat! Tu e tua irmã por vezes são insuportáveis!

Num gesto furioso, Methos sacou de dentro da manga da túnica um pergaminho, atirando-o sobre a mesinha junto à qual Eksamat e Marconus se encontravam. Eksamat tomou o pergaminho e leu que tratava-se de um recibo, especificando que uma dívida tinha sido quitada na véspera com a entrega de um colar e um par de brincos em ouro.

- Satisfeito? - grunhiu Methos com ironia - E agora, vais correndo contar tudo à tua irmã, para que ela faça uma nova tempestade? Ou será que um homem não tem mais direito a manter seus negócios só porque se casou?

Diante do olhar enfezado que Methos lançou ao redor, Gaicus piscou e fingiu voltar à sua interminável carta, enquanto Marconus afastava-se discretamente para o outro lado da sala. Mesmo sem acreditar completamente na pose de ultraje do cunhado, Eksamat não podia refutar a prova do recibo e desculpou-se pelas acusações que fizera.

- Não devias era meter teu nariz em nossos assuntos! - resmungou Methos em resposta - Já não basta tua irmã a perseguir-me, agora tu também queres massacrar-me?

Eksamat sabia que não deveria ter-se envolvido naquilo, ainda mais porque no fim Aka e o marido pareciam que sempre acabavam se entendendo, porém tinha-lhe sido impossível ouvir as graves lamúrias da irmã sem tomar uma atitude. Nos últimos tempos ela lhe falava bem pouco a respeito do casamento e Eksamat aprendera a não pressioná-la. Mesmo assim, seu coração doía por saber que ela lhe ocultava seus problemas, e ficou furioso quando Aka finalmente chamou-o a um canto e desabafou as desconfianças sobre a traição do marido. Se ela resolvera falar, decerto a situação era mesmo grave. Talvez Methos não estivesse sendo realmente infiel, mas com certeza algo muito triste estava acontecendo entre ele e Aka para que ela chegasse a tais suspeitas.

- Há horas em que penso que a pior coisa que fiz na vida foi obrigar-te a casar com minha irmã! - murmurou Eksamat, pesaroso - Nenhum dos dois é feliz...

- Eu casei com Aka porque EU QUIS! - gritou Methos, fazendo com que Gaicus derrubasse o tinteiro com o susto e desfiasse uma lista de palavrões em voz baixa - Não sou homem de ser obrigado a nada, nunca mais digas isso! Se eu não a amasse, já poderia ter me divorciado há tempos, bastava devolvê-la a ti! Eu a amo, mas não consigo fazê-la feliz, nisso tens razão...

A voz de Methos tremeu e ele assumiu de repente sua máscara de impassividade, porém seus olhos traíam uma certa tristeza. Eksamat fitou-o um tempo de soslaio, tentando entendê-lo para poder ajudá-lo, mas não conseguiu. Methos estava sempre além de seu limite de compreensão, sempre fora de seu alcance. Às vezes, como agora, ele tinha seus rompantes emocionais e deixava entrever os conflitos de sua alma pelas fendas da carapaça, apenas para logo em seguida fechar-se novamente como uma ostra. Não era à toa que Aka irritava-se e sofria, incapaz de saber realmente o que ele pensava ou sentia. O próprio Eksamat por vezes tinha ganas de esbofeteá-lo só para tirá-lo do sério, fazê-lo perder o controle e mostrar-se, como agora. Mas de que adiantaria, se depois o que restaria seria ainda mais mágoa, de ambos os lados?

Com um suspiro, Eksamat despediu-se dos três e saiu para rever a irmã, a fim de explicar-lhe o mal-entendido das jóias, conforme Methos já adivinhara. Cumprimentando-o com um altivo aceno de cabeça, Methos observou-o sair. Após um longo silêncio, exclamou com inesperada jovialidade:

- Tenho alguns palpites para as corridas de hoje, amigos! Alguém gostaria de ir comigo ao circo?

Marconus voltou-se da janela onde estava e encarou Methos com espanto. Peter Gaicus, que ainda terminava de limpar a sujeira da mesa, fez o mesmo. Após trocarem um olhar indignado entre si, os dois simplesmente saíram juntos para o peristilium, sem sequer uma palavra de resposta.

Vendo-se solenemente ignorado, Methos deu de ombros e, estirando-se num divã, pôs-se a devorar despreocupadamente um cacho de uvas da bandeja que os criados tinham deixado por lá. Minutos depois, entretanto, abandonou as uvas como se elas o sufocassem, e permaneceu um longo tempo olhando para o vazio, perdido em pensamentos sombrios.

*************

- Não posso crer que sejam só dívidas de jogo! - reclamava Aka, passeando de braço dado com o irmão ao redor do jardim - É muito dinheiro! Quase todos os dias os criados o vêem sair com algo que tirou secretamente do cofre!

