Imortalidade


Abtu, Alto Egito - 2974 a 2965 a.C.

Quando Akh atingiu os dezoito anos, a solteirice dos irmãos começou a preocupar Diankós, principalmente porque alguns rumores começavam a correr pelos corredores do templo, entre os familiares de pretendentes rejeitados. Obviamente Diankós sabia que alguns desses rumores eram alimentados pela maldade de Mankherere, mas o fato era que Heka Ma'At ocupava um cargo que lhe permitia realizar um excelente casamento, era um rapaz exoticamente belo e bastante cobiçado por muitas moças de boas famílias. Já estava mais do que na hora de arrumar-lhe uma esposa, ou no mínimo arranjar um marido para a irmã, porém nenhum dos dois tomava nenhuma iniciativa nesse sentido. Se insistia no assunto, o máximo que Diankós conseguia era uma cara feia de Heka e alguns dias de birra de Akh. Ambos pareciam dispostos a viver um para o outro, e só.

Aos vinte e três anos, Heka havia assumido completamente e com competência todas as atribuições do cargo de profeta-mor. Ainda assim não dispensou o apoio de Diankós, apesar de o tutor querer declará-lo independente. Seu argumento maior era que, juntos, teriam mais força contra a oposição de Mankherere, que muitas vezes tentava vetar-lhes alguma decisão por simples inveja ou cinismo.

Diankós continuou assim em seu cargo até falecer, quando Heka já estava com vinte e sete anos. Seu funeral foi realizado com pompa, como lhe convinha. Heka promoveu ampliações em sua tumba por conta própria, além de erguer um pequeno templo em sua homenagem, idêntico ao que havia mandado fazer para os pais (1). Garantiu também que alguns dos filhos do mestre obtivessem bons cargos no templo ou tivessem privilégios no comércio, e que sua viúva recebesse uma pensão do templo, demonstrando-lhes assim sua eterna gratidão e amizade.

Mesmo assim, a partir daí a vida tornou-se bastante complicada para os dois irmãos. Agora completamente sozinhos, tinham que enfrentar uma cidade que os hostilizava, ainda que não abertamente, por sua poderosa herança e por sua incapacidade de aceitar as convenções.

Fortalecido com a ausência de Diankós, Mankherere fez de tudo para infernizar, valendo-se do tumultuado passado e do mau gênio de Heka para minar sua posição no templo. Para atacá-lo, chegou até a levantar calúnias contra Akh, que por sorte jamais foram levadas a sério. Heka preocupava-se constantemente com a irmã, até que ocorreu um incidente grave no mercado, quando ela estava com quase vinte e cinco anos - em meio à multidão, um beduíno tentou agarrá-la à força e levá-la como escrava para sua tribo.

O rapto só não se consumou porque Akh fez um escândalo tão grande que um dos filhos mais velhos de Diankós, que trabalhava no mercado, ao ouvir-lhe os gritos, conseguiu mobilizar uma pequena multidão para socorrê-la. O beduíno fugiu sozinho para o deserto, porém Akh garantiu ao irmão, entre soluços, que o homem havia mencionado claramente que um sacerdote lhe prometera um prêmio pelo rapto da mulher branca. Chorando de ódio, Heka nem voltou naquele dia ao templo, de tão furioso, pois tinha certeza de que, se pusesse as mãos em Mankherere, seria capaz de matá-lo, de tão certo que estava da culpa do inimigo naquele ato nojento. Ainda não havia conseguido apagar da memória a imagem de Epher morrendo em seus braços, e agora atentavam contra a vida e a honra de sua irmã! Mais uma vez, infelizmente nada pode ser provado, e ficou o dito pelo não dito.

Durante os dois anos seguintes os atritos entre Heka e Mankherere chegaram então às raias do absurdo, e por pouco a hierarquia do templo não foi completamente desestruturada. Tudo o que um dizia o outro refutava, o que um ordenava o outro desmandava, quem um favorecia o outro execrava. Ninguém mais sabia que partido tomar, nem a quem obedecer. Mankherere era o administrador dos oráculos, mas Heka era o profeta-mor, e em tese nenhum dos dois poderia ser desrespeitado, o que criava impasses intransponíveis sobre assuntos cruciais.

