Três Assuntos

Atenas, Grécia - 400 a.C.

O velho puxou a lamparina mais para perto e afastou o tinteiro com a última de suas varetas de escrita, que também começava a desgastar-se na ponta de tanto uso, como as outras espalhadas pela mesa. Apertando os olhos, alisou distraidamente a ampla calva e começou a reler o que havia escrito para seu diário.

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"Hoje, como de costume, não encontrei nenhum assunto a observar na região, e tampouco recebi informações de meus correspondentes. Aliás, há meses não recebo informações úteis, apesar de antigamente eu costumar escrever várias cartas por dia, todos os dias, para dar conta de minha correspondência com a Sociedade. Talvez os Observadores de hoje estejam preguiçosos... Ou a Sociedade tenha gente demais para tão poucos assuntos. Antigamente tínhamos muito o que fazer, e não podíamos nem pensar em preguiça. Éramos poucos, os assuntos eram novidade para nós e nunca sabíamos como ou onde encontrá-los. Era uma verdadeira arte reconhecer um assunto verdadeiro, por isso a maior parte de nosso trabalho limitava-se a ler relatórios alheios, copiá-los, pesquisar textos antigos em buscas de pistas, debater teorias em nossas infindáveis cartas e esperar o tempo passar, na esperança de que um assunto genuíno aparecesse em nossa área por acaso, nem que fosse de passagem. Como os boatos corriam entre nós naquela época! Todos queríamos relatar a descoberta de um novo assunto, algum que nunca tivesse sido registrado pela Sociedade, e por isso os enganos eram frequentes. Houve um ou dois casos deliberados de fraude, porém a Sociedade soube punir exemplarmente os culpados, e desde então todos passamos a tomar mais cuidado com nossos relatórios. Foi melhor assim.

Nesta parte do mundo os assuntos mudam muito de lugar por causa das guerras. A Sociedade não gosta de perder Observadores, por isso às vezes dependemos mais de espiões e informantes do que de nossos próprios olhos e ouvidos. Dizem que em outras partes, inclusive no Oriente, também é assim. Ou até pior, dependendo do assunto que estudamos. Muitos são por si só perigosos, há histórias de Observadores assassinados! Eu nunca tive esses problemas. Meu amigo que pesquisava a lenda do "morto que anda" encontrou algumas coisas interessantes em textos orientais que a Sociedade lhe enviou, mas nunca conheceu seu assunto nem nenhum outro, e reclamava de tédio. Ele era um excelente correspondente, é uma pena que tenha sumido durante aquela viagem! Com certeza a Sociedade deve ter encontrado os últimos relatórios dele, e guardou-os em segurança. Não sei se o trabalho dele levaria a algum lugar, afinal nem ele parecia ter certeza de que esse assunto realmente existiu. Pode ter sido uma velha fraude ou mais um engano, dos tempos em que os Observadores do Oriente começavam a recrutar gente por aqui... Quem sabe? Nunca me interessei a fundo por essa lenda em especial, eu já tinha muito com que ocupar-me. Meu amigo, como eu queria ter-lhe dito a verdade!

Eu sozinho dei conta de três assuntos ao mesmo tempo! Ninguém nunca soube disso, uma pena. Nunca vou esquecer-me do dia em que um homem misterioso aproximou-se, após ouvir um de meus discursos na ágora, e pediu-me para conversar a sós. Minha primeira reação foi gargalhar desenfreadamente diante do que o homem me disse, até que o estranho, após mostrar-me um exótico medalhão de prata, exigiu-me que jamais divulgasse o teor daquela conversa a ninguém, ou ambos morreríamos. Aquilo deixou-me pensativo por dias, e de repente o homem voltou, trazendo-me vários rolos de textos estrangeiros e dois acompanhantes da Sociedade para comprovar sua história. Os textos eram realmente antigos, isso era visivelmente óbvio, e seu conteúdo não poderia ter sido mais desconcertante. Aquilo mudou minha vida - mudou meu mundo todo - para sempre. Como eu poderia adivinhar que existissem assuntos assim? Sim, porque ao contrário do que alguns de nós acreditam, eu sei que eles são humanos. Quem alega o contrário nunca conheceu um assunto de verdade, e eu estudei três ao mesmo tempo, acompanhei-os intimamente por décadas! Pensem o que quiserem, eu sei o que vi. Nunca contei isso a ninguém, mas eu sei.

Por isso nunca contei. Se tivesse contado, logo todos os Observadores do mundo estariam enfiados em Atenas, desesperados para conhecer os assuntos pessoalmente. Era provável que algum idiota tentasse aproximar-se deles, e aí estaríamos perdidos. Um dos assuntos sabia sobre os Observadores, é verdade, mas nele eu confiava mais do que confiaria em meu pai. Ele salvou-me a vida quando adoeci daquela febre estranha que nenhum médico entendia, e que em poucas horas me fez delirar. Se não fossem as ervas que ele me trouxe prontamente, eu decerto não teria resistido. Era envenenamento por alguma comida estragada, ele disse. E foi sem dúvida sua discrição, vindo visitar-me todos os dias para tratar-me em segredo, que impediu que falassem de minha doença. Nem a Sociedade soube o que aconteceu pois, se soubesse, teria me afastado das pesquisas que eu realizava na época. E eu jamais teria sido respeitado depois em Atenas como político ou como mestre filósofo - tomariam-me por um louco qualquer que fala asneiras, comentando entre risos que um dia a febre privou-me da razão. A ele eu devo minha credibilidade, minha saúde e minha carreira. Como eu poderia trair alma tão generosa?

