Olhares do Passado


1995 - Seacouver, Washington - EUA (1)

Duncan fitou os grandes caixotes de madeira amontoados e mais uma vez quase mudou de idéia. Com um cutucão gentil, Amanda o forçou a dar mais alguns passos para dentro do depósito. Sob uma grossa camada de poeira, naqueles caixotes, estava guardada uma parte dos pertences que MacLeod havia acumulado durante sua longa vida. Os mais recentes eram dos anos que ele vivera como negociante de antiguidades, ali mesmo em Seacouver.

- Amanda, não sei se é uma boa idéia... - largando no chão um engradado com sacos de lixo e materiais de limpeza, Duncan abriu os braços, desolado - Está mais sujo do que pensei, talvez seja melhor mandar alguém limpar tudo para nós!

- Mac, eu entendo como é difícil, você sabe quantas vezes eu mesma passei por isso? - Amanda avançou para o meio do depósito e virou-se para olhá-lo - Faz parte da nossa natureza ter que recomeçar de tempos em tempos, e isso aqui é um pedaço da sua história. Você não pode jogar tudo fora, seria um desperdício, mas também não pode guardar tudo para sempre!

Encarando-a com tristeza, Duncan de repente percebeu como a cena era surreal. Com os cabelos protegidos por um lenço francês de seda, Amanda trajava um avental de cozinha sobre velhas roupas de ginástica, trazendo um martelo e um par de luvas de borracha numa mão e uma vassoura na outra. Ele pedira na véspera que ela o ajudasse na limpeza de seu depósito, pois queria doar algumas daquelas coisas para bazares de caridade e ao mesmo tempo abrir espaço para mais tralhas que andara acumulando. Ele sempre fizera aquilo sozinho ou com a ajuda de Connor, mas desta vez Amanda estava por perto, os dois andavam muito unidos nos últimos dias, e ele a convidara num impulso sentimental.

MacLeod poderia ter chamado Joe Dawson, mas ele parecia estar tão ocupado... E Duncan reconhecia que não se sentiria tão à vontade sabendo que Joe era seu Sentinela e talvez encarasse aquilo como uma oportunidade de fazer pesquisa. Amanda não perderia a chance de revirar suas coisas, isso MacLeod sabia, mas quando fez o convite ele não imaginava que ela encarnaria realmente a faxineira. Seu coração apertou-se diante da boa vontade dela.

- O problema é que aqui estão objetos que... - Duncan aproximou-se lentamente de um dos caixotes mais novos, que ele próprio havia colocado lá, há poucos anos - Vai ser doloroso revirar isso tudo, e você vai ter que ter paciência comigo! Talvez eu não consiga fazer muita coisa hoje...

- Então vamos combinar o seguinte, nós começamos por esse caixote aí! - Amanda avançou com o martelo, resoluta - Quando você achar que está ficando difícil demais, nós paramos e damos um tempo, certo?

Duncan ia tentar detê-la, mas o carinho no olhar dela o fez recuar. Amanda tinha percebido que era justamente aquele caixote que ele mais temia abrir, então era por ali que deveriam começar. MacLeod reconhecia que ela tinha razão. Connor sempre dizia que, depois que ultrapassavam a barreira das feridas recentes, todo o resto era mais fácil. Sorte que Amanda estava ali para não deixá-lo desistir. Tomando o martelo da mão dela, Duncan terminou de despregar pessoalmente as tábuas da tampa do caixote.

- Bom, vejamos o que temos aqui... Caixas menores, e com etiquetas! Como você é ordeiro, que lindo! - Amanda gracejou para aliviar a tensão, lendo o que estava escrito no topo das caixas de papelão - "Livros de arte"... "Fitas K7 e VHS"... "Livros da contabilidade"... "Notas fiscais e guias de importação"...

- São coisas que guardei do estúdio, quando resolvi me mudar! - explicou Duncan com uma careta, retirando as caixas e colocando-as no chão conforme ela recitava o conteúdo - Richie me ajudou a empacotar tudo antes de vender o prédio, sorte que muita coisa foi doada já naquela época!

Fingindo não prestar tanta atenção no que ele dizia nem no que estava escrito nas etiquetas, para não parecer que estava ali apenas para xeretar intimidades, Amanda pegou o canivete que ele lhe ofereceu e cortou as largas faixas de fita adesiva marrom que lacravam as caixas, revelando o conteúdo de cada uma.

Analisando as lombadas dos livros de arte sem retirá-los do lugar, Amanda percebeu que alguns eram catálogos caros e antigos, enquanto outros eram livretos de coleções de museus do mundo todo, do tipo que os turistas compram para guardar como lembrança. Ela sabia a quem eles tinham pertencido, e por que MacLeod os guardou. Eram os livros de Tessa Nöel, a talentosa artista plástica francesa com quem ele iria se casar, mas que morreu baleada durante um assalto, instantes depois de Duncan ter arriscado o pescoço para libertá-la de um sequestro.