- Talvez ele esteja emprestando tudo a alguém! - ponderou Eksamat, disfarçando a própria contrariedade em defender Methos - Não devias dar tanto ouvido ao que dizem os criados... Tu sabes que ele vive destes negócios! Methos pode não gostar da palavra, mas na verdade ele não passa de um agiota como outro qualquer, apenas é mais discreto!

- Sim, porém antes sempre vinham devolver os empréstimos, em moedas ou mercadorias! Várias vezes Methos trouxe fortunas em ouro escondidas na toga, e não raro presenteou-me com jóias que recebeu de algum devedor!

- E agora ele não tem recebido nada?

- Não que eu saiba! Sou eu quem administra as despesas domésticas desde que nos casamos, e há alguns anos as coisas têm andado estranhas...

- Methos tem sido sovina contigo? - Eksamat franziu o cenho, sobressaltado com a idéia de que a irmã estivesse passando necessidades - Por que não me disseste antes? Se precisas de algo, eu...

- Não, não preciso de nada, meu irmão, obrigada! - Aka negou com um aceno veemente de cabeça e de repente parou, encarando-o com tristeza - Ainda não preciso de nada, mas não sei o quanto ainda poderemos aguentar... Temo que Methos esteja à beira da falência!

Eksamat empalideceu, incrédulo. Methos sempre possuíra uma imensa fortuna que ocultava dos censores, transformando o que podia em ouro e jóias que trancava no cofre, e o próprio Eksamat começou a fazer o mesmo, vendendo várias propriedades menos lucrativas. De comum acordo com os compradores, em geral sonegara o valor real das transações para escapar aos impostos.

Aka explicou que, após mais de uma década de fartura, esbanjando em festas e jantares, Methos aos poucos começou a apertar os cordões da bolsa, reclamando das contas da casa. Aka passou a economizar nos supérfluos e até trocara alguns fornecedores, contudo não foi o suficiente. Methos diminuiu a frequência e a opulência das festas até por fim aboli-las por completo, o que a princípio deixou Aka aliviada, porém então ele passou a frequentar cada vez mais a casa dos amigos e a fazer apostas no circo, onde pelo jeito andara perdendo bastante. Antes Methos presenteava-a frequentemente com roupas ou jóias, em especial quando queria fazer as pazes após uma briga, só que com o tempo ele diminuiu a qualidade dos presentes, até que parou de dar-lhe qualquer coisa. Foi quando Aka, alertada pelas insinuações de uma criada de confiança, descobriu que o marido começara a saquear o próprio cofre sem dizer nada.

A grande arca de cedro, ornada com finos entalhes e incrustações em marfim, ficava no chão a um canto do tablinum, junto à escrivaninha onde Methos costumava passar horas lendo ou escrevendo, quando estava sossegado em casa. Ele dizia que preferia deixar o cofre bem à vista de todos para que julgassem-no um móvel sem importância, quando na verdade ele continha tal quantidade de ouro e jóias que poderia pagar o resgate de um rei. Ou melhor, conteria, pois pelo jeito há anos Methos vinha esvaziando-o furtivamente. Aka nunca pedira para ver de perto o que havia no cofre nem jamais atreveu-se a tentar abri-lo sozinha, mesmo quando Methos dormia a sono solto e ela poderia ter furtado a chave do vaso ao lado da cama. Também nunca soube onde ele guardava tudo o que escrevia e, apesar de ter quase certeza de que Methos mantinha algum tipo de diário ou ao menos um registro detalhado de seus negócios, Aka jamais perguntou onde afinal ele arquivava toda aquela documentação. Por mais que tivesse curiosidade, acreditava firmemente que devia esse respeito ao marido, e só sabia do conteúdo da arca porque antigamente ele abriu-a algumas vezes na sua frente.

Logicamente todos os criados sabiam o que acontecia quando o patrão fechava as janelas e o cortinado do tablinum, mas tinham medo até de tocar no assunto entre si. O único com permissão para entrar no salão nessas horas era Lívius, o escravo que Methos criava desde pequeno. Era o rapazola quem agia como garoto de recados e, depois, como cobrador nos negócios de Methos - sério, competente e extremamente discreto, talvez até capaz de dar a vida pelo mestre. Aka nunca sentiu-se à vontade com o sisudo Lívius porque desde criança ele tinha ciúmes de Methos, vendo no patrão uma espécie de pai adotivo e, nela, uma intrusa. Mesmo jamais tendo tocado no assunto com o marido, Aka reconhecia que Lívius era talvez o mais próximo que Methos chegaria a ter de um filho, apesar de muitas vezes castigá-lo com uma brutalidade que ela reprovava firmemente. Só que Lívius demonstrava ressentir-se com qualquer intromissão dela, mesmo quando era a seu favor, como se até o castigo fosse algo que só ele e o patrão pudessem dividir. Enfim, há dois anos o rapaz tinha finalmente recebido a liberdade e agora vivia viajando no lugar de Methos para resolver negócios misteriosos. E, para alívio de Aka, por vezes Lívius demorava mais de um mês para voltar, estando inclusive há quase quatro semanas fora de Roma.