O desgaste chegou ao ápice quando Mankherere conseguiu que o novo administrador geral do templo concedesse-lhe a aceitação de um decreto de intenções duvidosas. Sem saber que Mankherere havia angariado proteção de seu superior, Heka desobedeceu-o e insultou-o violentamente em público, negando-se a cumprir o decreto e propondo outro, de conteúdo completamente contrário. Sua atitude foi tomada como heresia e grave ofensa pessoal ao novo administrador geral, e Heka caiu inapelavelmente em desgraça. Mankherere havia-lhe preparado uma bela armadilha, da qual agora não podia mais escapar.

Heka foi afastado imediatamente do cargo para ser julgado, e seu gênio agressivo só piorou a situação ao mostrar-se insolente durante o inquérito. Sabia que fora vítima de uma imprudência própria, mas seu ódio por Mankherere era tanto que não admitiria jamais conceder-lhe a vitória de humilhar-se, ainda que isso custasse-lhe seu futuro como sacerdote.

O resultado, para grande espanto popular, foi que Heka acabou condenado à morte, sentença que raramente fora decretada na história de Abtu, e jamais contra um sacerdote, ainda mais um do alto escalão do templo de Khentymentyou (2). Nem Mankherere, com todas as suspeitas de que era acusado, jamais chegou a ser julgado e menos ainda condenado.

Revoltada e histérica ao ouvir a sentença, Akh invadiu o tribunal aos gritos, desafiando os sacerdotes e proferindo graves acusações contra Mankherere e seus seguidores. O tumulto foi geral e os dois irmãos acabaram imediatamente presos, dividindo a opinião pública.

Numa manobra ousada, Mankherere convenceu o rei, já um tanto senil e cansado dos problemas do clero, a mandar executar os dois irmãos na manhã do dia seguinte, antes que o povo pudesse revoltar-se contra a sentença e fugisse ao controle. Acreditando nas palavras de Mankherere, o velho rei proferiu a ordem de execução sem pensar duas vezes, selando cruelmente o destino dos irmãos. Os dois deveriam ser apunhalados no distante deserto, para além da Cidade dos Mortos, e seus corpos não poderiam sequer ser recolhidos e receber um funeral decente, para que não viessem a ser um dia adorados ou homenageados. Seria a execração completa.

Ao amanhecer, Heka Ma'At e Akh Kheper-Apet foram levados para o oeste, em direção ao deserto, amarrados como criminosos comuns e sem direito a testemunhas ou ao amparo de amigos. Até mesmo seus amuletos e jóias foram confiscados. Longe dos olhos de curiosos, sob um sol escaldante, os irmãos foram forçados a ajoelhar-se na areia diante de seus algozes, para receber o golpe fatal.

De mãos dadas e cabeças erguidas, os dois olharam-se profundamente nos olhos, entre lágrimas. Nenhum proferiu sequer uma palavra implorando misericórdia aos carrascos, nem despediram-se entre si, apenas enfrentaram, com orgulho descomunal, o que lhes foi imposto, sentindo no íntimo que era melhor morrerem juntos ali do que sobreviver à morte um do outro e ter que continuar sozinho, humilhado, entre os vivos.

Os carrascos chegaram a duvidar de que estavam agindo realmente certo naquela execução. Para não prolongar a agonia, golpearam rapidamente os irmãos no coração com as longas adagas, e viram com certo horror como os dois, usando as últimas forças de que dispunham, tentaram sorrir antes de morrer, sem desgrudarem os olhos um do outro. Meio apavorados, os carrascos largaram os corpos para que fossem devorados pelos abutres e chacais, como havia sido ordenado, e correram à cidade, para contar o que presenciaram e fazer oferendas, implorando perdão por tamanha crueldade. Com certeza algum deus habitava mesmo aqueles dois, pois ninguém ousava enfrentar a morte com tamanha coragem...

*************

- Heka Ma'At! Heka Ma'At! Acorda, meu irmão! Não me deixes, por favor...

