Tempestade no Deserto


Ásia Menor - Cerca de 2329 a 2315 a.C.

Magra e abatida, Akh Kheper-Apet mal conseguia acompanhar a grande caravana com que viajava, ora atravessando montanhas, ora planícies desérticas. A maior parte do grupo pertencia a uma tribo de nômades, os outros eram mercadores e viajantes que aproveitavam a companhia para enfrentar o perigoso percurso. Quando o grupo passava por alguma cidade alguns mercadores ficavam para trás, enquanto outros eram acrescentados. Muitos olhavam-na com desconfiança, poucos até chegaram a cochichar entre si sobre a possibilidade de abandoná-la pelo caminho, mas todos tinham medo. Uma curandeira sempre podia invocar algum malefício e, numa região violenta como a que atravessavam, o que menos precisavam era de azar.

Akh pouco se importava com o que diziam, muito menos com o que poderiam lhe fazer. Aliás, nem sequer havia dado-se conta de para onde estava indo. Se tivesse realmente pensado sobre o assunto, teria voltado para o Egito à procura de Heka Ma'At, ao invés de seguir na direção oposta. Lembrou-se vagamente de quando passaram pelas cidades de Tarso e Mersin, pois ficavam ainda perto do litoral, e depois de Purushkhaddum junto a um grande lago, mas na verdade pouco lhe importava. Nada mais em sua vida lhe fazia sentido, tudo o que queria era sumir, desaparecer, perder-se em algum lugar distante, onde pudesse morrer em paz. Morrer...

Se ao menos soubesse como morrer! Seria um alívio... Todas as noites ia dormir rezando para nunca mais acordar, mas todos os dias acordava viva, e chorava por isso. Andou por anos com a caravana pelo deserto, cuidando dos que precisavam de seu serviço de curandeira quase como se fosse um zumbi, os séculos de experiência coordenando seus atos, sem que sequer se desse realmente conta do que fazia. Vivia quase sempre isolada do grupo nos acampamentos, o olhar perdido em lugares e épocas que eles nunca viram nem ouviram falar, falando sozinha em línguas que eles não conheciam, rabiscando na areia palavras que eles julgavam enfeitiçadas. Poucos atreviam-se a aproximar-se dela, ninguém ousava fazer perguntas, simplesmente deixavam-na fazer o que bem entendesse, e davam-lhe comida e água suficiente para mantê-la viva, temendo que ela os amaldiçoasse.

Até o dia em que foram atacados.

A caravana acabava de montar acampamento no deserto, num final de tarde, quando ouviram gritos e viram-se de repente sendo cercados por um bando de assaltantes, que certamente os viu do alto de alguma duna e esperou que parassem para surgir, como demônios, no momento em que estavam distraídos.

A gritaria dos atacantes logo misturou-se à dos atacados - mulheres histéricas correndo para buscar os filhos e fugindo para suas tendas, mercadores assustados à procura de armas, animais em pânico tentando escapar, os ladrões rodopiando largas espadas curvas e lanças por sobre as cabeças, uivando como chacais enfurecidos, golpeando tudo o que viam pela frente. Os homens da caravana caíam indefesos, perdidos demais em meio à confusão para esboçar realmente um contra-ataque. Barracas eram derrubadas, mulheres agarradas pelos cabelos, crianças pisoteadas. Uma das tendas desmoronadas pegou fogo, provavelmente incendiada por alguma lamparina acesa em seu interior, levantando uma fumaça negra e fétida. E por cima do tumulto, vibrando tão perto a ponto de abafar tudo o mais, Akh sentiu - a presença de outro Imortal.

