Premonição


Roma - Península Itálica - 148 a 139 a.C.

Nos meses que se seguiram, a convivência de Emrys com os alunos foi sempre alegre e agradável. Methos confiava realmente no Imortal mais velho e oferecia-lhe uma vida mais do que confortável como seu hóspede, dando-lhe liberdade de entrar e sair quando bem entendesse e, a não ser por um ou outro ciúme momentâneo, não implicava quando os outros Imortais vinham visitá-lo, então tudo estava bem para Emrys.

Por causa de seu amor pelos textos, o velho Imortal logo fez amizade com alguns patrícios importantes, de famílias antigas e donos de respeitáveis coleções de arte e literatura. Eram pessoas que na maioria haviam encomendado cópias de Alexandria, portanto Emrys já tinha ouvido falar superficialmente sobre alguns deles, quando trabalhava na grande biblioteca, e sabia inclusive o que eles poderiam ter nas estantes. Com seu jeito afável e sempre solícito, foi fácil para o ex-bibliotecário cair nas boas graças destes senhores, que adoraram a perspectiva de ter com quem conversar sobre suas raridades. Methos ficara ressabiado no início, alertando o mestre sobre o perigo de andar em companhia de gente que não via a hora de arranjar um bom casamento para os parentes ou meter os amigos em altos cargos políticos - Methos preferia patrícios de ambientes menos tradicionais, que poderiam ser manobrados, subornados ou mesmo ludibriados em caso de necessidade, mas Emrys sabia o que estava fazendo e foi em frente com seus novos contatos. No fim Methos entendeu e até achou bom, pois esses homens, atiçados pelo filósofo Aristeu, resolveram ampliar suas coleções de manuscritos, e seus negócios como importador de textos engrenaram de vez.

Porém o maior desafio para Emrys foi aproximar-se de Peter Gaicus, pois o rapaz em geral apenas rodeava-o à distância e era o mestre quem tinha que tomar a iniciativa de chamá-lo para um passeio ou sentar-se ao lado dele para puxar assunto. Nas primeiras semanas ambos conversaram sobre amenidades, até que a simpatia do velho Imortal enfim venceu a timidez de Gaicus e os dois puderam entrar em diálogos mais profundos. E Gaicus, que nunca tivera muito interesse em relação ao passado dos outros Imortais com quem vivia, transformou-se aos poucos num buraco sem fundo de curiosidade e dúvida, crivando Emrys de perguntas por vezes desconcertantes.

- Quando ainda eras feiticeiro, tu não te imaginavas quase um deus? A impossibilidade de ter filhos nunca te incomodou? Não temes esquecer algo de teu passado? Como aprendeste a ler e escrever? É verdade que antigamente os Imortais usavam machados de pedra para matar-se uns aos outros? Alguma vez pensaste que isso tudo era um sonho? Quem descobriu que não podemos lutar em Solo Sagrado?

A capacidade dele em encontrar novas questões e abordá-las por ângulos diferentes a cada dia deixou Emrys deliciado. Nem todos os seus discípulos tinham coragem de mostrar-se abertamente curiosos, preferindo esperar que ele lhes ensinasse tudo com o tempo, porém Gaicus, depois que começou a perguntar, não sabia mais parar.

- Mas o que deu nesse garoto para grudar em ti assim? - resmungou Methos num dia em que Emrys não aceitou acompanhá-lo ao forum porque já combinara de passar a manhã com Gaicus - O malandro nunca aguentou uma conversa decente comigo sem bocejar, com que então agora inventou de aprender até filosofia contigo?

- Não sejas ranzinza! - sorriu Emrys, pacientemente - Tu também ficaste impressionado comigo quando nos conhecemos...

- Nem tanto! - Methos fingiu-se de indiferente - Eu não era nenhum bobo naquela época!

- Eu sei, por isso sempre andei com minha espada bem segura comigo! Pensas que nunca percebi que reviravas minha tenda assim que eu dava as costas, mesmo quando ainda mal te aguentavas em pé? - Emrys gargalhou vendo a cara de Methos ao ser desmascarado após milênios - E depois, quantas vezes encontrei minhas coisas fora do lugar quando voltei para casa? Eu é que não era nenhum bobo naquela época!

