Methos


Roma, Península Itálica - 195 a.C.

- Quem deixou esta mensagem? - Eksamat estava pálido, o semblante carrancudo, quando acenou para que um dos criados se aproximasse - Há alguém esperando pela resposta?

Como era tradição, a famosa hospitalidade romana fez-se notar e logo pela manhã os dois irmãos começaram a receber mensagens de boas-vindas dos vizinhos, junto com alguns presentes simples e convites para reuniões sociais nos próximos dias. Seguindo as regras da etiqueta, Eksamat respondia a todas as mensagens com outras escritas de próprio punho, retribuindo os convites e presentes, quando deparou-se com um pergaminho com as palavras PAX VOBISCUM, juntamente com um endereço não muito longe dali, também no monte Palatino, e a lacônica assinatura "M. R." no fim da página. O criado explicou humildemente que o portador da mensagem, um menino de cerca de dez anos, simplesmente deixou o pergaminho na porta e sumiu.

Eksamat acorreu com o novo pergaminho aos aposentos da irmã e mostrou-lhe a mensagem. Aka empalideceu e encarou-o por alguns instantes antes de perguntar:

- Achas que é um desafio?

- Não há um horário específico, apenas o endereço!

- O que pensas que pode ser então, um convite para uma visita cordial?

- O mensageiro sumiu, creio que era o mesmo menino de ontem! - Eksamat passeava pelo quarto com passos nervosos - E essa assinatura não diz nada, como vou saber de quem se trata?

- É estranho! - Aka releu as palavras enigmáticas - Quem quer que seja esse Imortal, ele parece preferir jogar conosco do que nos enfrentar abertamente! Nenhuma das atitudes dele faz sentido!

- Escreverei uma carta para esse endereço, convidando esse tal "M. R." para encontrar-nos em algum templo! - decidiu Eksamat, tomando o bilhete de volta - Vou enviar um dos criados até lá e pedirei que ele veja que local é esse. Vou mandá-lo aguardar a resposta, assim teremos ao menos uma idéia do que está se passando!

Uma hora depois o criado voltou com um novo bilhete, onde lia-se apenas "Aceito, M. R." em letras graúdas. O criado informou que no endereço ficava uma elegante residência, não muito grande mas respeitável, e aparentemente um dos moradores estava de partida, pois viam-se transportadores enchendo dois carros com bagagens às portas da casa. O criado não chegou a ver os moradores - o menino que trouxera o bilhete pela manhã atendeu-o ao portão do posticum e levou a carta para o patrão, voltando minutos depois com a resposta. Entretando, o criado fora esperto e, puxando conversa com um dos carregadores, descobriu que dois homens moravam ali, sendo que apenas um deles viajaria dentro de poucas horas. E a viagem não estava sendo feita às pressas, pois o contrato de transporte já tinha sido fechado há mais de uma semana. Infelizmente o menino voltara antes que o criado pudesse descobrir para onde seguiria a mudança, mas mesmo assim Eksamat premiou-o com algumas moedas por ter obtido tantas informações.

- Pela caligrafia, é o mesmo sujeito que nos mandou as duas outras mensagens! - analisou Aka, lendo a resposta que o irmão lhe apresentou - Será que o outro que vai viajar também é um de nós?

- Talvez... - Eksamat franziu a testa - É melhor nos arrumarmos, já mandei chamar um carro para levar-nos ao templo! Finalmente vamos ficar frente a frente com esse tal "M. R."!

*************

O entra e sai de pessoas no templo de Juno era agitado. Tentando passar desapercebidos, os irmãos passearam pelo local observando os ornamentos das paredes e o comportamento dos fiéis, procurando entre eles quem seria o Imortal que sentiam. Pelo pouco que puderam ver na noite da véspera, sabiam tratar-se de um homem alto, nada mais. A vibração que identificavam, porém, era forte e densa, indicando alguém velho e, provavelmente, com várias cabeças cortadas no currículo. De repente, uma figura surgiu por trás de uma pilastra, encarando-os à distância com um leve sorriso nos lábios.

