Nomes


Abtu, Alto Egito - 2991 a.C.

Os acontecimentos da véspera haviam sido tão incríveis que Epher mal dormiu à noite. Mahkret providenciou uma caminha improvisada para o menino em seu quarto e colocou o cesto da menininha ao lado da cama, para vigiá-los. Epher sentiu-a levantar-se várias vezes para verificar se as crianças dormiam em paz, e ele próprio levantou-se duas vezes, quando sentia Mahkret adormecida. Tudo ocorreu tão depressa e tão a contento que Epher temia que, caso adormecesse, acordaria para descobrir que tudo não passou de sonho.

Mas pela manhã as crianças ainda estavam lá, e Epher acordou com Mahkret cantando para as crianças, enquanto dava o peito à pequena. Sorrindo, o sacerdote juntou sua voz à da mulher e desceu as escadas (1) para encontrá-los na sala. Ao ouvi-lo, o menino deu um grito de alegria e correu a abraçar-lhe as pernas, um gesto de carinho que Epher jamais esqueceria. E sua doce Mahkret, como estava bela, como estava luminosa! Havia pintado os olhos e untado os cabelos com óleos perfumados, como ele gostava, sinal de que não estava mais de luto!

Uma das criadas logo assomou à sala com um jarro de água para que Epher pudesse barbear-se, mas o sacerdote mandou-a levar o jarro para cima. O dia começava feliz, podia deixar para lavar-se mais tarde (2).

- Mahkret, senhora de minha casa e de minha alma, tu não sabes como sinto-me feliz ao vê-la assim, tão formosa! Tens certeza de que dar o seio à menina não te cansa em demasia? Ainda deves repousar...

- Aquieta-te, Epher! - respondeu alegremente Mahkret - Pela primeira vez em minha vida sinto-me realmente saudável, pois há vida em mim, há leite em meus seios e posso amamentar nossa filha! Que mais posso desejar, meu esposo? Senta-se e come, nós já tomamos nosso desjejum!

- É sim, eu comi pão e tâmaras! - gritou o menino, puxando Epher para que se acomodasse em sua almofada junto à mesa do desjejum - Comi também bolo e mel! Mas deixei bastante para o senhor... Posso chamar-te de pai, Epher? Mahkret deixou-me chamá-la de mãe!

O sacerdote deixou-se acomodar e puxou o pequeno para seu colo, dando-lhe mais mel e frutas enquanto tentava desatar o nó que formava-se em sua garganta. Vendo o olhar brilhante e suplicante de Mahkret, Epher enfim conseguiu responder com o que sentia no coração, a voz trêmula:

- Tu deves sempre chamar-me de pai, pequeno! Nada me seria mais agradável do que ouvir-te pronunciar tais palavras!

- Pai Epher! - disse o menino, a boca cheia, com se saboreasse as palavras, que lhe eram mais doces que o mel e as uvas que mastigava - Meu pai! Meu pai Epher!

O orgulho com que ele repetia palavras tão simples fez com que Epher o abraçasse com força, o coração pequeno no peito. Como sonhou em ouvir aquilo! Mahkret disfarçou uma lágrima e aproveitou a criada que passava para dar algumas ordens, fingindo que não tomava parte na conversa do marido. Assim que a mulher afastou-se, Mahkret pediu ao sacerdote:

- Epher, separei peças de linho e jarros com cerveja e óleo para que leves ao templo em oferenda! Se puderes, pede logo um nome para nossos filhos e manda avisar-me da resposta dos oráculos! Quero escrever a meus parentes mortos contando as novidades e mandar cartas a meu tio em Nagadeh, mas para isso preciso dos nomes das crianças!

- Sim, doce de minha casa, irei assim que terminar de arrumar-me! Prometi a Diankós que também faria oferendas no templo em seu nome, como agradecimento por tantos favores... Podes pedir à criada que separe também algumas cerâmicas ricamente trabalhadas? Preciso também pagar ao oleiro, darei-lhe sandálias de couro, frutas e cerveja... (3)

- Pois assim será feito! - Mahkret depositou a menina, que adormecera em seu peito, de volta à cesta - Irei às tendas dos mercadores para comprar o que não tivermos em casa, e depois mando levar tudo ao templo. Trarei também vestes para os pequenos e encomendarei uma cama para o menino, creio que poderemos dispor de parte de nossos bens para isso!