A voz soluçante de Akh aos poucos foi alcançando a mente de Heka, trazendo-o de volta à vida com um espasmo quando o ar finalmente voltou a penetrar seus pulmões. Uma estranha vibração em sua cabeça, como se uma abelha zunisse em seu cérebro, deixou-o nauseado. Num gesto instintivo, levou a mão ao peito e sentiu o sangue úmido em sua túnica, a dor da punhalada ainda bastante viva entre suas costelas.

- Ah, meu irmão! Meu adorado irmão! Graças aos deuses tu também respiras como eu!

Com olhos arregalados, Heka enxergou finalmente o rosto banhado de lágrimas da irmã, e o sangue que também manchava-lhe o vestido. Num impulso, puxou-a para si e abraçou-a com força, sem compreender o que havia ocorrido. Não estavam mortos, os dois? Em que mundo estavam, afinal?

- Com certeza não estamos no reino de Osíris... - arriscou Akh - Fomos executados e abandonados! Será que alguém por ventura nos propiciou um funeral secreto?

- Duvido muito! - Heka não conseguia atinar com a razão de estarem aparentemente vivos - Ninguém arriscaria tanto! E temos sangue em nossas roupas... Ainda estás ferida? Dói-te alguma coisa? Machucaram-te muito?

Akh abriu o vestido e mostrou-lhe que nem uma cicatriz havia ficado da punhalada que recebera, apesar do muito sangue que perdeu. Sentia apenas uma certa tontura, um zumbido na cabeça, provavelmente por terem ficado tanto tempo sob o sol forte. Heka também não tinha mais nem sinal da facada, só a vibração estranha que lhe atrapalhava o raciocínio.

- Devemos voltar na direção da cidade? - perguntou Akh - Tenho sede e fome, este cheiro nojento de sangue está a me fazer mal!

- Não sei se é seguro voltar agora... - ponderou Heka após alguns instantes, observando o deserto ao redor - O que poderão dizer ao ver-nos assim? Quer dizer, se é que os vivos podem nos ver... Podem achar que somos maus espíritos!

Akh concordou com a cabeça, também sem saber o que pensar. Começou inconscientemente a esfregar o sangue com areia, para limpar-se ao menos em parte. Subitamente teve uma idéia.

- Deve haver um pequeno oásis para o norte, não muito longe. Os mercadores costumam abastecer-se por lá... Podemos andar até a fonte e lavar nossas roupas! Se estamos mortos, o máximo que faremos será assustar alguns nômades... E não iremos ficar cansados, acho que os mortos não se cansam! Ou cansam? Sei que tenho fome e sede, e sinto calor. Será que podemos também sentir cansaço? Ou morrer de fome e sede? Já estamos mortos...

Heka olhou-a com certa curiosidade. Havia lógica naquilo, apesar do completo absurdo da situação. Finalmente caiu numa gargalhada desenfreada, caindo de joelhos na areia. Akh encarou-o com um pingo de raiva, esperando uma resposta.

- Tens razão, irmã! - Heka conseguiu falar, levantando-se novamente - Mortos só padecem das emoções humanas se forem enviados para o reino celeste de Osíris! Mas não estamos no reino de Osíris, pois nossos corpos não foram sepultados de acordo com os rituais. Não sei onde estamos, então só nos resta ver o que conseguimos por aqui mesmo. Vamos andar até esse tal oásis e tentar a sorte por lá!

De mãos dadas, os dois puseram-se em marcha rumo ao norte. Logo o calor do meio-dia, a sede e a fome começaram a pesar, e caminhavam cada vez mais devagar. Akh desmaiou após algumas horas, e Heka carregou-a por algum tempo, sucumbindo enfim ele próprio ao cansaço. Depositando o corpo da irmã na areia, deitou-se a seu lado e fechou os olhos, logo resvalando para a inconsciência total.

*************

O frescor da noite fez com que Heka acordasse violentamente, e novamente o forte zumbido penetrou sua alma, atordoando-o. Segundos depois Akh voltava a si a seu lado, num espasmo. Sem compreender nada, os dois demoraram alguns minutos para lembrar o que havia ocorrido. Novamente decidiram rumar para o norte em direção ao oásis, desta vez aproveitando a noite para caminhar mais rapidamente.