- Eu não ia matar-te, eu só queria... Só pensei em... Em... Oras!

- Em roubar-me e fugir, não? - Emrys suspirou - Eu entendo, meu filho, eu era um Imortal estranho, poderoso, e na época estavas desarmado, dependendo de mim. Sei que tinhas medo, que outros tentaram fazer-te mal no passado... E mesmo tendo salvo tua vida, ninguém garantia que eu não tinha más intenções.

- Sinto muita vergonha de minha ingratidão naqueles dias! - Methos fitou Emrys nos olhos - Será que há algo neste mundo que nunca tenhas sabido ou adivinhado?

- Talvez! - Emrys piscou maliciosamente - Por que não tentas descobrir, como Gaicus?

- Certo, venceste outra vez! - Methos sorriu - Hoje ficas com ele, mas amanhã vais comigo ao circo!

- Eu detesto violência, tu sabes disso! - Emrys franziu a testa e encarou-o com tristeza - Como ainda podes assistir essas lutas desnecessárias, aceitar que um bando de gente se mate à toa para divertir uma multidão insana?

- Mas não iremos ver os gladiad...

Methos calou-se e corou ao perceber a sutil indireta. Não era a primeira vez, desde sua chegada, que Emrys referia-se enviesadamente aos vários séculos durante os quais Methos dedicara-se a ser uma das mais temíveis criaturas que já assolaram o mundo. Foram séculos de mortandade, pilhagem, estupros, destruição, crueldade e covardia. Aldeias e até vilas inteiras haviam sido completamente aniquiladas por Methos e seus companheiros Imortais, criaturas de almas tão negras quanto a do pior demônio que a humanidade pudesse imaginar. Nem Methos sabia ao certo por que havia se transformado naquele monstro. Talvez fosse a pressão do grupo que o empurrara para o crime desenfreado, talvez fosse o ódio pessoal que devotava a um mundo que lhe negava amor e compreensão, ou até uma sádica perversão mesmo... O caso era que gostara daquilo e permanecera tempos demais naquela vida para ousar arrepender-se ou procurar justificativas para seu passado. Mesmo se pedisse perdão aos berros em praça pública, por todos os dias de sua vida até a eternidade, isso não traria de volta o que havia sido destruído por suas mãos, não ressuscitaria os mortos nem confortaria sua própria consciência. Methos sabia que teria que conviver para sempre com esse terrível peso na alma, e sequer acreditava poder dividi-lo com mais alguém - nem com Emrys, a única criatura no mundo a quem amava sem restrições, e a quem devia a própria vida. Agora via que com certeza Emrys sabia de tudo, sempre soubera, e percebeu que o mestre, apesar disso, o perdoava. Por um instante Methos não soube lidar com as avassaladoras emoções que isso lhe provocou, e seus olhos encheram-se de lágrimas.

- Ah, meu filho, eu orei tanto para que um dia pudéssemos conversar sobre isso, mas desde que cheguei tens evitado o assunto! - Emrys puxou Methos para seus braços e deixou que ele desabafasse, alisando-lhe os cabelos como teria feito a uma criança - Ouvi falar coisas terríveis de ti e várias vezes tentei seguir teu rastro, mas sempre me escapaste, metido em novas desgraças! Sofri muito, porque temia que os deuses resolvessem te castigar!

- Eles castigaram, eles me deram uma consciência que não me deixa em paz! - pela primeira vez em muito tempo Methos permitia-se chorar sem pudores diante de outra pessoa - Cometi tantas atrocidades que nem eu suporto pensar nelas e hoje minha vida é só remorsos!

- Não precisas dizer-me o que fizeste, eu sempre soube qual seria o teu destino! - Emrys suspirou profundamente - No dia em que te vi partir, eu senti que terias que caminhar à beira dos abismos antes de voltar ao caminho seguro... Não foste o primeiro e nem serás o último a passar por isso!

- Por que salvaste-me a vida naquele deserto? - Methos limpou o rosto com as mãos - Eu sobrevivi para tornar-me um demônio tão medonho que ainda hoje tenho pesadelos com o que fiz! O pior é que eu gostava daquilo, Emrys, eu GOSTAVA!

- Eu sei, meu filho, eu entendo até bem demais o que sentes!