Apertando o braço do irmão, Aka acompanhou-o em silêncio, aproximando-se do estranho, que também avançava na direção deles. Aka não podia negar que gostava do que via, pois o homem estava vestido com apuro e dignidade, conforme a moda do jovem patriciado romano, porém sem ostentações. Na verdade ele parecia simpático, com os cabelos curtos levemente despenteados, sorrindo e caminhando descuidadamente, sem a postura emproada da maioria dos patrícios latinos. "Definitivamente ele não é romano, apenas parece romano!", pensou Aka. Também não vestia-se como um militar, nem andava como os marinheiros. No geral, ele era magro e tão alto quanto Eksamat, único fato que chamava ligeiramente a atenção - se não fosse por isso, dificilmente ele seria notado numa multidão em Roma.

Os três pararam a uma distância respeitosa, cumprimentando-se com acenos de cabeça e olhares curiosos. O estranho sorriu, inclinado a cabeça e fazendo um gesto para que caminhassem até um canto menos movimentado, onde poderiam conversar sem ser interrompidos. Só então ele dignou-se a falar, numa voz melodiosa e profunda:

- Bem-vindos a Roma, amigos! Espero que tenhais compreendido minhas mensagens...

- Mensagens estranhas, por sinal! - ironizou Eksamat - Atirar pedras na casa dos outros pode ser perigoso para quem deseja paz!

- Oh, desculpai-me o atrevimento! - continuou o estranho, imitando o tom irônico de Eksamat num evidente gracejo - Já era tarde, receei chamar a atenção dos vizinhos mandando bater à vossa porta! Mas não podeis negar que hoje agi de acordo com o protocolo...

- E por que nos enviaste teu endereço, se não mandaste teu nome? - intrometeu-se Aka, surpresa pelo tom verde-escuro dos olhos dele - Quem quer receber visitas costuma ser mais específico em seus convites!

- Perdão, senhora! - ele não disfarçava um grande interesse ao encará-la - Meu nome é Methos Remus, ao vosso dispor! E os vossos nomes, se acaso posso saber?

- Sou Eksamat, esta é minha irmã Aka! - apresentou-se Eksamat, na defensiva - Sabemos que há outros como nós na cidade, acaso sois todos amigos?

- Na verdade, neste exato momento, dois de nós estão a caminho de suas propriedades ao norte! - Methos Remus voltou-se novamente para Aka - Mas convivemos cordialmente, sem dúvida! E esperamos continuar assim, se é que me entendeis! Roma não é um bom lugar para escândalos...

- Acabamos de chegar à cidade, senhor! - respondeu Aka secamente, tentando disfarçar o rubor que o olhar de Methos Remus lhe provocava - Se tua proposta de paz é sincera, saberemos respeitá-la enquanto respeitarem nossa presença aqui!

Methos sorriu novamente, estreitando os olhos e depois erguendo as sobrancelhas, voltando-se então para Eksamat:

- Muito me agradou vossa proposta para que nos encontrássemos em Solo Sagrado! Espero que possamos nos encontrar fora daqui com a mesma cordialidade... Há tempos cultivamos a paz entre os vizinhos de nossa raça, certamente apreciareis a companhia de outros como nós!

- E os outros, acaso compartilham tua opinião? - Eksamat fez um gesto vago - Como disseste, Roma não é um bom lugar para escândalos, e nós detestamos chamar a atenção sem necessidade!

- Oh, estejais certos de que nós também preferimos a discrição sobre tais assuntos! - Methos fez uma leve mesura - Se acaso desejardes compartilhar conosco de algumas horas agradáveis, por favor visitai minha humilde residência! Costumo receber todas as terças-feiras para o jantar, e minha casa é a vossa casa!

- Somos gratos pelo convite! - respondeu Aka num impulso - Nossa casa também está à tua disposição...

Com um olhar divertido e simpático, Methos Remus combinou então visitá-los dali a dois dias e afastou-se com nova mesura, logo sumindo por trás de uma coluna.

- O que achaste, Eksamat? - perguntou Aka num sussurro ao irmão, evitando encará-lo - Ele parece-me pacífico, acreditas que possamos recebê-lo sem sustos?

