Térreo: O Inferno


Santa Cecília, Espanha; presente

Fazia muito tempo que Enrique não voltava a essa igreja. Quase se esquecera de como esse lugar era lindo e sereno. Olhou ao redor e saboreou cada detalhe: as paredes de rochas cinzentas, um tanto gastas pelo tempo, cortadas por colunas também de rochas que elevavam-se até o teto, onde havia um enorme afresco: a figura de Cristo radiante no centro, com uma veste cândida de brilho esplendoroso. Ele estava envolto por raios e feixes de luz. Uma aura pálida cobria a figura fulgurante dando uma sensação de imponência enorme. Pisava em uma grama rasteira na qual havia uma cobra morta decapitada, o sangue lavava a terra e as pedras no chão. No céu, uma exuberante casta de anjos e arcanjos envoltos, cada um, por uma seda fina, todos com lanças e espadas na mão. Em suas faces uma mistura admirável: eles estavam prontos para o combate, músculos enrijecidos, gritos que provinham do fundo da alma, mas em seus olhos uma placidez inacreditável, não de um guerreiro, mas de um anjo, mais, de uma criança. O céu era azul-escuro, invadido por tenebrosas nuvens. O altar estava coberto por uma toalha de brim branca encimada por uma vela, também branca, e dois arranjos, com flores do campo e rosas. Enrique escutava seus próprios passos ressoando no piso, enquanto se dirigia a um dos bancos de madeira perto do sacrário. Ele sentou-se e passou mais um tempo a apreciar aquela mistura que era a igreja. Limpou os pensamentos de sua mente e pôs-se a contemplar o crucifixo de bronze localizado acima do altar. Pedia pelo garoto, por sua nova vida que começara hoje, pelas decisões que a partir de agora teria que sabiamente tomar. Pedia também que o garoto fosse maduro o suficiente para agüentar o Jogo e que ele, Enrique, fosse forte e bom o suficiente para colocá-lo no caminho certo. E que não errasse novamente.

Estava muito cansado, ficara a noite inteira a vigiar o sono do rapaz e durante o dia não dormira também, sentia o corpo pesado, fadigado. Mas sentia também saudades do lugar que não visitava há séculos e, principalmente, que tinha de rezar pelo garoto.

Suas pálpebras pesaram de tal modo que foi obrigado a piscar pesadamente.

1559 - Igreja Matriz de Santa Cecília

Enrique lembrava-se de tempos atrás. Sua mãe gostava de vir até Santa Cecília para visitar a enorme feira, durante a festa da Padroeira da cidade, a qual ganhara o nome em homenagem à santa. Mas, depois que começara a guiar romeiros, Enrique ausentara-se das festas anuais. Sua mãe, Isabel Muñoz, sempre vinha a esta igreja e ficava sentada ali por horas. Metade delas empregadas a rezar e as outras a olhar o afresco e toda a arquitetura da igreja. Enrique encostou o cajado, a bolsa de couro e sua espada que estava escondida em meio a suas vestes - seus únicos pertences - em uma das paredes da entrada, tirou o pano molhado de suor que envolvia sua cabeça, num gesto de respeito, e adentrou a igreja. Diferente dos dias de festas, quando ele e sua mãe passavam largas horas dentro dessas paredes soberbas, agora a igreja estava vazia, exceto por um rapaz, sentado nas primeiras filas de bancos de madeira, que chorava baixinho. Enrique sentou-se a seu lado. Era realmente um rapaz jovem, tinha cerca de dezenove anos. Enrique tentava encontrar palavras:

- Linda, não?

O rapaz lhe devolveu um rápido olhar, mas não fez menção de responder. Enrique então continuou.

- A igreja... Quando era criança, uma vez por ano, eu e minha mãe vínhamos para as festas. Só que eu acordava muito cedo, antes dela, e corria para cá, só para ver as frestas de luz que adentravam pelas janelas bem de manhã. Era um espetáculo maravilhoso.