- COMO podes entender? - Methos afastou-se bruscamente - Nem EU me entendo! Tu sempre foste um sacerdote, o eterno pai piedoso! Tu nunca...

- Ora, Methos, além de sacerdote eu também sou humano! Já fiz besteiras também, quando era mais novo! - vendo que Methos ia retrucar, Emrys assumiu um tom severo, quase agressivo - Pensas acaso que nunca me meti em guerras nojentas junto com meu povo, porque acreditavam que era eu quem trazia nas minhas armas os feitiços que nos ajudariam a vencer? Que nunca dancei ensandecido em volta de uma fogueira onde ardiam os corpos dos inimigos, com meu rosto pintado com o sangue deles e com seus dentes pendurados em colares no meu pescoço, só para agradecer aos deuses pela vitória? Acreditas que nunca violentei cruelmente uma mulher, excitado como um animal por poções mágicas que eu mesmo preparava, em rituais de fertilidade para garantir a prosperidade da tribo? Esqueces que eu vivi em tempos tão incivilizados que fazia parte das funções de um sacerdote revirar as vísceras dos inimigos em busca de visões do futuro, ou mesmo devorar pedaços humanos, ainda pulsantes de vida, para aumentar meus poderes? Pois eu fiz tudo isso e muito mais, Methos, e eu também gostava! Pior, eu achava que aquilo estava CERTO e era BOM!

Aquelas palavras hediondas, despejadas de sopetão, haviam feito Methos parar de chorar com mais eficiência do que se ele tivesse levado uma bofetada. E era justo que Emrys lhe respondesse nesse tom. Era mais do que justo que o amigo lhe desse umas palmadas no traseiro e pusesse-o no seu devido lugar. Se fosse outro homem que lhe fizesse isso, Methos o odiaria imediatamente, mas aquele era Emrys, o Velho.

Há tempos Methos não procurava mais pelo mestre como tinha feito antes, porque apavorava-se com a idéia de que ele tivesse morrido, e de certa forma também temia enfrentá-lo após tudo o que já fizera. Jamais tinha desconfiado da ligação de Marconus com o velho Imortal, afinal nem Marconus sabia da verdade até pouco tempo atrás. Methos só se unira a ele e a Gaicus para fugir da solidão - além de, obviamente, tentar garantir a própria segurança contra outros Imortais que, Methos tinha certeza, ainda andavam atrás de sua cabeça. Mas Aka e Eksamus, esses sim ele sabia que tinham visto Emrys há pouco tempo, e foi a eles que Methos agarrou-se de propósito, na esperança do mestre procurar pelos dois. Reencontrar enfim o Imortal mais velho do mundo e ainda por cima descobrir que ele também tinha cometido atos medonhos não apenas tirava um peso enorme de sua consciência como colocava muitas coisas em perspectiva.

Diante do olhar dolorido do amigo, Emrys calou-se e fechou os olhos. Nunca tivera orgulho de seu passado distante, por isso não costumava revelá-lo a ninguém. Nem devia ter revelado agora, fora algo cruel de sua parte. Graças aos deuses a humanidade tinha evoluído, em muitos lugares já não havia mais sacrifício humano e os curandeiros hoje não eram tão selvagens, vários eram sábios e verdadeiros médicos. Se disse aquilo tudo a Methos, talvez foi porque sentiu que ele precisava entender que não tinha sido o único a viver tempos negros através da História... Não. Era mentira. Aquilo fora um desabafo, igualzinho ao de Methos. Emrys tinha que admitir que às vezes também precisava revolver a lama podre dos confins de sua alma para sentir-se melhor consigo mesmo e recobrar a vontade de prosseguir através dos tempos. Porém Methos era ainda jovem para suportar uma carga como a sua. Por um momento Emrys quase sufocou sob o peso da própria idade.

- Nós, que estamos por aí há milênios, vimos e fizemos muitas coisas que hoje entendemos que foram más! - falou afinal, em tom conciliador - Poucos de nós tiveram a sorte de caminhar sempre pelo lado certo da vida, e raríssimos nunca foram tentados a desviar-se dessa trilha. Na maioria das vezes acreditamos que agimos corretamente, porque obedecemos às leis e costumes do tempo e do lugar em que estamos, e nem sempre nos damos conta do quanto erramos!