- Por via das dúvidas, pagarei a um sacerdote que abençoe nosso altar doméstico e consagre toda a casa antes que ele vá nos visitar! Agradeço a Emrys por essa idéia, agora nos será muito útil! - Eksamat lançou um olhar de esguelha à irmã, ainda pendurada a seu braço - O que deu em ti para convidá-lo assim de repente? De nós dois, tu sempre foste a mais cautelosa!

- A mais medrosa, tu queres dizer! - Aka tentou disfarçar o rubor - Pois bem, simplesmente duvido que ele arriscasse a cabeça enviando-nos seu endereço, se quisesse fazer-nos algum mal! Ele estará sozinho lá nos próximos dias, seria uma temeridade provocar-nos! E em nossa casa também estaremos em maior número, somos dois contra um. Mesmo que ele leve o outro, o quarto Imortal que ainda sentimos, estaremos empatados. E estou curiosa para saber como tantos de nossa espécie convivem numa cidade do tamanho de Roma, sem atacarem-se uns aos outros!

- Tens razão! - Eksamat franziu a testa mas, diante da cara de inocente da irmã, mudou o rumo da conversa - Vamos, ainda temos que escolher novos criados entre os que nosso procurador ficou de enviar-nos! Acho que, diante do que sucedeu-se aqui, poderemos ficar ainda algum tempo na cidade...

*************

Ao final da tarde do dia combinado, Methos Remus chegou ao palacete dos irmãos acompanhado do menino, que aparentemente servia-o com fidelidade canina. Como presente, trouxe aos anfitriões duas pequenas caixas em ébano, cada uma contendo um rico pingente em prata no formato de um Oroborus (1). Aka e Eksamat entreolharam-se assustados, reconhecendo que as jóias lembravam muito o sinete que costumavam usar em sua época como marinheiros.

- Curioso o formato de tais peças! - comentou Eksamat, fingindo-se descontraído - Já vi tal símbolo antes e, até onde sei, ele possui um significado especial...

- A serpente que dá à luz a própria cauda é sinônimo de eternidade e, por que não, da nossa Imortalidade! - sorriu Methos Remus, exibindo um broche em ouro com formato ligeiramente parecido, que prendia o manto em seu ombro esquerdo - Sua história é talvez mais antiga do que nós, Imortais, por isso creio que não fica mal adotar tal figura para representar nossa própria existência!

- Realmente! - exclamou Aka - Nosso mestre usava braceletes em prata com serpentes aladas, muito similares ao desenho de teu broche! Tu deves lembrar-te, meu irmão, nós o vimos com elas algumas vezes!

- Sim, recordo-me bem delas! - o rosto de Eksamat iluminou-se - Na primeira vez em que o encontrei, ele usava esses braceletes! À época eu estava tão confuso por conhecê-lo que não dei importância às figuras, porém lembro-me de tê-lo visto com as mesmas jóias algumas vezes depois e notei que o desenho era realmente esse! Quando perguntei-lhe a respeito, ele disse tratar-se de um símbolo mágico de proteção e... Bom, depois esqueci o assunto!

Eksamat deteve-se no meio do que ia falar, com medo de revelar algo mais. Na empolgação da lembrança, percebera que nunca tinha dito nada sobre essa conversa à irmã, porém já tinham sido indiscretos demais ao comentar sobre Emrys diante de Methos Remus, e não podiam entrar em detalhes com ele ali presente. Ainda não o conheciam e não sabiam se poderiam mesmo confiar nele.

Entrementes, Aka não deixara de notar uma certa palidez no convidado ao ouvir o comentário de Eksamat. Os olhos de Methos Remus tinham-se estreitado por um breve segundo, depois ele inclinara levemente a cabeça para o lado e simulara um sorriso, tentando parecer interessado. Contudo, para Aka era evidente que algo naquela história tinha chamado-lhe a atenção além do normal.

- Acaso já viste alguém usando esse tipo de braceletes, Methos Remus? - lascou ela - Achas que mais Imortais possam adotar tais símbolos?

- Oh, acredito ter conhecido um sacerdote que usava realmente braceletes de serpentes aladas! - confessou Methos, tentando parecer casual - Deveria ser símbolo de alguma seita... Mas já faz muito tempo! E como o Oroborus é uma figura tão antiga, pode ser que outros de nós o conheçam e até venham a usá-lo, por que não?