Não era Heka Ma'At, com certeza. Seu irmão vibrava de uma forma diferente, aquilo que sentia agora era algo mau, forte e apavorante. Sem conseguir localizar de onde vinha o alarme e tentando fazer-se ouvir por entre o berreiro, Akh gritava como louca chamando a si as mulheres e crianças, tentando tirá-las da confusão e levá-las para longe, procurando uma brecha por onde pudessem escapar para o deserto. Mas a vibração quase preenchia todo seu ser, revirando seu estômago, impedindo-a de pensar com clareza. Akh viu, mesmo sem tomar consciência, quando uma das mulheres empalou um dos ladrões com a vara de uma das tendas, um velho matou outro atacante a golpes de punhal, e um terceiro bandido caiu sob o ataque de três mercadores armados apenas com porretes. Todos defendiam-se como podiam, mas muitos já estavam feridos ou mortos.

O fogo logo espalhou-se por outras tendas, levado por um bandido cujas calças estavam sendo consumidas pelas labaredas. Outro ladrão jogou sobre ele um tapete, tentando apagar as chamas, mas o homem já estava ferido demais para sobreviver. Akh aproveitou e atirou-se sobre o segundo bandido com a longa adaga que Imhotep lhe havia dado, apunhalando-o pelas costas na altura dos rins. A dor fez com que o homem caísse de joelhos e, num golpe rápido, Akh agarrou-o pelos cabelos e degolou-o.

Em choque com o que tinha acabado de fazer, Akh permaneceu olhando para o corpo que caía à sua frente, o sangue jorrando em golfadas pela garganta aberta, um tufo de cabelos do homem ainda preso entre seus dedos. De repente, um violento golpe por trás jogou-a por cima do morto, e Akh caiu sob o peso de outro homem, sentindo a vibração do Imortal grudada em sua pele - era o bandido que a derrubara!

- Quieta! - gritava o homem, enquanto ela debatia-se tentando livrar a adaga que havia caído sob seu próprio corpo, felizmente sem tê-la ferido - Sua vadia! Quieta!

A voz era cheia de sotaques que Akh, pensando por instinto, tentava reconhecer. Sentia o peso dele em suas costas e seu hálito podre por sobre a nuca, as mãos dele tentando agarrar as dela. Lutava com todas as forças, coleando como uma cobra na areia para escapar, debatendo as pernas e tentando derrubá-lo a todo custo. A seu redor, ouvia outras mulheres gritando e uma criança chorar. O sangue do bandido que acabara de matar escorria em sua direção, empapando a areia, e podia ver os olhos dele abertos, encarando-a sem vida, como se fizessem perguntas para as quais não houvessem respostas. Akh sentiu profundo ódio por aquele olhar, tão estúpido e inútil.

- Então quer brigar, hein?! - a risada do Imortal era tão enjoativa quanto seu cheiro e, num reflexo irracional, Akh pensou que aquele maldito deveria estar infestado de piolhos - Você é como eu, eu sei... Que belezinha! Tão selvagem... Deliciosa! Isso, lute bastante! Vou mostrar como Deasir aprecia uma mulher rebelde!

Uma das mãos dele correu por sua coxa, levantando seu vestido enquanto ela esperneava, e Akh sentiu lágrimas de raiva inundando seus olhos. O peso do corpo dele sobre o dela impedia-a de liberar a adaga, e nada mais podia fazer do que debater-se. A barba dele arranhou seu pescoço quando ele tentou lambê-la na nuca, puxando-a pelos cabelos com a outra mão, e Akh começou a gritar.

Com horror, sentiu um tranco no ombro esquerdo quando ele puxou sua roupa, tentando rasgar o tecido. Sem pensar, virou o corpo para o mesmo lado com toda a força que podia, acertando uma cotovelada no rosto do homem, que estava bem próximo. Soube na mesma hora, pelo som, que esmagou alguma coisa. Viu pelo canto do olho quando o homem levou as mãos ao nariz fraturado, gritando de agonia. Sem perceber, ele afastou-se o suficiente para que ela pudesse levantar o tronco e puxar a adaga com a mão direita, virando-se com tudo para a esquerda por sob os joelhos dele. Num golpe seco e procurando atingir qualquer ponto que estivesse ao alcançe, Akh enfiou a adaga por baixo das mãos do homem. Sentiu o metal raspando o osso do maxilar sob o queixo, atravessando a garganta bem no ponto em que o pescoço une-se à cabeça, e resvalando contra as vértebras da nuca, rasgando os nervos da espinha com um estalido surdo.