Só quando o céu começava a clarear foi que os dois divisaram o oásis, um tanto a oeste do que haviam suposto. Com ânimo renovado, apressaram o passo e alcançaram a fonte quando o sol voltava a arder-lhes novamente no corpo. Com alegria e alívio, os dois mergulharam na água fresca e beberam até não poder mais. Esfregando nas roupas a seiva das folhas de uma planta que conhecia, Akh conseguiu eliminar as manchas de sangue. Enquanto isso, Heka, completamente nu, corria entre as árvores catando tâmaras e outros frutos comestíveis, para saciar a fome que lhes ferroava o estômago.

Foi nessa situação constrangedora que os dois foram surpreendidos pela chegada de uma pequena caravana de masciauash (3), os nômades, que vinha justamente de Abtu. Os nômades riram ao ver Heka correndo nu para dentro da água com as tâmaras, enquanto Akh lutava para vestir a roupa molhada e transparente. Conversando numa língua um tanto confusa, os nômades não sabiam quem os dois eram e perguntaram se acaso haviam sido roubados, por isso estavam ali sozinhos.

Sem ter tempo para pensar, Akh afirmou que sim, que haviam sido roubados durante a noite, no deserto. Imediatamente os nômades ofereceram-lhes comida, roupas e abrigo, irmanados na revolta contra os ladrões de caravanas, solidários com outros viajantes vítimas de assaltos. Heka concordava sempre, sorrindo aqui e ali, sem compreender tudo o que diziam mas percebendo por alto o que se passava. Sem querer, acabou confirmando que Akh era sua esposa ao invés de sua irmã, para sorte de ambos, ou ela logo acabaria tornando-se alvo da cobiça de algum masciauash. Os dois ofereceram seus serviços de curandeiros ao grupo, em troca de companhia e abrigo até o próximo oásis, e logo foram incorporados à caravana. No deserto, os irmãos rumaram cada vez mais para o oeste, perdendo-se na distância, afastados de Abtu.

*************

Deserto do Sahara, a oeste do Egito - 2965 a.C.

Heka e Akh levaram ainda alguns dias para dominar o dialeto daquela tribo e aprender seus hábitos. Como a confusão de Heka os fizera pensar que os irmãos eram casados, os dois receberam uma pequena tenda provisória, até que pudessem arrumar uma maior. No fim isso veio-lhes até a calhar, pois assim podiam desfrutar de alguma privacidade e conversar em paz, e decidiram prosseguir com a farsa.

Nenhum dos dois tinha a mínima idéia de como ou por que ainda estavam vivos. Sim, que estavam vivos era um fato, pois os masciauash os tratavam como tal e inclusive comentaram sobre a condenação de dois irmãos em Abtu, que eles chamavam de Abedju, demonstrando que não os reconheciam nem tampouco os temiam.

Akh chegou a duvidar que tivessem mesmo sido executados, apesar de lembrar-se ainda vivamente, e com horror, da punhalada que recebeu e da sensação da morte sufocando-a. O que jamais esqueceria, entretanto, seria a visão do irmão sangrando diante de seus olhos, uma imagem que chegava a causar-lhe pesadelos.

Heka descartava a hipótese de uma intervenção divina. Era racional demais para acreditar nisso, mesmo sendo um sacerdote. Na verdade o que mais causava-lhes estranheza era que, sempre que um dos dois se afastava, sua reaproximação fazia com que ambos fossem atingidos por aquela sensação de zumbido interior. Quando permaneciam juntos a vibração parecia sumir, mas bastava um minuto de separação para que a nauseante impressão retornasse. Ninguém mais no grupo demonstrava sentir o mesmo, e os dois concluíram que o fenômeno deveria ter algo a ver com suas "mortes" no deserto. A vibração tornou-se mais um misterioso segredo dos irmãos, que acabaram por acostumar-se a ela.