Methos fervia por dentro, arrependendo-se por sua precipitação em trazer os presentes, pois jamais imaginara tamanha coincidência. Sabia muito bem, pelos gestos inconscientes de Eksamat ao descrever os tais braceletes, que o tal mestre só poderia tratar-se de uma única pessoa - Emrys. Então o velho Imortal continuava vivo! Lembrava-se de quando o conhecera, e sinceramente temia reencontrá-lo após tanto tempo. Melhor mudar logo de assunto.

- Que indelicadeza a nossa! - falou Eksamat de repente, também procurando uma forma de sair da situação - Estamos aqui parados, sem receber-te como deveríamos! Por favor, Methos, acompanha-nos! Mandarei servir refrescos e logo mais o jantar!

Os três acomodaram-se languidamente sobre os divãs do tablinum e puseram-se a falar sobre amenidades enquanto os criados circulavam, agachando-se diante deles com as bandejas repletas de sucos, vinho, frutas frescas, mel e outras iguarias leves. Depois, fazendo sinal para que todos se retirassem, Eksamat esperou que Methos Remus despachasse também o menino, que mantinha-se a seu lado para limpar-lhe a boca e as mãos, de acordo com o protocolo patrício. Aka sorriu discretamente, pois nunca acostumava-se ao uso de ter uma criada a seus pés até para tirar os ciscos de comida de sua roupa (2), e ver Methos com o menino de repente pareceu-lhe extremamente cômico. Notando o olhar divertido dela, ele fez um gesto dispensando o garoto e depois comentou, em tom jocoso, falando em grego para que nenhum criado bisbilhoteiro entendesse:

- Admira-me que os latinos tenham tanto poder atualmente, tendo em vista sua preguiça! Não sei como eles ainda não inventaram alguém para fazer filhos por eles...

- Se tu lhes deres a idéia, pode ser que inventem! - gargalhou Eksamat, começando a apreciar o humor irônico de Methos - Eu, pessoalmente, prefiro menos gente a meu redor. Sempre corremos o perigo de que alguém descubra nossos segredos!

- Tens razão, por isso mesmo tenho poucos escravos em casa e ando só com este menino, que comprei ainda pequeno! - Methos fez um gesto com a taça de vinho - Quando ele ficar mais velho, poderei vendê-lo por um bom preço e trocar por outro menino, e assim obter algum lucro! Escravos jovens e bem-educados valem muito no mercado (3)!

- Nós temos poucos escravos, preferimos empregados livres! - comentou Aka também em grego, sem conseguir ocultar uma leve censura na voz - Não aprovamos o comércio de seres humanos! Várias vezes compramos alguns rejeitados apenas para libertá-los depois, e mesmo os que somos obrigados a manter, em nome das regras sociais (4), recebem gordos pecúnios com nosso total apoio... Assim eles compram a própria liberdade mais depressa (5)!

Methos Remus estreitou os olhos e inclinou ligeiramente a cabeça, num gesto que depois os irmãos perceberiam ser uma característica dele sempre que algo o interessava ou fazia-o pensar. Após um breve instante, Methos comentou diretamente:

- Nunca fôsteis escravos, pelo que vejo...

Eksamat empalideceu e Aka arregalou os olhos diante da idéia. Fingindo não notar a perturbação que causava, Methos continuou casualmente:

- Afinal, ocorreram tantas guerras pelo mundo afora nos últimos milênios, com reinos invadindo os vizinhos e arrastando a população de cidades inteiras à escravidão, que é difícil encontrar um Imortal que tenha escapado a tal destino!

- Uma vez, após um naufrágio, fomos recolhidos por um barco de comerciantes mal-intencionados que, a princípio, tratou-nos com hospitalidade, porém logo tentaram forçar-nos ao trabalho! - confessou Aka em tom soturno - Diziam que deveríamos pagar voluntariamente pelo socorro recebido, mas alguns dos marinheiros salvos conosco foram agredidos quando recusaram-se a fazer o que era ordenado...

- Ouvimos rumores de que pretendiam vender-nos como escravos em um porto bem mais ao sul! - Eksamat assumiu a narrativa, lançando um olhar enviesado à irmã como repreensão por ela ter tocado no assunto - Por sorte, no caminho, encontramos outro navio onde viajavam conhecidos nossos, que pagaram nosso resgate. Obviamente nós os reembolsamos assim que pudemos, afinal eles salvaram-nos as vidas! Foi a única vez que corremos o perigo de acabar escravizados!