A única reação do homem foi arregalar os olhos, imóvel, e Akh esperneou para sair de baixo dele. O corpo tombou para o lado, as mãos ainda quase junto ao rosto, a cabeça caindo num ângulo esquisito e frouxo. Logo começou a sair sangue por aquela boca sem vida. Akh percebeu que a vibração do homem sumiu, mas ainda demorou alguns instantes para livrar-se do pânico e aproximar-se para retirar a adaga de sua garganta. "Preciso decapitá-lo! Preciso decapitá-lo!", pensava sem parar. Nada a seu redor chegava a seus ouvidos, estava alheia ao tumulto. Tentou libertar a lâmina com um puxão e a cabeça do homem moveu-se junto, descolada da espinha mas ainda presa aos músculos, enchendo-a de nojo. Em desespero, colocou o pé sobre a cabeça do Imortal para puxar finalmente a lâmina e, fechando os olhos para não ver, golpeou com toda a força dos dois braços, separando finalmente a cabeça do tronco daquele ser odioso.

Só então Akh percebeu as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto e os arranhões que ardiam em suas pernas e braços. Ouviu gemidos e o berro agonizante de uma cabra, sentiu o cheiro da fumaça escura e viu, através do fogo, a sombra de um dos bandidos carregando um baú, a imagem dele distorcida pelo calor das labaredas. Ao mesmo tempo, tudo lhe pareceu acontecer estranhamente devagar, os sons vindo de algum lugar distante, de um outro mundo. Seu cérebro estava confuso, algo parecia crescer subitamente em seu interior e tomá-la por inteiro.

Num segundo, um raio azul brilhou a seu redor, estalando em zigue-zagues nervosos, subindo por suas pernas, penetrando por seu umbigo com um violento choque. Logo outro raio atingiu-a, e mais outro, ecoando em um ribombar ensurdecedor, trazendo um vento súbito que revirava a areia e assobiava em seus ouvidos. Via com horror cada raio sair do corpo do Imortal decapitado, rodeando-a por uma fração de segundo antes de entrar violentamente em seu corpo com uma chicotada, fazendo-a estremecer e gritar, convulsionando seus músculos, apoderando-se do controle de seu cérebro. Viu a areia subir em círculos cada vez mais altos à sua volta, o vento arrastando consido lamparinas, gravetos, cacos de louça, farrapos, cinzas. Ouvia os estalos dos raios, vozes em línguas estranhas ecoando em sua cabeça, o vento assobiando enquanto subia em círculos, e seus próprios gritos pareciam sair de outra garganta. O fogo elevou-se junto com o vento e os raios, rodeando-a num cataclisma de choques e convulsões, imagens de lugares que nunca conheceu passando diante de seus olhos, rodopiando junto com as labaredas, arrastando-a num vórtex de sensações apavorantes e mágicas.

Com um último estouro, o derradeiro raio penetrou seu corpo e prostrou-a ao chão de joelhos, quase inconsciente, cada fibra de seus músculos tremendo. Num violento assobio, o vento sumiu, apagando o fogo e deixando apenas a fumaça fétida emanando das brasas, e tudo permaneceu paralisado num silêncio de morte.

Akh só deu-se conta desse estranho silêncio quando ouviu um homem gritar em uma língua estranha, e uma criança recomeçar a chorar. Levantou a cabeça e viu o homem que gritava sem parar, um dos bandidos, apontando para ela e correndo para o deserto, largando tudo o que carregava. Em poucos segundos todos os outros bandidos corriam na mesma direção, abandonando o que haviam roubado, dando a impressão de que um demônio invisível os perseguia.