- Avisa-me se precisares de algo! Podemos trocar papiro e um pouco do vinho estrangeiro que temos guardado, se for necessário...

- Não te preocupes, querido marido, teremos o suficiente! - como senhora da casa, Mahkret era ótima administradora e fazia com que os poucos bens de Epher rendessem o necessário. Jamais foi uma mulher de luxos, pois conhecia Epher desde muito antes de se casarem e sabia que ele não era um sacerdote rico - Agora apressa-te, pois vejo que o pequeno está a comer mais que tu!

Epher terminou o desjejum e subiu para banhar-se e barbear-se com a ajuda de uma das criadas. Logo estava vestido e pronto para ir ao templo. Ao despedir-se de Mahkret e das crianças com muitos beijos e bênçãos, ouviu que Diankós batia-lhe à porta.

- Vamos, Epher! Que o dia te seja venturoso hoje! - saudou Diankós, risonho - Quero ir contigo ao templo, pois não me atrevo a enfrentar a curiosidade de nossos colegas! Se tu soubesses o que já andam comentando pela cidade... Minha esposa quase esganou-me ontem ao chegar, de nada adiantaram teus presentes! O que ela queria mesmo era saber dos filhos de Epher!

- Pois avisa tua esposa - riu Mahkret, que estimava a jovem mulher de Diankós - que tão logo Epher mande-me os nomes de nossos filhos, escreverei ambos nos fios do nó sagrado Neith (4), para fazer-lhes amuletos! Em seguida, avisarei tua esposa para que venha conhecer nossos filhos e seja a primeira a conhecê-los por seus nomes!

- Pois então apressemo-nos, Epher! Se minha mulher ficar sabendo de tal promessa de Mahkret, será capaz de arrancar-me os olhos por atrasar tua partida! Vamos!

Os dois sacerdotes partiram alegres rumo ao templo e Epher aproveitou para contar ao amigo o milagre do leite de Mahkret.

- Pois então não restam dúvidas de que tudo foi tecido no céu, irmão! - exclamou Diankós - Se tua Mahkret foi até capaz de gerar leite em seu seio, mesmo com o filho morto há dias, então é porque Apet abençoou sua maternidade tardia! Alegra-te, Epher, que os deuses sorriem lindamente para ti!

- E o menino é um primor de carinho, Diankós! Uma jóia amorosa, chama-me de pai e a Mahkret de mãe! Imaginas tu que ontem, quando perguntei-lhe o que pensava a respeito de receber um nome indicado pelos oráculos, que ele respondeu que queria ser chamado apenas de "filho de Epher" e "filho de Mahkret"? Meu coração dói ao saber que tal preciosidade era desdenhada pelo oleiro...

- Talvez o oleiro não soubesse o que tinha em casa porque não possuía amor em seu coração, Epher! - ponderou Diankós - Nem todos somos abençoados com inteligência, e todos um dia seremos igualmente julgados diante de Osíris...

A conversa foi interrompida pelos sacerdotes, médicos e escribas do templo, que corriam ao encontro dos dois, sequiosos por saber detalhes sobre os novos filhos de Epher. As histórias mais absurdas já haviam se espalhado, e Epher teve que desmentir mais de uma vez que os cabelos de sua filha não eram mesmo de ouro, nem tinha ela nascido de um ovo de crocodilo, nem o menino era um demônio estrangeiro de olhos de fogo e capaz de fazer magias. Só depois de quase uma hora foi que Diankós conseguiu afastar Epher dos curiosos e levá-lo para o interior do templo, onde puderam refrescar-se e conversar em paz.

- Que bando de loucos! - resmungou Epher, o humor um tanto abalado - Parecem criadas em dia de caravana, assanhadas por novidades!

- Que queres, Epher? - riu Diankós - Milagres ocorreram ontem em tua casa e, como muitos milagres, estes caíram na boca do povo e foram crescendo como o capim semeado na lama! Deixe que falem, irmão! Uma hora a novidade será substituída por outra mais interessante, e terás tua paz de volta, eu garanto!