Durante as horas mais frescas do dia, no começo da manhã e a partir do meio da tarde, o grupo rumava em direção ao oásis mais próximo. Os mais velhos, doentes e crianças pequenas eram arrastados pela areia em toscos trenós, puxados pelos adultos, enquanto os mais jovens e mulheres carregavam, nas costas e na cabeça, o que os trenós não aguentavam levar (4). Os poucos animais, cabras e aves, eram puxados por cordas ou levados em gaiolas. No auge do calor, acampavam provisoriamente à sobra das dunas para uma refeição leve, repondo energias para a segunda etapa da viagem. Quando o sol se punha, acampavam novamente, desta vez com mais conforto. Os homens descarregavam os trenós e armavam as tendas, e as mulheres acendiam a fogueira para preparar a comida e espantar predadores noturnos.

Às vezes os homens caçavam uma lebre, uma cobra, um abutre. A carne era sempre escassa, e qualquer pedaço era motivo de festa. Após as refeições, o grupo permanecia ainda algum tempo ao redor da fogueira, conversando, cantando e rindo. Os homens fumavam um amassado estranho de ervas que Heka jurava ter sido misturado com fezes de cabra, tamanho era o mau cheiro que exalava e o gosto ruim que deixava na boca. As mulheres em geral permaneciam à parte, ouvindo as histórias dos homens ou conversando entre si, enquanto remendavam tendas e roupas, fiavam, teciam ou amamentavam os filhos.

As atividades dos masciauash eram básicas. Todos trabalhavam coletivamente, pois a manutenção do grupo, mais que um ato de solidariedade, era uma questão de sobrevivência. Foi difícil para os dois irmãos, acostumados à vida de Abtu, adaptarem-se aos costumes simples e metódicos daquele povo, uma gente supersticiosa e inculta, rude e sem ambições, mas ao mesmo tempo com um coração enorme. Para agradecer pela hospitalidade, os dois faziam o que sabiam: cuidavam de doentes, tratavam ferimentos, oravam pelos moribundos, interpretavam os oráculos e as estrelas, celebravam rituais, arrancavam dentes podres, curavam diarréias. Era sempre tudo muito simples, arranjado com o que tinham à mão, conforme a necessidade. Em troca, recebiam comida e água, e por vezes algum presente - uma panela, uma pele para dormir, uma roupa nova.

Sem dúvida os dias junto aos oásis eram os melhores. Todos bebiam água à vontade, comiam frutas, caçavam com maior facilidade e, principalmente, podiam tomar banho e lavar roupas. Com os masciauash, Heka descobriu usos para plantas desconhecidas e aprendeu a caçar e lutar com armas. Entre as mulheres, Akh teve oportunidade de presenciar pela primeira vez um parto, e encantou-se com a maravilha do que viu. Aprendeu também a tirar a pele dos animais e curti-la com ervas, a tecer fibras vegetais e a fabricar tintas com frutas e seivas. Em troca, os irmãos ensinaram a tribo a pintar vasilhas com cores mais elaboradas, a escrever e até a controlar algumas pragas, como pulgas e piolhos, com remédios e cuidados básicos de higiene.

Cada parada num oásis poderia demorar dias, semanas ou meses, dependendo da abundância dos recursos encontrados. Por vezes mais de um grupo acampava no mesmo lugar, e todos aproveitavam para trocar mercadorias, contar as novidades dos lugares por onde passaram, rever parentes e amigos ou até arranjar casamentos.

Akh e Heka logo aprenderam a usar esses encontros para arejar as idéias com notícias da civilização e, sobretudo, para ganhar alguma coisa oferecendo seus préstimos como curandeiros. Havia sempre alguém precisando de uma poção, de um curativo ou mesmo de uma leitura dos oráculos, e os irmãos acabaram tornando-se conhecidos entre os masciauash. Akh, sem dúvida, era quem chamava mais a atenção, por sua pele e olhos claros, mesmo quando esforçava-se por ocultar-se sob véus e roupas. Ela só era deixada em paz em respeito a Heka Ma'At, seu "marido", um curandeiro competente e disposto a brigar, se fosse necessário, para defendê-la.

*************

Deserto do Sahara, a oeste do Egito - 2963 a.C.

