Redenção


Paris, França

A igreja estava completamente vazia, e ela podia não somente ouvir seus passos ecoarem nervosos pelo grande salão, como podia ouvir os gritos que há dias não abandonavam a sua cabeça. Sentou-se e acomodou-se na pequena cadeira que ficava em frente ao altar, olhou nervosamente a sua volta como se quisesse silenciar as vozes em sua cabeça, reparou nas velas que queimavam vagarosamente a sua esquerda. Depois, olhando além da longa fila de cadeiras, reparou na imagem da uma santa que não conhecia, olhou sua face serena e desejou também estar em paz, então voltou seu rosto para o altar com flores, que refletiam uma felicidade que contrastava com a imagem de um Jesus crucificado. Perdeu alguns segundos examinando detalhadamente aquele que seria o Salvador, e uma solitária lágrima escorregou pela sua face:

- Parece que todos temos uma cruz para carregar...

Foi quando sentiu aquela intensa vibração vinda da sacristia, e rapidamente colocou sua mão dentro do longo casaco, quando viu aquele homem em traje franciscano vindo em sua direção. Sentiu a paz que emanava daquele que mais parecia um anjo, e então olhou para seus olhos de um azul profundo, que pareciam possuir toda a sabedoria do mundo.

- Parece que sim, sou Darius. - sua doce voz possuía um tom de total confiança.

Envergonhada, ela soltou o cabo da espada e suavemente passou os longos dedos pela face molhada.

- Ve-veronika. - seu nome saiu sussurrado, embargado e cheio de emoção, pois trazia na alma mais do que dor e solidão, trazia o desespero e o arrependimento de tempos negros, sentimentos que o padre conhecia muito bem - Vim em busca de um pouco de paz.

- De um modo ou de outro, todos estamos em busca das mesmas coisas. - seu sorriso era incrivelmente encantador, e ela sentiu que podia confiar nele, afinal somente um de sua espécie para entender as feridas que o tempo não curava.

Darius olhou-a com infinita bondade e, sentindo que ia explodir em lágrimas, rapidamente ela desviou o olhar para o Cristo que jazia naquele altar. Seu coração batia acelerado, há dias que não dormia direito, quase não comia. Seu desespero era tão grande que por onde andava via corpos pelo chão e em cada rosto o reflexo da morte e destruição que causara há tempos.

- É apenas um símbolo. - ele comentou rapidamente, como se estivesse lendo seus pensamentos - Os nomes são diferentes, mas a essência é a mesma. - ele baixou o tom de voz e tocou delicadamente sua mão - O perdão também é o mesmo.

Ainda olhando para a Imagem, o rosto de Veronika rapidamente foi inundado por lágrimas sinceras que não mais poderiam ser aprisionadas. Assim, deixou que toda a dor tomasse o controle de seu corpo e de sua alma. Seu corpo todo tremia. Segurou com força a mão que lhe dava segurança, abaixou a cabeça e deixou que as vozes enfim a dominassem.

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942 - Trelleborg, Escandinávia

Os gritos podiam ser ouvidos a longa distância, o pequeno vilarejo ardia em imensas labaredas. Os homens tentavam sem sucesso barrar os invasores mas, como camponeses, não possuíam maldade em seus corações e nem conheciam o peso de uma espada. As mulheres corriam de um lado para outro tentando salvar seus filhos e, em meio àquele caos, via-se a pequena jovem montada em seu cavalo, negro como os pesadelos daquela gente simples. Trazia na perna a marca de um confronto com um pobre homem que tentara em vão salvar sua família, o sangue que sujava sua espada já escorria vagarosamente por seu braço. Os gritos eram ouvidos por todos os lados, e ela só queria mais, sua sede por sangue parecia não acabar nunca. Em cima de seu cavalo, ela era a Deusa da Espada e estava feliz.

Notou então um par de olhos assustados, uma menina que deveria ter sua idade parada ao lado de seu cavalo, tremendo da cabeça aos pés.

- Por favor, não me mate!! - desesperadamente ela implorava por sua vida.

Veronika apenas sorriu maliciosamente para aquele pequeno rosto pálido.