O rapaz olhou-o novamente. Agora Enrique conseguiu ver sua face: seus olhos fundos e quase sem vida, vermelhos devido ao choro, estavam envoltos por grossas olheiras. Sua face era magra e sua pele chegava a estar quase amarela. Seus lábios tremiam levemente. Enrique se assustou. Parecia muito mais um cadáver do que um rapaz. Aquele rosto raquítico fechou-se, seus olhos rodopiaram nas órbitas; o franzino rapaz, então, desmaiou.

- Oh! Deus! - Enrique começou então a gritar - Padre! Padre!

Presente

Seus olhos abriram-se a custo de muita força. Precisava dormir. Enrique levantou-se e pôs-se a despedir-se do lugar. Não sabia se voltaria um dia ou quanto tempo demoraria. Mas tinha certeza de que aquele lugar ficaria para sempre guardado em sua memória. Ele e Ramon...

 

O NOVO ALVORECER
Térreo: O Inferno

Qual não foi sua surpresa ao ver que, à frente do pequeno hotel, aquele estranho homem havia deixado um carro esperando-o. O atendente da recepção estendeu-lhe com um largo sorriso a chave.

O mostrador já marcava 80 Km/h. Juan tinha uma paixão por carros - fazer o motor rugir, a ferocidade com que trocava as marchas, o vento, a velocidade. Tudo o fazia sentir-se muito bem. Já passava das nove horas da noite. Ficara a experimentar o motor por um longo tempo. Pelo menos era essa a desculpa que dava à si mesmo. A verdade é que ele rodava a esmo pensando no que fazer. Se for mesmo verdade o que aquele homem havia dito, ele não poderia ser morto. Sua consciência riu. Estava realmente levando em conta que seus cortes iriam se fechar igual àquele truque? Devia ter batido a cabeça.

Os pneus protestaram com o atrito no asfalto. Uma curva brusca para a esquerda fez com que o carro desse ares à força centrífuga. Andava agora pela parte considerada a mais "barra-pesada" da cidade. Vielas escuras e becos imundos, prédios de poucos andares, com muros pichados, prostitutas e traficantes andavam livremente pela rua. Esse era o cenário, nada convidativo, que formava essa exclusa parte da cidade. Aquela terra de ninguém fora há muito abandonada pelos "bons" cidadãos de Santa Cecília. Juan tentava ignorar, mas não podia. Via em sua mente o olhar das pessoas que ali viviam. Excluídos da sociedade, execrados em seu próprio canto, vulgarizados pelo falso sentimento de comiseração. Como seria viver em um lugar aonde a lei não chega? A verdade é que Juan não apoiava totalmente o sistema e suas leis. Mas isso era um retrocesso social. Não se imaginava indo dormir todos os dias com medo de sua sombra num lugar onde viver, mesmo estagnado, é extremamente perigoso.

Mas toda escuridão tem uma fresta de luz. O letreiro luminoso entorpeceu sua mente. Antes considerava o que estava prestes a fazer como um ato de covardia, um ato contra a honra humana. Porém agora seu sangue pulsava e seu coração batia na velocidade do piscar da luz neon. Sua mente lia as palavras: Granada Prateada - Loja de Armas. Ao ver a vitrine seus olhos brilharam ainda mais. Duas Glock-17. Era perfeito:

- Olho por olho. Dente por dente.

Delegacia da Cidade de Santa Cecília

Estavam no escritório do detetive Júlio. Eduardo e Édina estavam sentados em duas das três poltronas. Na frente dos dois estava Júlio a ver as várias pastas e fotos espalhadas sobre a mesa. O resto do pequeno escritório era preenchido por um arquivo de quatro gavetas, uma pequena estante com livros e um computador sobre uma escrivaninha. Eduardo esfregava os olhos tentando espantar o sono. Édina continuou:

- Acha mesmo, detetive? Sinceramente, eu não. Afinal não há nenhuma prova que os dois assassinatos estejam ligados, aliás, estamos quase sem provas. Continuo com a idéia de que deveríamos guiar duas investigações.

- Mas temos um grande problema. O povo, senhores agentes. Estamos sendo pressionados por todos os lados. Tem a imprensa também. Não quero que pensem que não temos a menor idéia do que fazer.