- Tens razão como sempre, Diankós! - consentiu Epher - Vamos, ainda preciso fazer minhas perguntas aos oráculos e realizar oferendas!

Epher purificou-se e ofereceu libações aos oráculos, pedindo-lhes o nome que os deuses enviavam para seus filhos. Mahkret já havia enviado tudo o que lhe foi pedido e, enquanto esperava a resposta à sua pergunta, Epher fez oferendas a todos os deuses e deusas nos altares. Depois sentou-se para escrever longas cartas aos parentes mortos elogiando a fidelidade de Diankós, seu irmão de alma, e agradecendo por terem intercedido em seu favor junto aos deuses, mandando-lhe seus maravilhosos filhos. Estava no meio de uma dessas cartas quando Mankherere, sacerdote administrador dos oráculos, veio interromper sua concentração.

- Que Seth (5) jamais lance um olhar cobiçoso por sobre tua cabeça, Epher! - saudou Mankherere, desmentindo as próprias palavras com o olhar. Epher nunca teve Mankherere em alta conta e desconfiava de sua retidão de caráter, mas preferia evitá-lo a enfrentá-lo - Trago-te as palavras dos oráculos, e gostaria de conversar contigo justamente sobre isso, se for do teu agrado.

Epher pôs seus apetrechos de escrita de lado com um sorriso duro. A curiosidade de Mankherere era venenosa e Epher sentia que havia sempre um toque de perfídia em suas frases, mas não podia desagradá-lo. Mankherere, além de ser um sacerdote dos oráculos, ocupava posição superior à sua no templo e corriam histórias a respeito de sua corrupção e das tramóias que armava contra aqueles que o contrariavam. Ninguém jamais provou nada, ou talvez nunca quiseram provar, como dizia Diankós. Todos tinham um certo medo de Mankherere e provavelmente atribuíam-lhe mais poder do que ele realmente tivesse, mas certamente não seria Epher quem iria testar essa possibilidade.

- Que Ísis (6) proteja-nos todos contra a perfídia de Seth, Mankherere! - respondeu finalmente Epher, colocando-se de pé diante do outro, como para intimidá-lo com sua altura - Estou à tua disposição, pergunta e responderei!

O olhar de Mankherere estava mais sombrio do que de costume, e Epher não pôde evitar um arrepio no estômago. Mankherere provavelmente notou, pois logo tratou de fingir-se amável e risonho.

- Pois eu queria apenas perguntar-te humildemente - iniciou Mankherere, novamente o olhar traindo as palavras - sobre o que indagaste aos oráculos, pois tenho em mãos uma resposta no mínimo intrigante...

- Não perguntei nada demais, Mankherere, e tu o deves saber, como alto sacerdote dos oráculos! - espetou Epher - Pedi apenas aos deuses que me enviassem os nomes pelos quais deverão ser chamadas as crianças que ontem levei para minha casa, e que adotei como meus filhos, como já deves ter ouvido comentar.

A ironia não passou desapercebida a Mankherere. Era óbvio que todos no templo, talvez até na cidade inteira, já sabiam dos filhos de Epher, mas não seria Mankherere quem iria dar-se por vencido.

- Sim, ouvi comentários de que adotaste duas crianças estrangeiras, um menino pequeno e uma menina de peito... - rodeou maldosamente Mankherere - E pelo que dizem são crianças muito especiais...

- São apenas crianças, como quaisquer outras! - Epher começava a impacientar-se - O menino deve ter cerca de cinco anos, a menina poucos dias. São perfeitas e saudáveis, com a bênção dos deuses! Algum problema, Mankherere?

- Não, é claro, e espero que estejas feliz! - Mankherere resolveu desistir do jogo - Talvez apenas devesses ter escolhido órfãos de nosso próprio povo, ao invés de estrangeiros... Mas então creio que as palavras dos oráculos devem conter algum engano, Epher, ou talvez o profeta Maneshtu tenha agido de má fé ao transcrevê-las...