Aka manteve o olhar perdido no jardim, através das grandes janelas abertas. Preferia não encarar Methos, pois sabia que Eksamat estava sintetizando quase absurdamente a história. A verdade é que o naufrágio fora uma catástrofe que ainda hoje provocava-lhe pesadelos. Uma violenta tempestade noturna tinha feito com que Eksamat perdesse o rumo na escuridão, e as ondas enormes empurraram o barco de encontro a um aglomerado de recifes submersos. Com a ajuda de todos os homens à bordo, Eksamat conseguiu evitar um choque maior, porém várias tábuas do casco romperam-se e o navio começou inapelavelmente a afundar. Amarrado ao leme, Eksamat gritara em vão a plenos pulmões, tentando organizar a tripulação histérica e levar o que restava da embarcação para perto de algum porto, alguma ilha, qualquer lugar mais próximo da costa de onde depois poderiam nadar para a salvação. No meio do caos, Aka viu-se arremessada para fora do barco por uma onda que varreu o convés, e foi puxada do abismo do mar por um jovem marinheiro, que caíra com ela e agarrara-se a um pedaço de remo flutuante. Percebendo que o barco adernava, outros homens pularam na água em desespero, mas a maioria foi engolida pelas ondas selvagens e sumiu. Ouvindo os gritos da irmã, Eksamat percebeu finalmente a inutilidade de seus esforços e, cortando as cordas que o prendiam, jogou-se ao mar atrás dela. Em poucos minutos uma nova onda gigante tombou o navio, estraçalhando-o de vez contra os rochedos e espalhando a preciosa carga que levavam. Através da cortina de chuva e espuma, os relâmpagos mostavam vislumbres dos sobreviventes esforçando-se por escapar dos recifes, agarrando-se a pedaços de madeira e gritando por socorro.

Como muitas vezes ocorre com tempestades marinhas, aquela passou de repente, deixando a cena do desastre mergulhada em escuridão e silêncio. Os sobreviventes agruparam-se o melhor possível e, quando o dia amanheceu, perceberam sombras de ilhas ao longe, mas distantes demais para serem alcançadas a nado. Horas depois, um navio vindo de uma destas ilhas ao norte seguiu o rastro dos destroços e resgatou-os. Contudo, ao invés de aportarem logo em alguma cidade para desembarcá-los, os comerciantes decidiram seguir viagem rumo ao sul, e os irmãos perceberam o risco que corriam. Na época o acordo de Eksamat com os piratas já tinha-se perdido no passado e, temendo algo ainda pior, os dois Imortais preferiram não revelar que eram muito ricos, torcendo para que o destino oferecesse-lhes uma oportunidade de fuga. Sua sorte foi que, poucos dias e muitos maus tratos depois, quando o barco estava prestes a atracar numa ilhota pouco povoada para buscar água, cruzaram com outro navio, desta vez pertencente a um comandante que já tinha negociado com os irmãos. Ao reconhecê-los de longe, o comandante pediu licença para aproximar-se amistosamente e, por sobre a amurada, informou-se aos gritos sobre o ocorrido. Sabendo que Aka e Eksamat possuíam uma enorme fortuna e vários outros barcos, esse comandante negociou comprar os náufragos ainda em alto-mar, fingindo necessitar imediatamente de marinheiros extras. Obviamente ele queria apenas exigir depois dos irmãos um imenso resgate, em troca do "favor", mas Aka implorou a Eksamat que concordasse com qualquer exigência do comandante, desde que ele levasse-os em segurança até um porto conhecido de onde pudessem voltar para casa, o que de fato conseguiram.

Só em lembrar-se do horror do naufrágio ou imaginar o que poderia ter-lhe acontecido caso seus "salvadores" descobrissem que ela era mulher, Aka tinha calafrios. Se tivessem chegado ao mercado de escravos, ela e o irmão poderiam ser separados para sempre, e ainda corriam o risco de encontrar outros Imortais. Como poderiam sobreviver, amarrados e desarmados?