Édina olhou-o incredulamente. Fez menção em falar, mas Eduardo começou primeiro:

- Senhores, já é tarde. Vamos encerrar nosso expediente por hoje, certo? Vamos passar num restaurante, comemos algo, dormimos, e amanhã continuamos, tudo bem? Acompanha-nos, detetive?

- Tudo bem. - Júlio deixou escapar um assovio mudo, enquanto o corpo relaxava na cadeira - Deixe-me pegar minhas coisas.

Assim que o detetive saiu, eles se entreolharam. Édina começou:

- Acho que não devemos passar daqui. Já temos o bastante e ele dificilmente encontrará mais alguma coisa.

- Ainda acho muito cedo. E se houver mais algum progresso... - Eduardo estava indeciso.

- Não teremos muito tempo. Até os jornais noticiaram nossa presença. Logo mandarão checar. - ela falava imponentemente.

Eduardo assentiu. Detetive Júlio chegou ruidosamente na sala, limpou a garganta esperando que os dois olhassem para ele. Então com um largo sorriso convidou-os a ir. Guardou as pastas no arquivo, trancou-o e também as portas de seu escritório.

*************

Juan continuava a acelerar. Sua mão trêmula movia-se do volante para o rosto constantemente. Enxugava as lágrimas que corriam. No banco do passageiro um embrulho com as duas armas. Seus olhos dilataram-se com a luz de outro carro que vinha em sentido contrário. Depois a escuridão da rua pouco iluminada regressou à sua face. Não sabia o que fazer.

Nove anos atrás

Esperavam o professor chegar. A verdade é que ele estava quase quinze minutos atrasado, talvez não tivessem a primeira aula. Os garotos estavam especialmente exaltados hoje, trocavam tiros em meio ao campo de guerra - a sala de aula - na qual o som que se ouvia era o melhor possível. O som de risos. As meninas ficavam irritadas frente aos gritinhos abafados, aos pulos e àquela guerra imaginária que tomara conta do lugar. Um dos garotos chamou a atenção de Juan:

- Hei! Tome minha granada!

Uma bola de papel voou pela sala. Juan, que desde criança era muito ágil, desviou-se prontamente. A bola de papel continuou seu caminho, indo parar nos cabelos de uma menina recém-chegada na classe. Ela estava quieta e encolhida no canto quanto foi atingida pela granada dos garotos. Juan ficou rubro. Desde que aquela menina - Anne Largos - chegara na classe, queria falar com ela, mas ainda não tinha tido coragem. Aproximou-se dela gaguejando:

- D-Desculpe. N-Não vi que a atingiria, s-senão teria ficado na frente...

Ela abriu um sorriso tímido, por causa da tentativa do garoto de ser cortês apesar de mal conseguir falar.

- Tudo bem. - sua voz doce soou bem baixinho.

Ficaram alguns minutos em silêncio. Ela engoliu em seco e continuou:

- Mas não devia brincar de armas. Elas matam. E algo assim não pode ser divertido. Nem por brincadeira. Os homens deviam conversar e não atirar.

Ele ficou ainda mais vermelho. Haviam dito que a nova garota era muito inteligente, mas ela falava como se fosse um adulto. Ela fez sinal para a cadeira localizada a seu lado. Ele sentou e conversaram até a guerra terminar.

Presente

Não era aí que deveria chegar. Não podia ser assim. O limite havia sido alcançado e teria que terminar ali. Os pneus gritaram novamente. Juan começou a guiar o carro até o bairro onde os armazéns da cidade ficavam. Os assassinos estavam lá. E isso iria acabar hoje.

Só que não desse jeito.

Estava em uma rua. As laterais dos grandes barracões com números de identificação pintados em azul preenchiam quase todo o ambiente, que só mudava vários metros depois, com uma casa, onde a rua terminava, e que servia de administração para os armazéns. O único som que se ouvia era o do motor e da profunda respiração de Juan. Lentamente ele levou a mão até o cinto de segurança e o soltou. Agora tremia da cabeça aos pés. O carro, mesmo parado, tremia também devido ao trabalho do motor que permanecia ligado.

O carro patinou com um súbito movimento. Juan acelerava o quanto era possível. O indicador de velocidade começou a subir gradativamente. 110 Km/h. Os galpões agora corriam ao lado de Juan. E eram rapidamente ultrapassados. Agora não poderia mais parar. Era o fim. 140Km/h. Anne...