Foi durante uma dessas alegres confraternizações junto aos oásis que os irmãos constataram a existência de mais um fenômeno inexplicável em suas vidas: sua cicatrização rápida, fora do normal. Akh já havia notado que, ao espetar o dedo no tear ou queimar a mão, sua pele jamais apresentava sinais de ferimentos, mas acreditava que no final nem tivesse se machucado realmente. Heka também percebeu um dia, ao ferir o dedo com uma corda, que não havia marcas por onde o sangue pudesse ter saído. Logo esqueceu o fato e nem chegou a comentá-lo com a irmã.

Até que, ao negociar sobre uma faca com um nômade de outra tribo, Heka deixou a arma escorregar e levou um profundo talho na coxa. O sangue imediatamente começou a manchar sua túnica e uma mulher correu a oferecer-lhe uma bandagem. Avisada do acidente, Akh logo acudiu com água limpa e algumas ervas para fazer o curativo. Para seu susto, contudo, sob o sangue não havia mais nem marca do corte na perna de Heka Ma'At...

Com uma rápida troca de olhares, os irmãos entenderam que o fato não deveria ser descoberto pelos demais. Akh apressou-se em cobrir a perna de Heka com ataduras, pronunciando orações ininteligíveis e garantindo aos curiosos que os deuses logo curariam o ferimento. Heka fingiu sentir dores enquanto a irmã amparava-o, caminhando até sua tenda. Finalmente longe dos olhares dos outros, rapidamente desfizeram o curativo falso. Akh lavou o sangue e as ervas da perna do irmão, e nada encontraram que indicasse que ele pudesse ter-se ferido.

- Eu senti a maldita faca cortar-me! - sussurrava Heka, esticando minuciosamente a própria pele - Tu viste o sangue, como pode ser isso?

Sem palavras, Akh olhava-o com a testa franzida. Num movimento lento, agarrou uma agulha de osso que estava largada por perto. Heka mal teve tempo de perceber o que ela fazia, muito menos de impedi-la.

- O que... Akh! NÃO!!

Com um golpe rápido, Akh atravessou a própria mão com a agulha, e desmaiou de dor com um gemido surdo. Heka atirou-se sobre ela, tentando fazê-la recobrar os sentidos.

- Irmã! Maluca! - murmurava - Akh, acorde! O que fizeste? Minha pobre querida... Akh!

Engolindo em seco, Heka decidiu arrancar-lhe a agulha da mão enquanto ela ainda estava inconsciente. Pelo menos assim a dor seria menor.

Akh acordou ao sentir a agulha sendo extraída de sua carne. Heka tapou-lhe a boca para que não gritasse, seu olhar demonstrando o quanto a dor da irmã o fazia sofrer. Ao ver que ela não iria mais gritar, soltou-a e começou a limpar-lhe a mão com um trapo, para analisar a extensão da ferida. Só que... Não havia mais ferida alguma.

Sem largar a mão da irmã, Heka lavou-a com água para remover o sangue, vendo que no lugar no furo ficara apenas uma leve mancha avermelhada, que desvanecia-se rapidamente. Akh também não desgrudou os olhos da própria mão, até que nada mais restou provando que antes havia uma enorme agulha atravessada ali.

- Por que fizeste isso? - perguntou finalmente Heka - Tu já o sabias?

Akh balançou a cabeça negativamente.

- Não. Só desconfiava. Eu já havia me queimado e cortado antes, coisa pequena. Nunca dei importância. Só hoje, contigo, foi que vi que isso poderia ser bem maior. Só quis ter certeza de que seria igual comigo...

Os dois permaneceram em silêncio por algum tempo, tentando raciocinar.

- Achas que isso tem algo a ver com nossas mortes e esses sons estranhos que só nós ouvimos? - perguntou Akh num fio de voz - O que achas que significa tudo isso?

- Não sei... - confessou Heka, passando a mão lentamente pelos longos cabelos negros - Jamais vi nada parecido... Agora me recordo que também já me cortei e tudo sumiu. Na hora pensei que tivesse sido algo superficial...