- Quantos mestres Imortais já tivésteis? - insistiu Methos, absorto nas próprias idéias a ponto de nem reparar na momentânea distração de Aka - Nenhum deles tentou transformar-vos em escravos?

Embaraçados com a objetividade dele, os irmãos trocaram olhares. Eksamat respondeu por ambos:

- Na verdade tivemos só dois mestres até hoje, e para nossa sorte nunca nenhum deles tentou tal coisa! Sempre fomos livres, por isso mesmo é que condenamos a escravidão! Acaso tu já passaste por isso?

- Sim, passei, e garanto-vos que não é uma experiência agradável! - Methos pensou por alguns instantes, depois sorriu, dando de ombros - Porém hoje eu sou um cidadão romano como outro qualquer, apenas sigo os costumes... Dizei-me, amigos, o que vos trouxe a Roma?

Tentando revelar pouco sobre seu passado e ainda falando em grego, Eksamat preferiu tomar a dianteira ao responder as perguntas do convidado. Percebia que Aka estava inclinada por demais a abrir-se com Methos, e desconfiava que ela poderia estar interessada nele. Não podia censurá-la, afinal Methos Remus era atraente e mostrava-se simpático, parecia realmente uma excelente companhia, porém seria melhor tomar mais cuidado. Ele fazia muitas perguntas diretas, mas esquivava-se sempre que possível a dar respostas precisas, e Eksamat decidiu usar a mesma tática, chegando inclusive a mentir dizendo que não eram Imortais há tanto tempo. Não sabia a idade de Methos e, como Emrys lhe dissera uma vez, alguns Imortais ficam excitados diante da possibilidade de matar outro que seja muito mais velho, tanto pela energia que poderiam receber quanto por quererem provar o próprio poder diante de um oponente experiente. Eksamat sentia, pela vibração, que Methos era muito mais velho do que insinuava, talvez tivesse quase a mesma idade que ele e Aka, mas e quanto aos outros que viviam em Roma? Era preciso agir com discrição.

Por seu lado, Methos Remus fazia considerações parecidas. Seus informantes tinham-no alertado que os recém-chegados pagaram secretamente uma fortuna a um sacerdote para consagrar todo o terreno da casa onde tinham ido morar, ao invés de apenas abençoar o altar doméstico, uma tradição das residências latinas. Obviamente o segredo vazou, pois Methos também pagava fortunas quando queria informações, e apreciou a descoberta incomum. "Eles não são bobos!", pensara na hora, decidido a fazer o mesmo com sua própria casa.

Os Imortais com quem Methos convivia em Roma eram seus camaradas, encontravam-se em festas e noitadas, visitavam-se constantemente. Um deles, Titus Marconus, hospedava-se em seu palacete sempre que estava na cidade, podia-se dizer até que moravam juntos. Peter Gaicus também frequentava sua casa quase diariamente, e era um ótimo companheiro. Não que Methos fosse tolo a ponto de baixar totalmente a guarda estando junto deles, mas conhecia-os o suficiente para saber que nenhum se atreveria a desafiá-lo enquanto ele próprio lhes parecesse confiável, e era o que ele esforçava-se por parecer. Eles até treinavam juntos em seu amplo jardim, lutando alegremente como crianças, e Methos procurava jamais feri-los seriamente, para não ofendê-los, nem dava-lhes oportunidades de perceber suas fraquezas, para não despertar-lhes a ambição por sua cabeça. Mostrar-se amigo sim, mas vulnerável não.

Entretanto, os dois recém-chegados tinham deixado Methos intrigado. Não que nunca tivesse visto um casal de Imortais, afinal ele próprio tivera amantes Imortais. O problema era que sentia-os poderosos, de uma forma diferente dos outros. Nunca fora muito bom em identificar as vibrações, como sabia que alguns Imortais conseguiam fazer, e por isso não entendia bem o que sentia com relação aos dois. Também não conseguia distinguir-lhes o sotaque com precisão, mesmo falando em grego, e isso dificultava descobrir suas origens. Talvez eles fossem muito velhos, talvez tivessem cortado cabeças às dúzias, o caso era que seus instintos diziam-lhe que seria melhor tê-los como amigos do que como inimigos. Eles terem sido alunos de Emrys indicava que provavelmente os dois eram do tipo pacífico, porém não era conveniente arriscar uma aposta sobre isso.