A criança que soluçava passou perto de Akh, olhando-a com olhos enormes, um dedo sujo enfiado na boca aberta, o rosto manchado de lágrimas e fuligem. Akh estendeu a mão inconscientemente, chamando a menina para si, tentando sorrir. A criança parou de soluçar, olhou-a por um instante com olhos ainda mais abertos e desatou em um berreiro apavorado, correndo para longe. Um velho de cabelos brancos, com o rosto sangrando de um corte pouco abaixo do olho, aproximou-se devagar e colocou a mão sobre seus ombros, confortando-a. Akh reconheceu-o, era o velho que havia esfaqueado um dos assaltantes há poucos instantes. Sabia quem ele era, um ancião da tribo de nômades que sempre a tratou com bondade e parecia indiferente às suas atitudes estranhas, como se uma enorme sabedoria do mundo tivesse ensinado àquele velho muito mais do que se poderia supor. Vendo que ele a fitava com um olhar ao mesmo tempo compreensivo e cheio de curiosidade, Akh não se conteve e desandou a chorar.

Logo todos os vivos no acampamento refaziam-se do susto e saíam em busca dos feridos, catando o que estava espalhado, levantando as tendas reviradas. Alguns gemiam dos ferimentos, outros gritavam pelos mortos, outros ainda choravam silenciosamente pelo que havia sido destruído. Mas todos, sem exceção, passavam por Akh com olhares de reverência e medo.

Vendo como todos empenhavam-se em tentar reconstruir seu pequeno mundo, Akh sentiu-se extremamente egoísta e culpada. Havia mortos com os quais nunca havia trocado pouco mais do que algumas palavras de cortesia, mulheres que foram violentadas e espancadas, crianças feridas e órfãs, mercadores que poderiam ter perdido todos os seus bens e que agora agradeciam simplesmente por estarem vivos... E ela, fechada em sua dor, nunca olhou-os de perto, nunca lhes deu a devida atenção! Foi necessária uma enorme tragédia para que percebesse novamente como a vida era curta e importante para eles. Foi preciso que ela própria quase morresse nas mãos de outro de sua espécie para voltar a valorizar o que tinha de mais precioso...

Enxugando o rosto com as costas das mãos, sujas de sangue e areia, Akh olhou agradecida para o velho a seu lado, um ancião de cabelos completamente brancos, e pensou com infinita saudade no pai, que jamais viveu o suficiente para que seus longos cabelos negros ficassem pouco mais do que grisalhos. O que Epher pensaria se visse-a naquele estado, lastimando-se com egoísmo quando poderia fazer tanto por aquele povo que, mal ou bem, a havia acolhido?

O olhar do ancião encorajou-a a levantar-se e tomar as rédeas da situação, correndo para cuidar dos feridos, gritando com os que estavam bem para que fizessem isso ou aquilo, acalmando os histéricos, carregando crianças perdidas para junto de seus pais ou consolando-as com ternura quando sabia que não havia mais quem as tomasse no colo. Encontrou forças sabe-se lá de onde para ajudar a carregar cadáveres para fora do acampamento, carregar caixas de mercadorias que os bandidos haviam espalhado, armar as barracas que ainda estavam em condições de uso.

Logo todos moviam-se com certa organização, catando pela areia o que ainda podia ser aproveitado, distribuindo comida e água entre os que tinham perdido tudo, reagrupando-se nas tendas que haviam sobrado para passar a noite em segurança.

Provavelmente os bandidos não voltariam mais. Os que haviam ficado para trás, cerca de dez ou doze, estavam mortos, e seus corpos foram enterrados numa vala rasa para não atrair moscas ou predadores. Os corpos dos que pertenciam à caravana foram colocados juntos sobre uma pilha de lenha e farrapos, e cremados numa pira que iluminou o acampamento até a manhã seguinte. Akh não dormiu, correndo incansavelmente de tenda em tenda para ver se todos estavam bem, receitando remédios, consolando os que perderam parentes, orando ao lado dos feridos mais graves.