- Antes isso não acontecia conosco! - insistiu Akh - Tu já te machucaste tantas vezes! Eu cansei de ralar meus joelhos em tombos... Papai ralhava quando via os curativos que tu mesmo me fazias! Por que agora somos diferentes?! Estamos... Nós estamos mesmo mortos, Heka? É isso?

Heka sacudiu a cabeça com violência. Não podia aceitar que estava morto se comia, bebia, dormia e até sangrava como vivo!

- Será que os deuses nos condenaram a vagar pela terra porque nossos corpos não foram sepultados? - Akh não sabia mais o que pensar.

Heka encarou-a por alguns segundos, depois abaixou o olhar, perdido nas próprias idéias. Talvez jamais descobrissem a verdade...

Durante alguns dias Heka usou um curativo falso para não levantar suspeitas. Quando o grupo decidiu levantar acampamento, não havia mais necessidade de fingir e todos viajaram sem preocupações.

Dois meses mais tarde, entretanto, quando estavam a apenas um dia de distância de um oásis do qual acabavam de partir, Heka foi picado por uma serpente ao armar sua tenda, ao anoitecer.

Após tentar tudo o que podia e ver que o veneno vencia seus esforços, Akh desesperou-se. Desta vez sentiu que perderia o irmão para sempre, e a idéia era-lhe insuportável.

Toda a tribo permaneceu em vigília do lado de fora de sua tenda, aguardando com apreensão o desenlace do acidente. As mulheres revezavam-se ao lado de Akh, orando para que seu querido curandeiro sobrevivesse.

Heka sofreu horas intermináveis de agonia, delirando de febre e agitando-se em tremores, o corpo banhado em suor frio. Por fim, ao entardecer do dia seguinte, com um último espasmo, morreu nos braços da irmã. Sentindo com horror que a vibração que os unia há anos desapareceu de repente, Akh gritou e chorou como louca. As mulheres que a acompanhavam saíram da tenda em silêncio e atiraram punhados de ervas secas à fogueira. A este sinal, os homens descobriram as cabeças, sujaram as faces com cinzas e areia e iniciaram um canto fúnebre, entrecortado aqui e ali por gemidos e soluços.

Akh agarrava-se ao corpo do irmão, embalando-o em seu regaço e chorando desesperadamente. Foi então que, como se um golpe físico a atingisse, sentiu o impacto da antiga vibração assaltá-la novamente, ao mesmo tempo em que Heka voltava a si num violento tremor, engasgando na tentativa de respirar.

O susto foi tão grande que Akh não chegou nem a gritar. Paralisada, olhava para o irmão como se jamais o tivesse visto antes.

Heka também estava surpreso. Seu corpo todo doía e sentia um peso enorme no peito, seu coração batia apressado, seu cérebro girava. Estava VIVO! Era como havia se sentido ao acordar pela primeira vez no deserto...

Akh estendeu a mão para tocá-lo. Heka agarrou-lhe o braço e ia começar a falar quando, com a mão livre, ela apressou-se em tapar-lhe a boca, para que ninguém ouvisse sua voz. Heka puxou-a para seus braços e Akh desabou a chorar novamente.

- Tu estás vivo, irmão! - cochichou-lhe ela ao ouvido - Pensei ter-te perdido para sempre!

Logo Heka percebeu o canto fúnebre e quis levantar. Akh fez-lhe um gesto imperioso para que se calasse e puxou-o novamente para perto.

- Eles sabem de tua morte! - explicou em voz baixa - Como explicar-lhes que estás vivo agora? Não compreenderiam!

Heka não conseguia raciocinar com clareza. Sua cabeça ainda rodava sob o efeito do veneno.

- Preciso então separar-me deles... Não podem ver-me! Vou voltar para o oásis...

- Irei contigo! - decidiu Akh - Inventarei algo e iremos juntos! Vou mandá-los seguir viagem e fugiremos na direção contrária!