O carro atravessou a parede da administração. O corpo de Juan voou pelo pára-brisas, indo parar alguns metros à frente do que havia sido o carro. Vidro e aço retorcido voaram para todas as direções. O som monstruoso da pancada fez-se ecoar longe. E tão célere como começou ele parou. Assim como o corpo inerte de Juan.

*************

Haviam se passado alguns minutos. A cabeça de Juan continuava a rodar. Estava em frente a um galpão. O ar da noite entrava fundo em seus pulmões e arraigava a sensação de medo que o havia tomado. Não sabia o que era tudo aquilo e não sabia como terminar. Segundo o bilhete que o rapaz da bandana lhe havia entregue, os dois garotos estavam aí. Encostou-se, precisava pensar, e ficou a ouvir as vozes que vinham de longe, de dentro daquele galpão.

Galpão 32

Daniel acordou em um sobressalto. Havia cochilado na poltrona velha daquele fétido galpão. Tirou os pequenos óculos e esfregou os olhos, e pôs-se a mascar outro chiclete. Seu companheiro - o Touro - andava de um lado para o outro rodando a corrente que normalmente ficava em sua cintura, pronta para uma eventual briga. Touro pisava pesadamente e volta e meia chutava o ar. Assim que percebeu que o companheiro havia acordado ele parou e tirou a bandana que prendia-lhe o cabelo loiro. Enrijeceu a face e num gesto largo coçou a cabeça. Daniel ainda não havia recolocado os óculos escuros e olhava fixamente para Touro, este extremamente irritado:

- Pô, que foi?

- Nada! - Daniel, que era mais franzino, parou diante da estrondosa voz de Touro - Acho que devíamos ir embora.

- Está louco? E a grana?

- Já passou duas horas, acho que ele num vem.

- Num pode ser. Aquele F.D.P. prometeu.

- Você devia ter pedido um adiantamento.

- Com aquela espada na garganta? Devíamos é ter pegado a grana dos dois riquinhos. Vendido o carro e ter sumido daqui. Mas aquele desgraçado mandou não pegar nada.

- Também mandou não tocar nela. E você a estuprou e matou. Era só pro moleque. Deve ser por isso que ele não veio.

- Grande coisa! Foi ótimo ver a cara dele espumando de raiva, enquanto eu aproveitava da garotinha. A verdade é que ela estava gostando. É! Ela adorou. Depois foi só estourar os dois. Um tiro e ela estava gemendo...

O galpão foi invadido por um súbito barulho. A porta principal se abrira. O depósito estava repleto de caixas prontas para serem despachadas, algumas empilhadeiras, máquinas de encaixotar. O lugar cheirava a mofo e óleo. Via-se também alguns ratos e baratas pelo chão. Os dois prontamente sacaram suas armas. Touro largou a corrente no chão e fez sinal para que Daniel se preparasse.

- Quem está aí? - Touro gritava ferozmente.

Nada se ouviu. Eles começaram a andar até a porta em meio ao imenso galpão. Contra a luz da porta aberta viam uma figura que ao levantar as mãos fez o galpão ser invadido por cortantes sons. Vários tiros. Os dois se protegeram atrás de uma pilha de caixotes e também começaram a atirar. A figura correu para dentro e para o lado contrário de onde eles estavam, e perdeu-se entre os caixotes. Ao agachar Juan arrancou do peito o resto do pano que já fora sua camisa e o casaco. Só haviam restado alguns poucos ferimentos que já não estavam nem mais sangrando. Olhou as Glock-17 novamente e falou para si mesmo:

- Isso termina hoje. De uma forma ou de outra. - em sua voz, todas suas dúvidas desapareceram, o único resquício que havia era o de ódio. E o ódio não estava só. Juntavam-se o ódio e a determinação. E tudo que acabara de ouvir era o suficiente.

- Pra onde ele foi? - disse Daniel - Filho...

Touro mandou que ele se calasse com um ríspido movimento. Apontou o lado contrário indicando, através de gestos, que Daniel fosse até o corredor que atravessava o galpão. Touro foi-se pelo outro lado, o mais furtivamente possível pelos caixotes.