- Eu sempre soube que estava errado, Emrys! - insistiu Methos num sussurro, parecendo procurar novos motivos para incriminar-se - Eu sabia, mas mesmo assim eu fazia... E eu gostava de fazer, apesar de entender o quanto aquilo era horroroso!

- Então foste abençoado pelos deuses, porque agora tens noção disso e ainda há tempo de reparares teus crimes! - Emrys puxou Methos outra vez para seus braços, a fim de que ele não visse sua própria dor - Essa é talvez a única glória da Imortalidade... Podes não acreditar, mas eu ainda estou consertando os meus erros, e um dia também sentirás que estás consertando os teus!

- Será que existe perdão e reparação para mim? - Methos deixou-se embalar como uma criança, tamanha era sua inconfessável carência - Será que eu mereço essas chances? Tantas vezes eu te amaldiçoei por me salvares naquele deserto... Seria melhor para o mundo se eu tivesse morrido lá, cozido sob o sol até meus ossos sumirem na areia! Tanta desgraça teria sido evitada!

- Pois quando te salvei eu estava tentando fazer o certo, meu filho! - Emrys sorriu tristemente - Eu também tentei morrer em épocas de desespero, e quase consegui! Hoje me arrependo muito... Posso ter errado ao deixar-te viver para ser um monstro, mas acho que no fim acertei, porque agora estás aqui de novo comigo, consciente do mal que fizeste, e te encontro cercado de bons amigos, que viverão a teu lado por muito tempo ainda! Sim, eu acertei, porque estou vivendo algo inédito! Tu me mostraste que vários de nossa espécie podem permanecer juntos e em paz, por vontade própria... Tu realizaste um sonho que acalento há milênios sem fim, o sonho da minha eternidade! Não achas que isso já vale como consolo para as dores de tua alma?

Comovido, Methos fitou Emrys nos olhos. O que viu foi o que também procurava há milênios - o amor infinito de um pai, a confiança de um amigo, e um mundo de compreensão e perdão. Sentiu imediatamente as lágrimas voltando, mas dessa vez eram lágrimas de alívio, e pela primeira vez em muitos séculos acreditou novamente que merecia continuar vivendo. Como havia ansiado por aquilo!

Sentindo Methos mais sossegado, Emrys beijou-o na testa.

- Não tenhas vergonha do que foste um dia, porque sobreviveste para ser alguém melhor! - disse o ancião com ternura - Como já falei, eu também dei muitos passos errados em minha infinita vida e não tenho orgulho deles, ninguém deve ter. Só que um poder maior manteve-me neste mundo até agora visando algum propósito, e talvez esse propósito tenha sido refazer meus passos e ainda evitar que outros passem pelos mesmos traumas, amparando-os com meu exemplo. Não é feio errar para aprender, filho, isso faz parte da natureza humana... E não é porque somos Imortais que temos que ser eternamente condenados também!

- Por que é que eu ainda me sinto uma criancinha perto de ti? - Methos enxugou as lágrimas com a ponta do manto e sorriu - Tantos milênios e não mudaste nada!

- Ora, para mim és e sempre serás uma criança! - Emrys alisou paternalmente os cabelos do aluno - Uma criança levada, mas que eu amo muito e gostaria que fosse meu filho de verdade! Agora mostra que és adulto e encara teus erros de frente, como eu encarei os meus... E amanhã iremos ao circo!

- Não iremos ver os gladiadores, prometo! - Methos procurou recompor-se e forçou um sorriso - O público adora as lutas, mas na verdade só vou ao circo ver as corridas, essas sim são um lindo espetáculo e acho que vais gostar!

- Perfeito! - Emrys sorriu, apertando as mãos de Methos com carinho - Agora vou falar com Gaicus, que já deve estar impaciente à minha espera!

E Gaicus realmente aguardava pelo mestre no jardim. Os amigos em geral deixavam-no a sós com Emrys, percebendo o quanto aquilo era importante para ele, e o ancião era-lhes agradecido por isso. Gaicus tinha realmente muito a aprender, e Emrys era agora seu grande livro da vida, sua fonte infindável de conhecimento. Obviamente nem o velho Imortal poderia responder-lhe tudo, mesmo porque ele próprio não conhecia a razão de certas coisas, mas só o fato de ele dizer isso já era suficiente para satisfazer a atual ansiedade de Gaicus, que logo pulava para a próxima pergunta de sua interminável lista - se Emrys não sabia algo, então ninguém mais saberia e nem precisaria saber. Simples assim.