Uma sombra de repente passou pelos olhos de Epher. A espera o angustiava, as palavras de Mankherere começavam a atingi-lo. Maneshtu era o profeta-mor de Khentymentyou, o mais importante escriba sacerdote, pois era quem recebia as mensagens dos oráculos, e também o sacerdote mais antigo do templo. Mankherere poderia ser o administrador dos oráculos, mas Maneshtu era sem dúvida mais importante, seu cargo era independente e ficava em posição inferior apenas ao sacerdote-mor, administrador-geral do templo de Khentymentyou.

- Não compreendo o que dizes, Mankherere, mas se me permitires ler as respostas dos oráculos, certamente tudo me faria mais sentido!

Mankherere ainda segurou o papiro por algum tempo em silêncio, saboreando o suspense, antes de finalmente estregá-lo. A sofreguidão com que Epher desenrolou o papiro causou-lhe um sorriso maldoso e involuntário de satisfação, que Mankherere logo tratou de disfarçar. Epher correu os olhos pelo papiro duas vezes, antes de voltar a encarar o outro, uma cintilação de fúria no olhar.

- Continuo não compreendendo nada disso! De que se tratam estas palavras, Mankherere? Alguma brincadeira de mau gosto de tua parte?

- É isto mesmo o que desejo saber de tua boca, Epher! - tripudiou Mankherere - Gostaria que tu mesmo explicasses do que se tratam tais palavras!

- Mankherere, neste papiro - Epher quase esfregou o rolo na cara do outro - estão os nomes de dois deuses, no mínimo de dois reis! Como podem ser os nomes de meus filhos? De que se trata tudo isso?

Diankós entrava neste instante na sala em que os dois sacerdotes discutiam e tentou voltar atrás, mas ambos notaram sua presença antes que pudesse fingir que não os havia escutado.

- Diankós! - gritou-lhe Epher - Diankós, irmão, ajuda-me! Vê este papiro que Mankherere acaba de trazer-me, e dize se tais palavras fazem algum sentido para ti!

Epher não tirava os olhos de Mankherere e praticamente jogou o rolo nos braços de Diankós quando este aproximou-se. Percebendo a tensão explosiva entre os dois sacerdotes, Diankós temeu pelo pior e desenrolou apressadamente o papiro, lendo em voz alta:

- "Que os céus saúdem os filhos de Epher de Abtu, sacerdote de Khentymentyou! Heka Ma'At, o filho de Bast, e Akh Kheper-Apet, a filha da Íbis Divina do Qunfidhah, serão temidos pelas milhares de gerações vindouras! Heka Ma'At, a Magia da Consciência Cósmica, e Akh Kheper-Apet, a Luz Divina que Transforma a Criação, contam-se agora entre os Príncipes Eternos (7)! O nome de Epher de Abtu viverá assim através da boca dos que saírem de sua casa!"

Diankós olhou estupefato para os dois sacerdotes.

- Que enigma é este, Epher?

- Pergunta a Mankherere, irmão! - respondeu Epher secamente, o suor porejando sobre seus lábios e suas têmporas - Aliás, dize-me tu, pois que Mankherere fez-me a mesma pergunta e nada sei que responder-lhe!

Mankherere ia protestar, mas Diankós falou primeiro.

- Aqui diz que os nomes dos filhos de Epher são Heka Ma'At e Akh Kheper Apet! Mas são nomes de divindades, Mankherere! São nomes de príncipes, estão traçados dentro de cartuchos (8), vê! Isso indica que são nomes reais, e tal coisa não pode ser!

Mankherere afastou o papiro que Diankós lhe empurrava com a mão. Sabia o conteúdo de cor e inclusive ralhou com Maneshtu, que os transcreveu, mas o sacerdote insistiu que foi assim mesmo que os nomes lhe foram mostrados pelos deuses. Se tal fosse verdade, Epher possivelmente tinha um casal de futuros reis em seu poder, e Mankherere percebia a ameaça que isso significava.

- Nada tenho com isso, Diankós! - tentou ponderar Mankherere, a falsidade em pessoa - Trago o papiro como me foi entregue pelo profeta Maneshtu, e ele insiste em que as palavras são verdadeiras! Perguntei a Epher se ele porventura compreendia tal mistério, mas nosso irmão exalta-se, Diankós! Que posso eu fazer?