Aos cochichos, os dois criaram uma história que pudesse convencer a tribo a seguir sem Akh, e ela apressou-se a interpretar sua parte, antes que viessem buscar o "corpo" de Heka para o funeral. Fingindo-se chorosa, saiu sozinha da tenda e dirigiu-se em voz alta a toda a tribo explicando que, segundo os costumes de sua terra, deveria levar sozinha o "corpo do marido" de volta para ser sepultado na tumba da família, garantindo assim que sua alma de curandeiro recebesse os rituais próprios de seu ofício. Caso contrário, tudo o que Heka havia feito em vida seria desfeito, e sua magia se perderia.

Assustados com a segunda parte da "tradição", os nômades rapidamente concordaram e cada família forneceu um pouco do que dispunha: comida, água, roupas, vasilhas e até um trenó, para que Akh pudesse levar o "corpo do marido" através do deserto.

Akh garantiu que ninguém se aproximasse de sua tenda até a manhã seguinte, quando todos finalmente partiram. A tribo despediu-se da curandeira com lágrimas, agradecimentos e votos de boa sorte no longo caminho que deveria enfrentar. Akh aceitou tudo com genuína tristeza. Após tanto tempo, aprendera a amar aquele povo e a separação era-lhe dolorida.

Só após certificar-se de que o último deles havia sumido na distância foi que Heka atreveu-se a sair da tenda. Apressados, os dois empacotaram tudo o que tinham e rumaram de volta à segurança do oásis.

Logo encontraram outra tribo, que os conhecia de fama, e juntaram-se ao novo grupo, rumando em direção contrária à que a primeira tribo havia seguido.

Os meses deram lugar aos anos, e os irmãos perambularam pelo deserto de um lado para outro. Quando corriam o risco de encontrar algum grupo que sabia da morte de Heka, inventavam desculpas para separar-se dos companheiros e tomavam outra direção. Algumas vezes aproximavam-se de cidades à beira do Nilo para comerciar, outras iam para os desertos dos Lobu ao norte ou para as cataratas do Uauat ao sul (5), sempre evitando encontrar velhos conhecidos. Se um deles sofresse um acidente ou algo ameaçasse denunciar seus segredos, inventavam histórias, criavam superstições, ocultavam fatos.

As notícias das cidades chegavam a eles pelos nômades que cruzavam no caminho. Uma vez os irmãos chegaram a entrar em Abtu, curiosos por rever o lugar onde nasceram, mas estava tudo tão diferente que mal conseguiram localizar o templo de Kentymentyou, abandonado e em ruínas...

E os anos deram lugar às décadas, enquanto os dois nunca envelheciam. As tribos nômades acabaram por acostumar-se à lenda sobre um casal de curandeiros-deuses, que sobreviviam às gerações e espalhavam o bem pelo imenso deserto através dos séculos...

*************

Notas explicativas:

1 - Quando os pais morriam sem ter construído ou terminado a construção das próprias tumbas, os filhos tinham obrigação moral de realizar as obras. Era comum que alguns filhos fizessem ampliações nas tumbas dos pais, como homenagem, ou erguessem templos onde as pessoas queridas fossem reverenciadas com oferendas. Alguns mortos podiam, com o tempo, até ser transformados em divindades menores de determinadas regiões.

2 - A pena de morte raramente foi empregada no Egito Antigo. Em geral os crimes mais graves eram punidos com trabalhos forçados em lugares inóspitos, como a mineração de ouro e a extração de pedras em regiões distantes, ou com o desterro. No caso do condenado ser pessoa de grande influência, como um membro do governo ou do alto clero por exemplo, haveria a "opção honrosa" do suicídio, evitando as humilhações do cumprimento da pena, mas era uma saída raramente usada.

3 - Masciauash eram os beduínos, as tribos nômades que habitavam o deserto a oeste do Nilo.

4 - Não havia outra forma de transporte de cargas no deserto nesta época. A roda só foi introduzida no Egito cerca de 1.500 anos após esta história. Os camelos provavelmente eram conhecidos dos egípcios por volta do século II d.C., e só passaram a ser largamente utilizados como animais de carga após a invasão árabe, durante o século VII d.C.

5 - Os Lobus seriam os atuais Líbios. O Uauat era a região compreendida entre Abtu (Abidos) e a segunda catarata do Nilo.
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