Seu corpo grande, que fazia jus ao apelido de Touro, movia-se agachado. Mantinha o braço direito esticado, apoiado pelo esquerdo. O silêncio imperava novamente e, contribuindo com o silêncio, Touro controlava a respiração para diminuir a adrenalina e o nervosismo. Quem seria tão estúpido para entrar sozinho e confrontar os dois? Ele parou. Era como se o tempo também tivesse parado. Cada segundo se arrastava em sua longa demora. E tudo indicava que isso não acabaria agora. Nada, somente silêncio, tudo isso o estava agoniando. Um barulho próximo do chão. Ele estava perto e vinha se arrastando. O filho da mãe agora está morto.

Touro se precipitou e atirou no chão. Algumas gotículas de sangue espirraram, para o pavor de Touro. Acertara em um rato. Agora mostrara sua posição. Teria que tomar cuidado para não ser pego pelas... Nem teve tempo de pensar na palavra "costas". Na sua frente, um vulto acertou-o em cheio no rosto com um chute. O grande Touro cambaleou para trás com o golpe, não tendo sequer tempo de perceber o outro chute destinado à sua mão direita, que fez seu revólver voar alguns metros para longe. Raciocinando rápido, Touro desferiu um soco lateral com o braço esquerdo, sendo defendido pelo antebraço de seu atacante. Touro sentiu-se mais confortável. O braço que foi usado para a defesa de seu golpe era o mesmo que empunhava o revólver. Ele estaria momentaneamente imobilizado. Mas infelizmente se esquecera do outro. Esquecera até perceber os dois socos seguidos deferidos pelo punho esquerdo do atacante, enquanto o outro mantinha a arma para cima, travando o braço esquerdo de Touro.

Antes que pudesse esboçar outra reação, Touro viu outro chute sendo desferido por seu oponente. Chute que uniu sua mandíbula, fazendo seus dentes baterem uns contra os outros. Com a força do golpe a cabeça de Touro foi jogada para trás, fazendo com que todo o seu corpo despencasse. Logo Touro já estava virando-se à procura da arma, que estava jogada mais à frente. Usou toda sua força para se esticar e alcançar o revólver, virar e em seguida disparar. Em nada. Atirara para o teto, já que o atacante não estava mais lá. Com a mão limpou o canto da boca, que fora atravessado por um corte que sangrava. Mal tivera tempo de levantar e ouviu outro som atrás de si. Com toda a agilidade possível ele se virou, apontando a arma.

Agora quem estava lá era Daniel. Estavam os dois com as armas apontadas um para o outro. Touro deixou que o ar escapasse, num sinal de alívio ao ver a cara esquelética de Daniel. Alívio que durou pouco. Quando perceberam, uma pequena pilha de caixotes estava sendo derrubada sobre eles, desarmando a ambos. Escapando das caixas, Touro precipitou-se para cima do garoto franzino sem camisa, socando em direção ao seu rosto.

Qual não foi sua surpresa ao ver que o garoto, dando um passo lateral, fez o soco passar ao lado de sua face. Por causa disso, Touro foi obrigado a dar um passo para frente, para não cair com a violência do próprio golpe. Ficou a menos de dois palmos do o garoto que o atacava. Seus olhos se cruzaram e Touro estremeceu. O garoto tinha um olhar diferente de tudo que já tinha visto na vida - estava possesso. Tudo o que seus olhos irradiavam era o ódio puro. Touro era acostumado com o medo. Sua vida sempre fora cheia de turbulências, mas pela primeira vez estava apavorado.

Outro tiro ecoou no barracão. Touro caiu ajoelhado ao chão gritando, desesperado com o buraco em sua perna. Juan mirava a cabeça do grandalhão. E novamente tiros foram ouvidos. Tiros e um grito provindo de um corpo que tombava ao chão.

Daniel havia descarregado todo o resto do pente, fazendo o corpo de Juan ir parar inerte atrás de outros caixotes. Então o tempo novamente se acelerou. Com ele os gritos do Touro, que se faziam ouvir pelo barracão. Passaram-se alguns minutos até Daniel se tocar e voltar a si. Viu a figura de seu companheiro estendido no chão, se contorcendo em dores, pedindo ajuda, e a poça de sangue que o envolvia.