Todos no acampamento olhavam-na com um misto de gratidão e temor, ainda assustados com tudo o que haviam presenciado e com sua súbita mudança de comportamento. Ninguém tocava no assunto, mas Akh sentia que eles agora enxergavam-na como um ser de outro mundo, capaz de criar uma tempestade estrondosa a partir do nada e espantar os bandidos com sua poderosa magia - ao decapitar o outro Imortal, transformou-se para eles ao mesmo tempo em salvadora e bruxa, heroína e demônio.

Somente cinco dias depois o grupo levantou acampamento para prosseguir viagem, e ainda assim porque, se permanecessem onde estavam, tornavam-se presas fáceis para novos ataques, e seus poucos mantimentos acabariam antes que chegassem ao destino.

Viajaram lentamente, tentando poupar os feridos, e acabaram encontrando outras caravanas pelo caminho, que ajudaram o grupo a prosseguir, dividindo com solidariedade o que dispunham. Logo a história da feitiçaria de Akh espalhou-se entre os viajantes, num rumor surdo e reverente. Aquela pequena mulher, de olhos verdes e cabelos claros, era capaz de conjugar os elementos da natureza para destruir os malvados e proteger os viajantes, e seu nome em breve tornou-se uma lenda que passou de boca em boca através do deserto.

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Ásia Menor - Cerca de 2314 a 2290 a.C.

Chegaram enfim a Éfeso, uma enorme e movimentada cidade à beira-mar. Akh sentiu-se revigorada ao ver novamente a civilização, mesmo que fosse num lugar estranho. Sentia falta da felicidade de sua juventude em Abtu, das décadas de amor e paz em Saqqara e Mênfis, mas às vezes tudo lhe vinha à memória como fragmentos de outras vidas, de histórias de outras pessoas que um dia ouviu contar e que nunca viveu realmente. Abtu perdeu-se no passado, seus amigos do deserto africano há muito tinham sumido na poeira do tempo, não via Heka Ma'At há quase três séculos, Imhotep morrera. Mas ela havia sobrevivido a seu primeiro duelo, tinha matado seu primeiro Imortal. Talvez não tivesse tanta sorte da próxima vez, porém sentia-se vitoriosa de alguma forma, e isso lhe deu forças para encarar o futuro. Éfeso agora era um mundo novo, que precisaria desbravar e dominar sozinha, sem ninguém que a protegesse.

Um dos mercadores que ela havia salvo, um senhor idoso e viúvo que possuía casas comerciais em Éfeso e a quem Akh curou de um perigoso corte na perna após o ataque dos bandidos, convidou-a respeitosamente para hospedar-se em sua residência, oferecendo-lhe emprego como criada e enfermeira, caso ela desejasse permanecer na cidade. Akh achou por bem aceitar, vendo ali uma chance de recomeçar, e despediu-se com lágrimas dos nômades da caravana, que voltariam em breve para o deserto. O velho que a abraçou no dia do ataque, num sinal de reverência e gratidão, presenteou-a com um tapete que ele mesmo tecera durante a viagem, um trabalho delicado e cheio de detalhes como só os mais sábios podem fazer.

- Aqui está representada a história que vivemos a teu lado! - explicou ele, numa voz cheia de paz - Cada cor, cada ponto, cada desenho tem um significado mágico, contando tudo o que fizeste por nós... Obrigado!

Akh chorou muito, cheia de ternura por aquele ancião, sabendo que ele talvez não viveria por muito mais tempo para fazer outras obras como aquela, e justamente por isso seu presente possuía um significado ainda maior para ambos. Todos da tribo agradeceram com gestos de carinho e pequenas lembranças - uma lamparina de bronze, um amuleto entalhado, um anel, uma pele de cabra, um colar de contas - coisas tão simples e que representavam tanto para aquela gente humilde e generosa.

O mercador acomodou Akh confortavelmente num quartinho nos fundos de sua residência, ao lado de um maravilhoso jardim colorido e uma fonte de onde jorrava permanentemente uma água límpida e murmurante. Akh logo viu que vários outros criados habitavam a casa, e tinham tomado conta das coisas de seu novo patrão enquanto ele esteve fora.