Sem a vigilância constante do fiel rapaz para controlá-los, os outros escravos puderam fofocar mais abertamente. Percebendo que o patrão nos últimos tempos fechava-se no tablinum quase todos os dias, sempre às pressas e nas horas em que Aka estava ocupada em outro canto da casa ou até na rua, os criados começaram a comentar que ele estaria tirando muito dinheiro de casa em segredo. Alguns, mais ousados, atreveram-se a espiar pelas frestas das cortinas e confirmaram tais suspeitas. Daí para os ouvidos de Aka foi um pulo. Todos os escravos gostavam muito dela por ser gentil e humana com eles, enquanto tinham ressentimentos contra Methos por seu jeito duro de tratá-los e pela preferência que sempre dera a Lívius. Cientes de que Aka ultimamente fazia de tudo para equilibrar as contas da casa e do quanto ela sofria por causa das brigas com o marido, revelar que o patrão estava enganando-a nos negócios era, para eles, uma forma de agradecê-la por sua bondade.

Aka nunca intrometeu-se nos negócios do marido antes mas, ao tomar conhecimento dos rumores domésticos, assustou-se e resolveu confrontá-lo. Methos ficou furioso, recusou-se a dar uma explicação convincente e até evitou Aka na cama por várias noites, tentando puni-la pela indiscrição. Com isso o relacionamento do casal sofreu um grande abalo, as coisas nunca mais voltaram ao normal e Aka começou a desconfiar que o marido estaria mantendo uma amante fora de casa - mesmo com todas as brigas de antes, a única coisa que Methos nunca deixara de fazer foi desejá-la. Ele nunca dormia com as escravas, como era seu direito de proprietário, pois sabia que Aka não admitiria tal abuso, então provavelmente tinha arrumado alguma mulher livre que aceitasse tornar-se sua amante secreta em troca de boas vantagens. E pelo jeito era uma amante dispendiosa, talvez Methos até tivesse montado uma casa para ela, por isso resolvera bancar o avarento no próprio lar. Quando soube que ele tinha tirado mais jóias do cofre na véspera, Aka não resistiu e contou suas suspeitas ao irmão assim que ele chegou de viagem.

- Não creio que seja isso! - disse Eksamat, um tanto irritado pelo fato de a irmã ter-lhe ocultado por tanto tempo as atitudes estranhas do marido - Apesar de Roma ser grande, Methos não teria como manter outra casa e outra mulher sem que o boato corresse!

- Quem garante? - Aka estava deprimida - Nem sempre alguém tem coragem de contar a verdade aos traídos... É mais fácil omitir-se por piedade!

Eksamat foi forçado a concordar. Tanto ele quanto a irmã já tinham vivido romances clandestinos com pessoas casadas, e também tinham visto ou ouvido falar de dezenas de longos casos de adultério que nunca foram descobertos. Mesmo quando alguém fazia insinuações perigosas a respeito, os traídos em geral não percebiam nada, ou simplesmente fingiam não perceber. Se Methos tivesse realmente uma amante, estava sendo extremamente discreto, e quem sabia do caso com certeza não daria com a língua nos dentes sem provas. Talvez nem Gaicus ou Marconus soubessem!

- O que pretendes fazer, afinal? - Eksamat odiou-se por perguntar, mas não havia alternativa - Abandoná-lo? Tu sabes que podes contar comigo!

- Obrigada, meu irmão! - apesar de ter lágrimas nos olhos, Aka estava mais decidida do que ele esperava - Talvez tenha chegado a hora de fazer um acordo de separação com meu marido...

- Se é o que preferes... - sabendo que Methos não demoraria a chegar e vendo que Aka parecia cansada, Eksamat resolveu deixá-la a sós para pensar - Aceito o que decidires, apenas não faças nada que não queiras. Manda avisar-me assim que resolveres tudo e, se for o caso, virei buscar-te!

Os dois despediram-se com um abraço apertado. Assim que o irmão saiu, Aka trancou-se no quarto e chorou amargamente.

*************

Notas explicativas:

1 - Em latim, a palavra "loba" designava tanto a fêmea do lobo quanto uma prostituta, ou qualquer mulher libertina.

2 - Spoletium, hoje chamada Spoleto, foi uma colônia latina fundada em 241 a.C. e era ligada a Roma pela Via Flamínia, uma das principais estradas do Império, cuja construção iniciou-se em 220 a.C.

3 - A data dos casamentos era sempre escolhida com cuidado, pois acreditava-se que determinados dias ou meses não traziam sorte e poderiam influenciar negativamente o futuro de uma união.

4 - O Circus Maximus, erguido no final do século IV a.C. no vale entre os montes Palatino e Aventino, já era palco de corridas de cavalos e bigas e também de populares lutas de gladiadores (introduzidas no ano 264 a.C.) bem antes do Imperador Vespasiano mandar construir o famoso Coliseu, cujo nome verdadeiro era Teatro Flávio, na segunda metade do século I d.C..
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