Daniel tirou a camisa, rasgou as duas mangas e, fazendo uma bola de pano com elas, colocou-as na boca de Touro para que parasse de gritar. Olhou o ferimento. Era incrível que a bala não tivesse arrancado a perna dele. E o que era mais incrível é que, mesmo disparada à queima-roupa, ela não tivesse ultrapassado e sim ficado alojada na perna. Daniel levantou-se e foi até perto das máquinas a procurar uma caixa de ferramentas. Depois de alguns minutos estava voltando com um alicate de bico fino. Tirou o isqueiro e pôs-se a desinfetar a ponta do alicate, diante dos olhos arregalados do Touro. Olhou-o de modo frio e disse:

- Agüente! Vou tirar a bala e vai doer muito.

Depois de retirar a bala, usou o resto da camisa para estancar o sangue que corria da perna de seu companheiro. Só então sentou-se fatigado ao lado de Touro, que já estava menos agitado. Tirou-lhe os panos da boca:

- Eu conheço esse filho da mãe! Eu já o vi.

- Agora pouco importa. Ele está com uma tonelada de chumbo pelo corpo. Não vai sair de lá...

Olhou para onde o corpo havia caído. E não havia mais nada. Só os caixotes e manchas de sangue. Daniel prontamente levantou-se, apenas para voltar ao chão com um golpe em suas pernas, fazendo com que caísse de joelhos. Os dois bandidos se voltaram e começaram a tremer. Ele estava novamente de pé. Em seu tórax arfante somente alguns arranhões, e em sua face um cansaço imenso estampado. Em suas mãos, as duas armas e o destino.

- Você... - Daniel tremia e gaguejava - Foi você que nós matamos ontem e hoje novamente. Eu dei um monte de tiros. E aquele sangue? E o sangue? Você está sem camisa... Não pode ser. Não pode ser!

- Meu bom Deus! - Touro balbuciava sussurrando.

Os olhos de Juan ainda vertiam ódio. Mantinha as armas apontadas para ambos:

- Vocês tinham a vida dela nas mãos. Estupraram-na. Mataram-na. Atiraram em mim. Vocês vão morrer agora.

Juan foi respondido com pedidos desesperados de perdão e clemência. Mas agora era tarde. Eles poderiam tê-la poupado.

- Eu ouvi vocês. Quem mandou que isso acontecesse?

- Não sei. Ele tinha uma espada, prometeu grana alta, disse pra estarmos aqui hoje, mas ele não apareceu. Eu não sei mais nada, juro!

Seus dedos se moviam lentamente, quando ouviu em sua consciência:

- Olha como são estúpidos! Todos eles. Com suas armas e guerras. Ninguém é melhor que ninguém. Ninguém deve tirar a vida de ninguém. Quando o ódio e a vingança acabarem, poderemos viver felizes.

Reconhecia a voz. Anne. Não podia fazer nada. Ela estava certa. Não poderia fazer isso. Não deveria ser como eles. Abaixou lentamente as armas.

- Eu sou um demônio, um fantasma, um monstro. Estarei vigiando vocês por toda a sua vida e sempre que vocês estiverem em um lugar que tenha sombras eu estarei com vocês. Se fizerem qualquer coisa, se tocarem em qualquer pessoa novamente, eu juro: não irei abaixar a arma. Lembrem-se de mim até o final de suas vidas, todas as noites, senão eu virei buscá-los. E vocês irão implorar pela morte.

Dizendo isso, Juan virou-se e vagarosamente saiu daquele barracão. Sem saber que tinha lhes implicado uma maldição maior que a morte. O inferno do terror na terra. Agora por toda a vida eles terão medo. Até de suas sombras. Nunca mais poderão dormir em paz. Esse foi o grande castigo. Porém fora uma recompensa para Juan. Agora teria que decidir seu futuro. Sabia onde deveria ir. Precisava conversar com ela.

*************

Agradecimentos:
Aka Draven MacWacko
Thiago Salviatti

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