Esse mercador era um viúvo rico, com duas filhas casadas e vários netos, e possuía outras casas em Éfeso, todas lindamente decoradas. Mesmo assim, gostava de viajar sempre que podia, talvez para preencher a solidão de sua viuvez, a pretexto de negociar com outros mercadores de cidades distantes. Agora, após o ataque dos bandidos, estava um tanto assustado, e jurou que não viajaria novamente tão cedo. Sua perna ainda doía do ferimento, e o velho andava mancando um pouco, apoiando-se numa bengala. Akh sabia muito bem que ele não necessitava realmente de uma enfermeira e muito menos de outra criada, mas sentiu-se grata pela generosidade do homem, dando-lhe ao mesmo tempo um emprego e um lugar para morar.

Para justificar sua oferta, o mercador explicou que andava cansado de trabalhar, e estava passando o controle dos negócios para os genros e netos.

- Estou velho, está na hora de sossegar este corpo! - dizia ele, com um sorriso maroto - Só não parei antes porque tive medo de ficar só, sem ter o que fazer... Mas esta última viagem mostrou-me que talvez seja melhor viver em paz o resto dos meus dias, do que arriscar-me em aventuras! Para quem não tem mais o vigor dos jovens, resta apenas o consolo da sabedoria...

Como não havia muito o que fazer, pois os outros criados já eram mais do que suficientes para os serviços domésticos, Akh preenchia seus dias caminhando pelo jardim com o velho mercador, ensinando-lhe os poderes curativos de algumas plantas que ele cultivava apenas pela beleza, contando-lhe histórias que ouviu, trazendo-lhe novidades da rua, fiando e tecendo enquanto ele dormia sob o sol da tarde ao lado da fonte, lendo-lhe em voz alta alguns velhos manuscritos que encontrou numa biblioteca empoeirada.

A família do mercador mostrou-se agradecida pela presença dela, cuidando do velho de uma forma que eles aparentemente não tinham tempo ou paciência para fazer. Mesmo os outros criados pareciam não importar-se muito com o patrão, mais ocupados com as próprias vidas e afazeres. Akh, ao contrário, sentia-se bem e em paz naquela casa, ouvindo as histórias da vida daquele homem, rindo de suas piadas inocentes, preocupando-se quando ele acordava indisposto, discutindo política e cultura. Os anos passavam calmos para ela, alheia ao agito constante de uma cidade importante e crescente como era Éfeso. Saía pouco para a rua, não recebia visitas, não tinha amigos pessoais nem dava intimidade aos outros criados. O velho era-lhe companhia mais do que suficiente.

Com os anos, aos poucos a saúde do mercador diminuiu, e Akh assumiu realmente as funções de sua enfermeira. Finalmente, após meses entrevado na cama, o mercador faleceu, e Akh sofreu muito pela perda do amigo. A família do mercador, agradecida por seus anos de serviço, deu-lhe como presente uma casinha com jardim perto do mercado, onde ela poderia até montar uma oficina ou uma loja, e uma grande soma em dinheiro para que iniciasse seu negócio.

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Ásia Menor - Cerca de 2290 a 2265 a.C.

Akh decidiu empregar parte do dinheiro no comércio, abrindo uma loja de ervas e especiarias, e guardou o restante para um dia quem sabe voltar ao Egito, desta vez de navio.

Seu estabelecimento prosperou o suficiente por mais de vinte anos, até que os rumores sobre sua eterna juventude começaram a perturbá-la. A princípio alegava que eram as ervas que a mantinham saudável, mas não podia continuar com a farsa por mais tempo - muitos ainda recordavam-se da fantástica história ocorrida durante sua viagem pelo deserto, e nada pior para desaparecer do que uma lenda, ainda mais quando, após tantos anos, sua personagem principal ainda estava linda e jovem para avivar a memória dos supersticiosos.