Logicamente Emrys fazia de tudo para não parecer um deus, dono da última palavra, porém Gaicus ainda estava deslumbrado com a presença do mestre e por enquanto não lhe importava assimilar as consequências ou a magnitude do que aprendia. Apenas com o passar do tempo foi que ele começou a digerir melhor o que ouvia de Emrys, e após alguns meses suas perguntas diminuíram, dando então lugar a períodos cada vez mais longos de silenciosa e solitária meditação.

Se sua primeira fase tinha provocado ciúmes e implicâncias, a segunda então causou completa estranheza. O problema era que Gaicus estava o oposto do que sempre fora. Antes ele era o mais despreocupado e brincalhão do grupo, o que contava as piadas mais sujas e falava asneiras, o que dirigia-se desaforadamente às mulheres fáceis na rua e embriagava-se primeiro nas festas. Agora Gaicus vivia sóbrio e em silêncio, observando os amigos, ou simplesmente divagava, com o olhar perdido em algum lugar de sua própria mente. Até ler ele andava lendo, e com uma voracidade invejável.

Emrys era o único que parecia entendê-lo e ter paciência com suas excentricidades. Durante os anos seguintes, era só com o velho Imortal que Gaicus encontrava compreensão para suas confissões e paz para filosofar à vontade, e os dois muitas vezes passavam horas lendo em silêncio, ou conversavam passeando à pé pela cidade. Todos os outros Imortais faziam rápidas viagens de negócios, e Aka em geral acompanhava o marido ou ficava com o irmão, porém Gaicus só aceitava viajar se Emrys também fosse. Titus às vezes ressentia-se por Gaicus não procurá-lo mais como antes, mas Aka acalmava-o fazendo-o ver o quanto o rapaz estava amadurecendo, mesmo dando a impressão contrária.

- Ele agora toma conta dos próprios negócios com inteligência, não arruma brigas à toa e quase nem bebe mais! - comentou ela uma noite no quarto, enquanto o marido fitava tristemente o complicado mosaico que ornava o chão - Gaicus mudou para melhor, descobriu que a Imortalidade não é uma eterna orgia irresponsável... Devias agradecer a Emrys por ter enfiado algum juízo naquela cabeça frívola dele, Titus, isso sim!

- É que antes ele era... Divertido! - Marconus sorriu com tristeza, cutucando distraidamente uma das cabeças de leão entalhadas nos braços da cadeira onde sentara-se - Ele sempre foi o contraponto da minha seriedade, entendes? Hoje ele está quase tão centrado quanto nós, e às vezes sinto pena por ele ter perdido aquela inocência toda...

- Então sentes por ver teu filhote enfim crescer e ganhar asas? - murmurou Aka ternamente, sentando-se no colo do marido e puxando-o levemente pelos cabelos para forçá-lo a encará-la - Achas que perdeste a importância para ele, que não tens mais utilidade como mestre?

Após um segundo de hesitação, Marconus concordou com um aceno de cabeça e apertou-se contra ela, cônscio do próprio egoísmo. Aka cobriu-o de beijos e depois ergueu-lhe o queixo, fitando-o outra vez com grande amor.

- Entendas isso como uma fase de adaptação apenas! - disse ela - A chegada de Emrys fez com que o mundo desabasse na cabeça de Gaicus, colocando-o em contato com outras realidades que jamais imaginou. Eu também fiquei confusa quando conheci Emrys em Atenas, foi como se arrasassem todos os conceitos que levei séculos para formar e dar como garantidos... Eu precisava substituí-los por outros, senão iria enlouquecer! E eu já era bem mais velha do que Gaicus é hoje, mais velha do que tu! Imagines então o que isso está fazendo na cabeça do rapaz... Com o tempo ele reencontrará sua própria maneira de ver o mundo, podes ficar certo! E aí ele te amará ainda mais por ter-lhe permitido a liberdade de experimentar por si mesmo tantas descobertas...