Só o fato de eles dizerem-se irmãos tornava-os ainda mais curiosos aos olhos de Methos que, de tão desconfiado, imaginara o absurdo de que Aka e Eksamat eram amantes. "Senão, que outra explicação teriam para morar juntos? Imortais não têem irmãos Imortais, eles não surgem em pencas numa mesma família!", calculava. Aka tinha-o impressionado por sua força, notava que ela não era uma mulher qualquer e, pela forma audaciosa com que ela se comportava e expressava suas opiniões, desconfiava que ela não era do tipo fácil de se lidar. "Selvagem!", pensou deliciado. Se não fosse pela presença de Eksamat, Methos até acreditaria que ela estava interessada em sua pessoa. Aliás, se não fosse a presença de Eksamat, Methos a teria cortejado abertamente. "Mas nada que alguns presentes discretos e insinuações não resolvam!", planejou Methos, disfarçando a excitação que a simples idéia de roubar a amante Imortal de outro Imortal lhe proporcionou, sem imaginar como estava longe de saber a verdade.

Por causa das reservas de parte a parte, os três conversaram praticamente a noite toda sem contudo chegarem a conhecer-se como gostariam. Methos comentou sobre sua amizade com Marconus e Gaicus, preferindo revelar mais sobre eles do que sobre si próprio. Aka e Eksamat estenderam-se longamente sobre os tempos na Grécia, e confirmaram o que Methos desconfiava - Emrys tinha sido o segundo mestre deles e provavelmente ainda estava vivo. Sobre o primeiro mestre eles simplesmente não diziam palavra, e Methos supôs que tivesse sido alguém de maus bofes.

Já era noite alta quando enfim Methos decidiu retirar-se, sempre repetindo aos irmãos que poderiam visitá-lo a qualquer hora. Assim que o viram longe, olhando a rua da porta do vestíbulo, Aka comentou:

- Ele mentiu, Eksamat! Ao mesmo tempo em que sinto que não precisamos temê-lo, percebo com tristeza que ele nos oculta mais do que revela! Percebi tantas mentiras nas palavras dele que por vezes tive vontade de gritar!

- Eu sei que ele mentiu, por isso agi da mesma forma! - Eksamat encostou-se à coluna de mármore, observando o vai e vem de carros e cavalos na rua - Mas não o desprezo por isso, afinal somos estranhos e ele deve estar com receio de se expôr. Ele tem tanto medo de nós quanto temos dele, com certeza. Inclusive creio até que ele foi corajoso, vindo aqui sozinho!

- É por isso que sinto que talvez ele mereça confiança! - Aka estava confusa - Um inimigo não se atreveria a tanto! Ele é curioso, até indiscreto, é verdade, mas não é nenhum novato inexperiente, que ousaria arriscar a cabeça para conseguir algumas respostas... Além disso, tenho certeza de que ele conhece Emrys! Tu viste como Methos ficava quieto demais quando falávamos dele?

- Será que os dois tiveram algum atrito no passado? - sugeriu Eksamat, franzindo a testa. Emrys nunca mencionava o nome de seus alunos ou adversários - E os tais Oroborus dos braceletes de Emrys eram realmente parecidos com o do broche de Methos, nesse ponto tua memória foi mais precisa do que a minha! Cheguei a contar a Emrys que nós também usamos um desenho similar, mas ele não deu importância, apenas afirmou que várias religiões e culturas já adotaram o Oroborus pelas razões mais diversas.

- Mas Methos não parece usá-los por razões sagradas!

- Não, parece mais que ele escolheu o Oroborus como um código... Talvez seja um símbolo dele para identificar os amigos!

- Acreditas mesmo nisso? - Aka sorriu - Então ele nos quer como amigos, pois deu-nos os pingentes! Ainda tens teu anel de ametista? Eu devo ter o meu entre minhas jóias, vou procurá-lo!

- Perdi o anel no tal naufrágio, esqueceste? Na época já nem valia a pena mandar fazer outro igual! - Eksamat olhou para a irmã com curiosidade - Percebo que tens algo em mente...