Cansada dos olhares desconfiados do povo, Akh decidiu finalmente fechar sua loja e desfazer-se de tudo o que podia, preparando-se para voltar ao Egito por mar. Lá pelo menos estaria novamente em casa, viveria entre seu próprio povo.

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Ásia Menor - 2264 a.C.

Juntando todas as economias, Akh tomou um navio que trasportaria mercadorias até o litoral egípcio, passando por outros portos antes de atravessar o mar aberto.

Os primeiros dias no barco não foram nada fáceis. Akh enjoou bastante, chegando até a pensar em desistir e descer no próximo porto. Não era como viajar pelo Nilo, que apesar de vasto e com fortes correntezas, seguia numa só direção - no mar, o vento e as ondas jogavam a embarcação para todos os lados ao mesmo tempo.

Foi só após vários dias observando os marinheiros, com seu andar jingado mas equilibrado, que Akh aprendeu o segredo. Ao invés de forçarem o corpo para permanecer firmes, eles deixavam-se levar pelo balanço do barco, aproveitando o movimento a seu favor e não lutando contra ele. Com muita força de vontade, Akh aprendeu a fazer o mesmo, imitando-os até conseguir transformar aquele jingado numa atitude inconsciente. Só assim relaxou e finalmente parou de enjoar.

O pior começou quando pararam por apenas dois dias em Halicarnasso para embarcar mercadorias. Akh desceu para passear pela cidade, ainda achando graça em como continuava a sentir o balanço das ondas mesmo estando em terra firme, quando foi assaltada pela presença de um Imortal.

Novamente não reconheceu a vibração de Heka Ma'At, e suas esperanças em tornar a vê-lo estavam na verdade chegando ao fim. Tentou identificar de onde partia o alarme, porém o porto estava tumultuado demais e mal podia enxergar além de alguns metros ao redor. Gente de todo tipo passava de um lado para outro, comerciantes apregoavam suas mercadorias em voz alta, mulheres negociavam preços, marinheiros desembarcavam cargas, bêbados gargalhavam. Em algum lugar, homens cantavam ao som de palmas e tambores. Percebeu que a vibração movia-se - provavelmente o outro, quem quer que fosse, também estava à sua procura.

Akh tentou esconder-se na multidão, e só o que conseguiu foi aproximar-se de onde vinha a vibração. Voltou-se e correu na direção contrária, tropeçando em homens carregando enormes sacos de grãos, gaiolas de aves, verduras empilhadas em barracas. Por alguns instantes a vibração afastou-se, mas logo sentiu que havia mais alguém por perto, um terceiro Imortal!

Tomada de pânico, Akh lutou por voltar ao barco, percebendo com alívio que os dois Imortais ficavam para trás, afastando-se para lados diferentes, e provavelmente nenhum deles a tinha visto. Poderiam até ser Imortais de boa índole, como Imhotep, mas também poderiam ser monstros assassinos como Deasir. Não queria arriscar a sorte desta vez.

No dia seguinte Akh não saiu sequer de sua minúscula cabine. Com certo horror, percebeu ao longe a vibração dos outros Imortais, e imaginou se eles talvez se conheciam. Entretanto, nenhum aproximou-se demais do barco a ponto de descobri-la, disso ela estava certa, e foi com grande alegria que ouviu o capitão dar a ordem de partida. Quanto mais cedo deixasse aquele porto, melhor.

No segundo dia da parada em Kós, entretando, Akh voltou a sentir a presença de Imortais. Eram dois, tinha certeza, e desta vez estavam juntos! Não conseguia saber se eram os mesmos de antes, pois as vibrações estavam confusas. Novamente despistou-os no porto e escondeu-se no navio, tremendo, rezando para que nenhum deles chegasse perto o suficiente para localizá-la. Após quase duas horas pressentindo-os ir e vir na distância, o alarme finalmente desapareceu, e Akh não voltou a senti-los até a partida de seu barco.

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