- Eu sou o homem mais sortudo e feliz do mundo! - sussurrou Marconus, encarando-a com sincera adoração - O que será que fiz para merecer uma mulher como tu? És tão sensata e compreensiva que tenho até vergonha de minhas idéias mesquinhas!

- Não me coloques num pedestal, Titus, eu não sou perfeita! - Aka sorriu, comovida - Sortuda sou eu em ter um marido que me ama tanto assim!

Marconus sabia que Aka tinha razão. Em poucos anos Gaicus mudou muito, mas para melhor. Começou a tratar os escravos com mais brandura, arrumou uma amante fixa, devorou dezenas de grandes obras que encontrou nas bibliotecas dos amigos e, sobretudo, enfiou a cabeça nos negócios, abrindo algumas pequenas empresas na cidade, nas quais os amigos logo tornaram-se seus sócios. Aos poucos até o famoso bom-humor de Gaicus foi voltando, porém de uma forma mais apurada e inteligente, sem as baboseiras infantis de antes.

Quem não estava mais satisfeito, entretanto, era Emrys. Com o passar do tempo, uma das coisas de que mais o velho mestre começou a sentir falta em Roma foi da espiritualidade sincera do povo. Mesmo sabendo que cada civilização inventava seus próprios deuses e demônios, Emrys sempre admirara a capacidade humana de admitir que um poder além de sua compreensão regia implacavelmente os fenômenos do mundo, e de criar fantasias para tornar esses mistérios menos apavorantes, envolvendo-os em mitologias que servissem a propósitos mundanos - alguns povos tinham feito notáveis avanços científicos justamente por esse processo de tentar explicar o inexplicável, e a maioria dos grupos humanos incluía a religião em sua forma de governo. Porém Roma não era baseada numa cultura espiritual própria, e sim numa miscelânea jamais vista de deuses e mitologias absorvidas de outros povos. Em Roma os templos viviam lotados e celebravam-se grandes festas em homenagem a divindades de origens tão distintas quanto a egípcia, a mesopotâmica e a minóica, sequestradas de seus conceitos originais e trasformadas para satisfazer o paladar latino, mas ainda assim tudo era superficial, decorativo, e o verdadeiro sentido religioso estava ausente - a ciência explicava coisas demais, havia deuses demais, havia egoísmo e materialismo demais. Acreditava-se em tudo e, por isso mesmo, já não se acreditava realmente em nada.

E Emrys notava que seus próprios alunos estavam virando céticos. Mesmo tendo sido criados em função da vida religiosa, Aka e Eksamus tinham sofrido o suficiente para perder logo cedo toda a fé nos deuses de seus pais. Methos nunca tivera nenhuma crença verdadeira e era velho demais para inventá-las agora, principalmente depois de ter sido, ele próprio, uma das maiores provas de que reis não eram deuses e nenhum raio cairia do céu para punir os criminosos. Marconus, mesmo sendo um artista e estudioso nas horas vagas, era mais um observador do comportamento humano do que dos mistérios da alma. E Gaicus estivera tanto tempo mergulhado na satisfação de suas próprias necessidades imediatas que sequer dirigira um olhar mais profundo aos companheiros Imortais, e só agora desabrochava sua consciência para o mundo, porém numa civilização que Emrys julgava perniciosa - Roma era talvez a mais ímpia de todas as civilizações que o velho Imortal já conhecera. Nem os gregos excessivamente politeístas e filosóficos tinham se divorciado tanto do mundo invisível e isolado tanto as emoções alheias. Hoje, Emrys passeava com seus alunos por Roma e não entendia como eles conseguiram conviver décadas a fio com esse povo que tinha tanta necessidade de expôr-se e ao mesmo tempo não amava o próximo. Os romanos não possuíam um sentido de individualidade ou privacidade, e talvez justamente esse excesso de vida pública tirara deles a visão do outro como pessoa.