Epher tomou o papiro das mãos de Diankós e saiu correndo em direção às salas dos oráculos. Ia confirmar a história pessoalmente. Diankós correu-lhe ao encalço, acompanhando-o em silêncio e deixando Mankherere para trás sem ao menos despedir-se. Epher entrou como uma fúria nos ricos salões dos oráculos, brandindo o papiro como se fosse uma arma, pronto a atirá-lo na cabeça do primeiro infeliz que cruzasse seu caminho. Ao alcançar o escriba divino, o idoso Maneshtu, Epher agarrou-o sem cerimônia pelo cotovelo e puxou-o a um canto. Maneshtu ia protestar, mas calou-se ao ver o negror nos olhos de Epher, e logo compreendeu do que se tratava.

- Irmão Maneshtu, pelo amor de Ísis, explica-me do que se tratam as palavras que me enviaste por Mankherere! - sussurrou Epher entre dentes - Explica-me ou enlouqueço!

- Acalma-te, Epher, antes de mais nada! - Maneshtu conhecia Epher desde menino e foi um de seus mestres, mas raramente o vira tão nervoso - Imagino o que te traz aqui, e digo-te que em verdade já te esperava. Mankherere criou-me um caso enorme ao ler as palavras dos oráculos, mas eu te asseguro, elas estão certas e são a expressão de Ma'At, a Grande Verdade (9)! Fui eu mesmo quem as recebi, e juro-te que em nada alterei o que me foi soprado pelos deuses, Epher! Que o monstruoso Amêntis (10) devore meu coração no dia de meu julgamento diante de Osíris se eu minto agora a ti, irmão! Logo a ti, que és como um filho para mim, e tu bem o sabes!

Epher fez um esforço supremo para controlar-se. Maneshtu havia-lhe sido mais que um pai desde que o conheceu no templo, ensinando-o com paciência infinita os mistérios das letras, explicando-lhe os segredos das fórmulas e poções sagradas, consolando-o quando seu fardo lhe parecia demasiado pesado e alegrando-se com cada pequena alegria do pupilo. Epher devia quase tudo o que sabia a Maneshtu, não havia por que duvidar do santo sacerdote.

- Perdoa-me, pai Maneshtu! - pediu Epher, a voz ainda tremendo - Que Khentymentyou perdoe-me por ofender a meu pai em sua sagrada morada! Imaginei que tudo não passasse de uma zombaria maldosa de Mankherere, e agora nem sei mais o que pensar! Ilumina-me, pai, pois estou confuso!

Maneshtu passou um braço pela cintura de Epher e encostou a cabeça enrugada no ombro do discípulo, tranquilizando-o. Epher abraçou o idoso sacerdote e Maneshtu então falou, os anos pesando-lhe na alma:

- Epher, ouve-me com a alma e o coração, pois tua provação está apenas começando... Há tempos tenho visto meu filho sofrer, e sei o quanto desejaste que tua Mahkret pudesse dar-te filhos. Mas tal não era a vontade dos deuses, pois eles são mais sábios do que nós em sua eternidade! Eles te escolheram, meu filho, para uma missão muito maior! Eu já sabia de teu destino pelos oráculos, Epher, mas não cabia a mim contar-te. Os deuses te enviam agora um pesado fardo, e precisarás ser forte para suportá-lo!

Epher afastou-se e olhou Maneshtu profundamente nos olhos, sentindo a gravidade do assunto. Diankós achou que era hora de deixá-los, mas Maneshtu fez-lhe um gesto para que ficasse e ouvisse também, depois recomeçou:

- Meus filhos, não tenho mais muito tempo entre os vivos, por isso preciso agora contar tudo o que ouvi dos deuses, ou meus esforços terão sido em vão. Fica, Diankós, pois sei o quanto amas teu irmão Epher e muito tenho ouvido, para minha imensa satisfação, da grande amizade entre ambos! Ontem os deuses enviaram a Epher duas crianças muito especiais, que trazem dentro de si a semente de grandes poderes e grandes realizações! Eles terão um futuro cheio de maravilhas pela frente, mas também um futuro assombrado por terríveis fantasmas... - Epher tentou interromper e Maneshtu fez-lhe sinal para que se calasse - Nada poderemos fazer contra o destino que está traçado a estas pobres criaturas, meus filhos, nem está em nós compreender os mistérios que as cercam. Porém sei que muito terá que ser feito para protegê-las, e nisso teremos que empregar todas as nossas forças e nossas orações! Muitos invejarão os filhos de Epher e por muitos motivos o farão, e a inveja é a semente de onde germina o crime! Muitas coisas más serão tentadas contra estas crianças antes que possam desabrochar em seu pleno potencial, e é preciso vigiar contra a serpente que espreita na escuridão! Espíritos maus e corruptos tentarão levá-las à perdição para que as profecias não se cumpram, mas confio nos deuses em que haveremos de vencer! Estás ouvindo, meu bom Epher?

- Sim, meu pai... - Epher sentia o gelo da morte na alma - Ouço-te e sofro a cada palavra que sai de tua boca, apesar de não compreendê-las como seria de teu agrado!

Soltando um profundo suspiro, Maneshtu continuou:

- As crianças que chegaram ontem à tua casa, meu filho, são frutos divinos que deverás cuidar com carinho, para que amadureçam fortes e com a alma reta! Elas possuem dons que estão além de nossa compreensão, e tudo o que é misterioso causa medo e ódio no coração do homem fraco. Justamente por teres sido escolhido, Epher, muitos inimigos se erguerão em teu caminho, pedindo tua perdição e a de teus filhos. Ensina aos pequenos tudo o que sabes e manda-os aos melhores mestres, para que cresçam inteligentes e sábios. Não poupas teus bens com eles, pois o que estas crianças guardam na alma é uma riqueza maior do que podes imaginar. E cuida para que eles saibam discernir o certo do errado, que sejam justos e honestos, que aprendam as virtudes da humildade e da caridade. Um dia chegará em que tu não poderá mais defendê-los, e eles precisarão de tudo o que tu lhes ensinar para continuarem seu caminho... E ouve, Epher, com atenção. Logo minha alma deverá ser julgada nos reinos do além, eu o sinto, e por isso já nomeei-te meu sucessor como profeta dos oráculos de Khentymentyou...

Epher soltou um gemido. Jamais sonharia com tal honra! Diankós abraçou-o em silêncio, não cabendo em si de orgulho e felicidade. Maneshtu sorriu ao ver a lealdade sincera de Diankós, e recomeçou mais uma vez:

- Sim, Epher, há muito tempo escolhi teu nome para suceder-me, mas era preciso esperar a hora certa, e a hora chegou. Precisarás estar em uma posição forte para enfretar teus inimigos, e estou em condição de oferecer-te isso ao nomear-te para meu cargo. Já escrevi ao rei avisando de minha intenção de afastar-me do templo, afinal há muito passei da idade de trabalhar e mereço meu descanso. Na carta mencionei teu nome como o mais indicado a suceder-me. Consegui anexar também cartas de outros sacerdotes que ainda me são fiéis, atestando tua capacidade, para que não haja dúvidas quanto a teu merecimento. Certamente o rei aceitará minha indicação, pois pedi tua nomeação como um prêmio por meus serviços, e logo receberemos a resposta favorável de nosso soberano. Assim, poderás dispor de melhor remuneração e maiores privilégios, Epher, que te serão muito úteis no futuro!

Sem palavras para expressar sua gratidão, ainda mais depois de tudo o que ouviu, Epher abraçou Maneshtu com força e pôs-se a chorar no ombro do ancião. Diankós abraçou a ambos, deslumbrado ao ver como Epher era amado e abençoado, apesar de tudo. Com certeza as despesas da casa de Epher aumentariam com a chegada de duas crianças de uma só vez, e esta era uma coisa sobre a qual ainda não haviam pensando, no furor com que os últimos fatos haviam se desenrolado. A indicação para o cargo de profeta vinha portanto em hora mais do que propícia, e Epher há muito que já merecia ter sido promovido por seus serviços no templo.