- Hoje não é dia para caridade. - ela levantou sua espada com ambas as mãos e por um instante todas as vozes se calaram, sentia como se todo o poder do mundo estivesse ali, presente com ela. Então, virando a lâmina para baixo, desceu-a pesadamente sobre aquela frágil criatura que não reagiu, aceitando assim seu fatídico destino, e sentiu a lâmina entrando em seu peito e abrindo espaço por entre os ossos. Olhou detidamente aqueles olhos que agora perdiam o brilho da vida. Sorrindo, pensou que era a última pessoa que a garota vira em vida, e se orgulhou por ser tão boa naquilo que fazia. Tirou a espada do corpo inerte, que caiu pesadamente no solo enlameado, levantou novamente a espada aos céus e gritou por mais uma vitória. Trazia nos olhos uma expressão de furia e deleite sem igual. Era conhecida como a morte a cavalo e gostava daquilo.

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Paris, França

- Darius, não aguento mais, está além das minhas forças! - seu estado era quase histérico - Por favor me ajude! Faça as vozes sumirem... Por favor!

Os vários séculos de vida lhe deram experiência e um pouco de sabedoria, mas ainda hoje, em algumas noites, ele também acordava assustado com os fantasmas do passado, e chorava como qualquer um choraria se estivesse em seu lugar. Era um padre, um Imortal, mas ainda humano. Darius sentiu seu coração apertar, aquela pobre alma estava realmente sofrendo e ele sabia que nada podia fazer, somente ela poderia por fim àquela tortura.

- Sei que em algum lugar tem alguém olhando por nós, e depois de tanto tempo, já nem sei por qual nome devo chamar! Pelos céus, já não aguento mais, não tenho mais controle de nada e não consigo fazer sumir... Darius me ajude, estou desesperada, não sei mais o que fazer! - Suas mãos tremiam descontroladas e sua voz estava rouca, sumindo entre as lágrimas.

- Este Alguém esta olhando por você, mas não depende Dele fazer as vozes sumirem. Estas pessoas já não existem mais e não podem te machucar, mas você pode e por isso sofre assim. Sabe que seu passado foi errado e agora se arrepende e sofre por ele, mas Veronika, ele é passado e você precisa seguir em frente.

Darius proferiu aquelas palavras com convicção, e com a certeza de quem quer acreditar naquela verdade. Sabia que os pesadelos voltavam porque se culpava por eles, sofria e chorava, muitas vezes se penalizava, mas sabia que de nada adiantaria. Descobrira que o perdão estava em sua cabeça e mais ainda em seu coração, e que se não perdoasse a si mesmo, ninguém o perdoaria. Sua única certeza agora era de que ela iria descobrir isto, e enfim poderia voltar a sorrir.

- Será que um dia serei capaz de esquecer todo o mal que causei?! Não sei se posso, eu sou a única lembrança daquela gente! Se esquecê-los, suas memórias também serão esquecidas, e suas vidas terão sido em vão! - todo seu corpo tremia, porém as mãos do padre eram seguras e isto de uma forma a tranquilizava.

- Eu não disse para você esquecer, a única forma de seguir em frente é encontrar o perdão em seu coração! Só ele lhe trará paz e só você poderá encontrá-lo!

- Mas como?! EU MATEI AQUELA GENTE, EU GOSTAVA DAQUILO! COMO EU PODEREI PERDOAR ISSO! COMO?! - ela gritava descontrodamente, e isso fez com que seu sangue corresse mais rápido.

Veronika levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, esfregando as mãos compulsivamente. Ele apenas a olhava, sabendo que depois daquela explosão ela começaria a pensar com mais clareza e por fim encontraria a redenção.

Sua cabeça girava, as vozes, os corpos, tudo passava diante de seus olhos como num filme, porém aos poucos seu coração foi se acalmando e os tremores diminuindo. Veronika então olhou para o padre e imaginou o homem, imaginou o que ele teria passado para possuir toda aquela calma e segurança. Decidiu então se aproximar novamente e, sem a menor cerimônia, sentou-se aos pés dele. Trazia o rosto inchado pelas lágrimas e o coração aliviado pelo súbito desabafo. Limpou a garganta e piedosamente prometeu:

- Não posso mudar o meu passado, mas posso construir o meu futuro. Não sei se vou conseguir encontrar perdão para os meus atos, mas eu vou tentar. Chega de lágrimas.

Respirando aliviado, Darius sentiu que conseguira mostrar o caminho para o perdão e se sentiu orgulhoso por ser o que era, e acreditar no que acreditava.

- Ninguém disse que seria fácil. - ele abaixou um pouco a cabeça para poder olhar no fundo dos olhos dela e, passando carinhosamente a mão por seus cabelos, completou num tom incrivelmente afável - E ninguém disse que você estaria sozinha.

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Converse com a autora: Andrea Ortelan

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