O velho Imortal sabia que seus alunos no fundo não eram como os romanos comuns mas, por maior que fosse sua compreensão da evolução humana e sua facilidade em absorver as mudanças a seu redor, Emrys mais de uma vez sentiu-se sufocar nessa Roma excêntrica, onde os outros Imortais pareciam circular tão confortavelmente. Talvez estivesse mesmo ficando velho demais, pois sentia falta da liberdade de ajudar os necessitados sem dar satisfações, de conversar com os filósofos sem ter que acompanhá-los ao banho, de brincar com crianças nas ruas sem receber olhares furtivos, de colher ervas frescas pelas colinas sem a vigilância de um escravo ansioso por acorrer em sua ajuda. Para um Imortal essa vida poderia ser perigosa, e para Emrys a pressão estava tornando-se excessivamente desgastante. Nos primeiros anos aquilo tudo fora divertido, um desafio à sua capacidade de adaptação, mas agora não via mais graça nessa sociedade que o mantinha numa prisão sem grades. Emrys não queria decepcionar os amigos, afinal eles o haviam procurado por tanto tempo e estavam felizes com sua presença, porém também não queria mais ficar ali.

Outro grave problema era justamente essa convivência amigável de tantos Imortais, que Emrys a princípio julgara uma bênção inigualável. Com os anos o mestre percebeu que seus alunos tinham desenvolvido uma perigosa impermeabilidade contra o resto do mundo. Eles seguiam rigidamente os costumes locais, participavam de eventos sociais e mesclavam-se na multidão com maestria, mas sem importar-se de verdade com o que passava-se a seu redor. Juntos eles imperceptivelmente haviam formado seu próprio Olimpo, isolados no alto de seus séculos ou milênios de idade para observar o tempo passar, como se fossem deuses indiferentes à sorte dos mortais comuns. Um acobertava e ajudava o outro no que fosse necessário, todos eram amigos fiéis, a presença do grupo espantava outros Imortais da região e nada ameaçava essa tranquilidade eterna. Nem treinar direito as artes de combate eles treinavam mais!

Era preciso separá-los, Emrys decidiu em segredo, e depressa. Senão, eles acabariam mesmo acreditando que eram invulneráveis e esqueceriam que ainda havia um Jogo fatal esperando lá fora. A qualquer momento um Imortal alucinado poderia invadir a cidade atrás deles, ou emboscá-los durante uma viagem, e essa paz artificial, brutalmente estraçalhada, traria consequências imprevisíveis...

*************

Roma - Península Itálica - 138 a.C.

- Ficaste tão pouco tempo conosco, não entendo! - reclamou Methos, na tarde em que Emrys finalmente convocou os alunos para anunciar sua decisão de partir - Se estás com problemas, então podemos...

- Methos, eu já fiquei dez anos aqui, isso não é pouco! - interrompeu o mestre, tentando manter a voz gentil porém firme - Por favor, não caias na velha cilada de perder a noção do tempo... Somos Imortais, mas o mundo lá fora nunca pára de evoluir e, para muita gente, dez anos é uma vida inteira!

Todos permaneceram em silêncio, ruminando a bronca, e Emrys aproveitou para analisá-los com calma. Aka mostrava-se triste, mas era a mais conformada. Eksamus mantinha a cara fechada e Marconus estava evidentemente frustrado, com os olhos pregados no chão. Methos tentava encontrar algum argumento para fazê-lo ficar, e o mestre suspirou porque sabia que ele poderia ser infernal quando cismava de manobrar a vontade de alguém - Emrys congratulava-se por sua prudência em nunca ter ensinado Methos a usar a Voz, caso contrário agora ambos estariam travando uma verdadeira batalha de magia. E Gaicus apenas olhava para os amigos com carinho - a bagagem dele já estava pronta para seguir o mestre, fosse para onde fosse.

Apesar dos meses que levara até decidir-se definitivamente pela partida, na última hora Emrys nem precisara dizer a Gaicus o que pretendia fazer. A convivência entre ambos tornara-se tão estreita que logo o rapaz notou o tom sutilmente amargo nos comentários do mestre sobre a vida em Roma, que antes ele tanto admirara. E Emrys não surpreendeu-se quando o jovem Imortal declarou que abandonaria tudo para acompanhá-lo, caso desejasse sair de Roma, porque ainda tinha muito o que aprender a seu lado. Emrys não esperava o mesmo dos outros, e tampouco desejava que eles fossem também, afinal sua intenção era sacudir o tranquilo mundo deles, e não levá-los para um passeio em grupo. Eles precisavam voltar a ser independentes, mas só fariam isso se fossem afastados uns dos outros e - principalmente - perdessem contato por um tempo. Na última separação o grupo permanecera unido por cartas e aproveitou a primeira oportunidade para se reencontrar e retomar o esquema de antes. Desta vez Emrys pretendia provocar um corte mais radical, apesar de pacífico. Aka e Eksamus viveriam grudados pelo resto dos tempos e Marconus não se separaria da esposa tão cedo, mas ao menos Emrys poderia tirar Gaicus de perto deles e, sem companhia, Methos talvez resolvesse partir também. Emrys não tinha orgulho dos cálculos que estava fazendo, porém algo lhe dizia que aquilo era necessário.