Ao invés de ciúme, Amanda sentiu um pesar enorme diante da crueldade do destino. Ela e Tessa tinham se conhecido em Paris, e foi impossível evitar a antipatia instintiva que sempre surge entre mulheres atraídas pelo mesmo homem. As duas estranharam-se, trocaram farpas, mas Amanda admitia que Tessa era uma mulher linda, elegante, inteligente, de caráter firme e cheia de energia - uma rival à altura. Uma coisa que Amanda aprendeu em seus longos séculos de vida foi a reconhecer um amor verdadeiro. E Tessa fazia Duncan tão feliz!

Sacudindo a cabeça para afastar os pensamentos tristes, Amanda percebeu que MacLeod estava sentado com as pernas cruzadas, revirando com curiosidade um punhado de fotos de um envelope que estava largado em outra caixa. Às vezes ele sorria, às vezes franzia as sobrancelhas, mas de repente soltou uma exclamação e afastou ligeiramente uma das fotos, fitando a imagem com agonia. Levando a outra mão aos lábios, Duncan não conseguiu evitar que seus olhos logo transbordassem de lágrimas.

Num salto Amanda estava agarrada a ele, tentando ver o que o deixara tão abalado. Sorrindo de frente no retrato, com as cabeças tocando-se amorosamente, Duncan e Tessa estendiam suas taças de champanhe para brindar à felicidade de quem os olhasse. Era uma cena encantadora, pois os dois eram lindos e formavam um par perfeito, parecendo um casal de modelos numa revista, celebrando uma vida inteira de glórias pela frente. Engolindo o nó na garganta, Amanda apertou os ombros do amigo num abraço, sentindo o esforço que ele fazia para se controlar.

- Eu não lembrava disso, nem sabia que essa foto existia! - murmurou Duncan entre soluços, tentando em vão enxugar o rosto - Foi Richie quem tirou, no dia em que eu e Tess o convidamos para ser nosso padrinho de casamento! Era a última foto do rolo de filme e ele estava ansioso para mandar revelar, mas aí levaram Tess... Acho que nem ele viu isso, com tudo aquilo que aconteceu logo depois!

No mesmo assalto em que Tessa foi assassinada, Richie também tinha sido baleado à queima-roupa. Ao contrário dela, porém, ele voltara à vida como Imortal. Para ocultar esse fato da polícia, Richie mentiu dizendo que não estava presente na hora do crime, e o caso foi arquivado por falta de testemunhas, permitindo que o assassino escapasse impune. Incapaz de continuar vivendo no prédio onde antes ele e Tessa moravam e mantinham o atelier dela e a loja de antiguidades dele, Duncan mudou-se para um loft na cobertura do edifício onde ficava sua nova academia de ginástica, e Richie foi morar sozinho, num pequeno apartamento no mesmo bairro. Tempos depois Richie encontrou o assassino de Tessa, mas acabou perdoando-o. Não era fácil conviver com a Imortalidade e suas consequências, e mesmo após mais de mil anos a própria Amanda sentia que ainda tinha algo a aprender.

Guardando enfim a foto de volta no envelope, Duncan virou-se para abraçar Amanda até que sua respiração se acalmasse. Quando sentiu-se forte o bastante para continuar, ele afastou-se e olhou-a nos olhos com imenso amor.

- Obrigado por estar aqui comigo hoje! - disse ele, acariciando o rosto dela com ternura - Você sabe que não é apenas uma amante confiável e divertida para mim, Amanda. Sua amizade é um porto seguro que significa mais do que eu jamais poderei explicar... Tessa foi um raio de luz que iluminou intensamente alguns anos maravilhosos da minha longa existência, para então se apagar num instante, enquanto você é aquela luz eterna, indo e vindo quando bem entende, mas reconfortante, como um farol piscando no mar escuro. Você é quem me faz ter certeza de que vale a pena continuar lutando através dos séculos!

- Ah, Mac, que lindo! Eu também não saberia viver sem você, seu bobo! - Amanda afastou com as mãos as lágrimas que brilhavam em seus olhos, mas logo outras surgiram - Tessa era uma mulher maravilhosa, perfeita para você, e eu me arrependo de não ter convivido mais com ela... Eu não sinto mais ciúmes, e acho que no fim teríamos sido boas amigas, sabe?

- Eu sei, e adoro você também por isso! - Duncan suspirou - Acho que nunca vou me conformar com as regras malditas do nosso Jogo, mas ao mesmo tempo agradeço minha Imortalidade por ter conhecido você e Tessa, entre tantas outras coisas. Por isso eu preciso tanto que você mantenha essa cabecinha linda e avoada em cima do pescoço! Eu não suportaria perder você também...

Sem saber o que dizer, Amanda abraçou Duncan com força, sentindo as lágrimas dele quentes em seu pescoço, assim como as dela molhavam o ombro da camisa dele. Após um longo momento ouvindo seus próprios corações pulsando, ambos se afastaram e trocaram um olhar intenso, cheio de carinho e compreensão. Os dois então se ergueram de mãos dadas e, com um suspiro resignado, voltaram ao trabalho, seguros de que partes de uma história podem até ser escondidas em caixas poeirentas, mas a emoção que tudo aquilo significa permanece gravada na memória de cada um, enquanto viverem.

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Nota explicativa:

1 - Esta fanfiction encaixa-se entre os episódios "Reunion" e "The Colonel", de "Highlander: The Series".

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São Paulo, 30 de Setembro de 2004


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