- Usarei o anel quando formos à casa de Methos na próxima terça-feira, quero ver a reação dele! - Aka deu um beijo no rosto do irmão e correu para dentro, gritando de longe - Não vás dormir tarde, amanhã quero sair para passear!

Eksamat observou-a desaparecer com as duas criadas de quarto, quase saltitante, e sorriu. Conhecia bem a irmã e agora tinha certeza de que ela estava interessada em Methos, assim como ele parecia atraído por ela. Eksamat tinha percebido como o visitante olhava para Aka com admiração velada, tentando ser respeitoso. Contudo, ainda era preciso ter cautela. Methos Remus era apenas o primeiro dos Imortais que conheciam em Roma, e não sabiam nada sobre os outros além do que ele dissera - e nem nisso podiam confiar plenamente.

Com um suspiro, Eksamat decidiu deixar as preocupações para o dia seguinte e ordenou a um dos criados para que arrumasse sua cama para dormir.

*************

Notas explicativas:

1 - O monte Palatino era uma região tradicionalmente habitada pelas famílias ricas de Roma.

2 - O Oroborus, também chamado de Ouroborus, Ourobolus ou Orobolus, é uma serpente engolindo ou vomitando a própria cauda. A figura é uma das mais antigas e universais da humanidade, e sempre manteve um significado único em todas as culturas em que esteve presente: o infinito, a imortalidade, a eternidade, o renascimento. Por conseguinte, era também associado à regeneração, às fases lunares, à vida após a morte e também à totalidade universal, com seus ciclos transformadores de destruição e reconstrução.

3 - Era costume, entre a casta nobre romana, chamada de patriciado, ter empregados e/ou escravos para tudo, até para limpar a boca dos patrões durante os jantares. Entre os mais abastados, viam-se criados para ajudar os patrões a vestir-se, para abaná-los, para carregar a seu lado algo de que eles pudessem precisar e, em certos casos, até para provar sua comida ou limpar o chão onde eles iriam pisar.

4 - Os escravos, que em grande parte eram trazidos de territórios conquistados pelos romanos, muitas vezes tinham sido homens cultos, artistas, médicos ou até nobres antes de serem capturados e vendidos. Em Roma, os escravos eram valorizados não só pela força de trabalho ou boa aparência, mas também por suas habilidades e sua instrução, sendo que vários tinham um nível de estudo superior ao dos próprios patrões e valiam fortunas em leilões - um escravo de meia-idade mas altamente qualificado podia valer bem mais do que um jovem forte e saudável que só serviria para serviços braçais. Muitos desses escravos cultos eram empregados como professores de filhos de nobres, e seus patrões recebiam pagamento pelo serviço prestado por eles a outras famílias, como uma espécie de aluguel. Investir na educação de escravos jovens também era um negócio lucrativo e alguns patrícios faziam fortuna só com isso.

5 - A sociedade romana acreditava que a riqueza de um homem media-se inclusive pela quantidade de escravos que ele possuísse. Quem não tivesse sequer um escravo era considerado absolutamente pobre e da mais baixa classe social, correndo até o risco de um dia tornar-se escravo também, por falta de condições de sustentar-se como homem livre. Assim, os nobres eram praticamente obrigados a ter sempre vários escravos, tanto em suas residências quanto em suas propriedades rurais, ou trabalhando em suas empresas.

6 - Em geral os escravos recebiam dos patrões o direito ao "pecúnio", que seria um tempo livre, em que poderiam trabalhar por conta própria e receber pagamento. Muitos romanos montavam empresas, oficinas ou escolas para seus escravos trabalharem, recebendo grande porcentagem do rendimento e deixando o resto como "pecúnio" dos escravos, até que eles comprassem sua liberdade. Libertando-se, o escravo estaria também desobrigando o patrão de cuidar de sua manutenção quando ficasse velho e inútil, além de fornecer meios para que o patrão comprasse outro escravo para ocupar a mesma função. Esses ex-escravos não raro continuavam a trabalhar por salário para os ex-patrões, como mestres dos mais jovens ou como gerentes das empresas. A escravatura em Roma, portanto, não significava apenas mão-de-obra barata, mas também um rentável investimento a longo prazo.
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