- Meus filhos, há tempos sinto-me sufocado em Roma - explicou enfim - , porque o estilo de vida daqui não condiz com meus ideais. Os romanos são um povo grandioso, inteligente e com certeza terão um belo futuro, porém eu preciso de mais liberdade para ser quem sou. Pretendo procurar um Imortal amigo meu na Hispânia (1), e Gaicus irá comigo!

Methos permaneceu alguns segundos fitando o mestre com a cabeça ligeiramente inclinada, mas depois suspirou e adotou uma expressão casual, parecendo dar o assunto por encerrado. Marconus ainda ensaiou um débil protesto, tentando fazer Gaicus mudar de idéia, porém o rapaz estava resoluto, e Aka convenceu o marido de que tudo ficaria bem. Eksamus trocou um olhar furtivo com Methos e ambos perceberam que pensavam a mesma coisa. O mestre não tomara aquela decisão apressadamente, ao contrário. Emrys calculara a partida quase como se fosse uma fuga, justamente para não dar-lhes tempo de questioná-lo ou demovê-lo. Ele e Gaicus haviam preparado tudo em segredo, seu barco zarparia na manhã seguinte e naquele exato momento escravos entravam e saíam da casa levando bagagens para o porto. Não havia mais o que discutir.

Aka mal teve tempo de preparar um jantar de despedida, enquanto Emrys e Gaicus despachavam o resto de suas coisas. Apesar do esforço de todos para manter o clima agradável, o jantar foi triste e ninguém dormiu direito à noite. Pela manhã Emrys pediu aos amigos que não o acompanhassem até o porto mas, mesmo assim, a partida foi dolorosa. O mestre abraçou e beijou cada um dos alunos que ficariam para trás.

- Se os deuses tivessem me concedido a graça de gerar filhos de meu próprio sangue, eu não os teria feito melhores do que vós! - confessou, lutando para domar a emoção - Dói-me profundamente esta separação... Mas ainda nos veremos, meus queridos!

Gaicus chorou muito agarrado a Marconus, e Emrys chegou a sugerir-lhe que ficasse, mas o rapaz manteve-se firme e, enxugando o rosto com valentia, saiu sem olhar para trás. Ao abraçar Methos uma última vez, Emrys murmurou-lhe ao ouvido, com voz embargada:

- Meu filho amado, meu herdeiro! Perdoa-me...

O mestre então afastou-se, contemplou os alunos com infinito amor e, fazendo um gesto para que seus escravos saíssem na frente, deixou que lágrimas corressem mansamente por seu rosto antes de desaparecer pela porta. Aka caiu em um choro sofrido, pendurada ao pescoço de Marconus, e só Eksamus percebeu que Methos teve que apoiar-se em uma coluna para não desfalecer, pálido como ninguém nunca o havia visto antes. Quando tentou aproximar-se para ampará-lo, ele fez-lhe sinal que estava bem e correu para seu quarto. Logo que ficou a sós, Methos agarrou uma almofada e enfiou-a na boca para abafar um grito que destroçou suas entranhas - de alguma forma Emrys fizera uma mágica para enviar-lhe uma premonição apavorante e agora Methos sabia que, na próxima vez em que encontrassem o mestre, alguém do grupo não estaria mais vivo.

*************

Notas explicativas:

1 - Hispânia é a atual Península Ibérica, englobando Espanha e Portugal. A região foi tomada por Roma aos cartagineses em 197 a.C. e separada em duas províncias romanas: Hispânia Citerior, a leste, e Hispânia Ulterior, a oeste.
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