Maneshtu desembaraçou-se dos dois e pediu segredo absoluto sobre tudo o que havia dito.

- Enquanto a resposta afirmativa de nosso soberano não chegar e não tornar-se pública, portanto irrevogável, devemos precaver-nos contra fofocas e mal-entendidos. Muitos podem tentar impedir Epher de subir a meu cargo. Enquanto isso, Epher, dá a teus filhos os nomes que os deuses te enviam, e faze oferendas em nome deles no templo para agradecer aos céus. Se acaso te questionarem a respeito do nome de teus filhos, mostra-te humilde e seguro, pois apenas obedeces ao que os deuses te ordenam. Vai, filho, que ainda tens muito o que fazer, e eu tenho alguns problemas menores a resolver! Vai com Epher, Diankós, e reza por todos nós!

Após cobrir o santo profeta com beijos e agradecimentos, os dois sacerdotes mais jovens afastaram-se abraçados, e Maneshtu ficou ainda um tempo a olhá-los, o pensamento perdido nas dobras do futuro. Somente depois que os ecos dos passos de Epher e Diankós perderam-se pelos corredores do templo foi que Maneshtu, com um profundo suspiro, dirigiu-se ao altar dos oráculos para rezar, preparando-se para os próximos acontecimentos.

*************

Notas explicativas:

1 - As casas egípcias eram normalmente construídas com tijolos e argamassa, e as famílias mais abastadas por vezes tinham casas com vários andares.

2 - Os egípcios antigos possuíam rigorosos hábitos de higiene, chegando a tomar vários banhos por dia. Os homens nunca usavam barba - o máximo permitido era usar bigode, e em geral faziam a barba diariamente.

3 - Durante muitos séculos o Egito não possuiu uma forma circulante de moeda e os pagamentos normalmente eram feitos em mercadorias ou serviços, numa espécie de troca.

4 - Neith era a divindade do tecido e da inteligência - a trama do tecido era uma representação do raciocínio, a descoberta de que as coisas básicas, combinadas e trabalhadas pelo homem, podem levar a outras mais complexas. Seu símbolo era o "nó egípcio", uma corda trançada em forma de nó, representando o fio infinito da eternidade. O Neith foi depois incorporado ao alfabeto grego na forma da letra ômega maiúscula, a última do alfabeto, simbolizando que o fim também significa o recomeço. A tradição egípcia mandava que todo ser humano escrevesse seu nome num dos fios do nó de Neith, para garantir a imortalidade da alma, e muitos usavam o nó egípcio como amuleto, em jóias ou em objetos decorativos.

5 - Seth era uma das principais divindades egípcias. Segundo a mitologia, era o irmão invejoso do deus Osíris que tentou tomar o poder celeste.

6 - Outra importante divindade, Ísis era a fiel esposa de Osíris que combateu ferozmente o cunhado Seth, impedindo-o de usurpar o poder celeste. Era considerada piedosa, corajosa e protetora das famílias.

7 - A tradução para o nome Heka Ma'At seria realmente "Magia da Consciência Cósmica", e Akh Kheper-Apet seria "Luz Divina que Transforma a Criação". São nomes que indicariam espíritos divinos e só poderiam ser dados a nobres da família real.

8 - Em geral os nomes de pessoas da nobreza ou que ocupassem cargos muito elevados eram escritos dentro de figuras ovaladas ou retangulares denominadas cartuchos, para diferenciá-los dos nomes de pessoas comuns e ficarem destacados nos textos. A forma mais comum de cartucho é a oval, circundada pelo nó de Neith.

9 - Ma'At, também conhecida como Maêt, era a deusa da Verdade e da Justiça. Seu símbolo era uma pena de avestruz e, no dia do julgamento divino no além, o coração e a vida do morto seriam postos numa balança - caso pesassem mais do que a pena de Ma'At, a alma do morto era condenada, pois "a verdade é leve no coração do homem, mas a maldade lhe pesa na alma".

10 - Amêntis era um deus, misto de cachorro com boca de crocodilo, que comparecia ao julgamento da alma dos mortos para devorar o coração, pesado de culpas, dos condenados.
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