Eu nunca descobri como ele travou contato pela primeira vez com a Sociedade. Desconfio que no passado alguém, em algum lugar, falou demais. Porém foi vindo tratar-me da febre que ele soube que eu era um Observador. Ele viu meu medalhão e deve também ter visto algum dos textos que deixei descuidadamente no outro escritório quando adoeci. Mas isso hoje não importa mais. Ele não tinha receios ou ressentimentos contra a Sociedade, como eu temia, nem rompeu nossa amizade. Ao contrário, ele não só protegeu meus segredos como ainda revelou-me que era um assunto dos mais antigos e lendários que a Sociedade já registrou! E se antes discutíamos vagas teorias morais e científicas, então começamos a discutir a vida dele, ou melhor, a história da humanidade, do ponto de vista de uma testemunha! Aprendi coisas que a Sociedade jamais acreditaria. Nunca imaginei que pudéssemos ter tais diálogos! Uma pena que nunca pude transcrevê-los na íntegra... Não seria prudente.

Minha surpresa foi ainda maior quando ele contou-me que eu conhecia há tempos outro par de assuntos - um casal! E, pelo que ele me disse, um casal raríssimo, porque os dois tinham sido criados desde pequeninos como se fossem irmãos. Esses não sabiam sobre a Sociedade, e meu salvador, em nova prova de sua amizade por mim, preferiu não revelar-lhes minhas atividades secretas. De acordo com o que consegui pesquisar discretamente nos arquivos da Sociedade, realmente não há nenhum caso de assuntos irmãos. Ou melhor, até hoje não registramos nem mesmo um bom punhado de assuntos fêmeas! E eu não só conhecia uma, como ela tinha um irmão e eles conviviam amigavelmente com uma lenda viva! Três assuntos pacíficos, milenares, quase desconhecidos e ainda por cima raros! O que mais um Observador poderia desejar?

Se eu um dia tivesse revelado isso, a Sociedade me expulsaria como lunático ou fraudador. Ainda acho que fiz bem em ter sido fiel a meu amigo e salvador, falsificando os relatórios. A Sociedade simplesmente desabaria diante desses três assuntos, e eu poderia até ter sido condenado à morte por conviver com eles. Como eu poderia ter adivinhado? Eu os conheci antes de ser convocado! É verdade que hoje não tenho a mínima idéia de por onde eles andam, e até meu salvador não me escreve há meses. Mas creio que estejam bem, pois ninguém ainda reportou nada sobre nenhum dos três. Isso me alegra, mesmo que eu sinta muita falta deles.

Assim, para a Sociedade, tudo segue em paz, pelo menos neste aspecto de minha vida. No aspecto público, minha carreira como mestre está por um fio, como mais de uma vez esteve minha carreira política, no passado. As falsas acusações contra mim crescem a cada dia, e não sei aonde isso me levará. Acredito que, quando souber das minhas atuais dificuldades, meu amigo e salvador me mandará notícias suas. Ele sempre sabe quando preciso de seu apoio, e nunca faltou-me. Meus discípulos me defendem como podem, porém eu preferia que não o fizessem com tanta veemência, principalmente Aristocles. Estouvado, ele não percebe que, ao defender-me, só piora minha situação. Ele chegou a propor-me que viajasse para longe, mas não posso aceitar isso, seria fugir de minhas responsabilidades! Quando lhe peço que seja mais comedido, ele pensa que estou a preocupar-me com sua vida, quando na verdade preocupo-me também com meus assuntos e com a Sociedade, mas isso ele não sabe. Ele sempre foi meu aluno mais brilhante, certamente terá um belo futuro. Por isso nomeei-o meu herdeiro também, sem prejuízo de meus filhos verdadeiros. Meu testamento agora inclui uma ordem para que Aristocles seja guardião de meus textos e somente ele possa ter acesso a meus relatórios secretos. Sei que vou chocá-lo com esses relatórios. Ele julga que pode vencer tudo com sua grande filosofia, e não imagina que eu mesmo perdi muito da confiança no que um dia lhe ensinei. Se ele soubesse o que eu vi! Mas um dia ele saberá, e confio que seu amor por mim o levará às conclusões certas. Foi para isso que ensinei-lhe tanto!"

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Com um suspiro, o velho abandonou os textos e sorriu tristemente para a parede. À sua frente, num antigo mural que começava a rachar com a umidade, as figuras desbotadas de um afresco pareciam ganhar alguma vida sob a luz trêmula e amarelada. Pouco importava-lhe que estivessem perdendo a cor - ele próprio já estava lentamente perdendo a visão -, pois as imagens continuavam nítidas em sua memória como se tivessem sido pintadas ontem. Tinha encarado-as por tantos e tantos anos que, se fosse um pintor tão bom quanto seu amigo Paneno, seria capaz de reproduzi-las de cabeça, tamanha era sua familiaridade com elas. Por isso nunca quis que as apagassem ou substituíssem por outras. Aqueles eram seus assuntos, e ficaram exatamente como ele tinha pedido que Paneno os retratasse. Ninguém sabia que essas imagens existiam, porque ficavam escondidas em seu escritório secreto, e Paneno nunca contara a ninguém que as tinha feito. Ah, saudoso Paneno! Aquela talvez tivesse sido sua obra mais bela.

A pintura, hoje maculada por fuligem, bolor e alguns pontos descascados, mostrava o irmão de Paneno, o renomado Fídias, de costas e com os braços abertos diante do gigantesco Partenon em obras, como se quisesse oferecê-lo aos céus. Fídias sempre fora dado a gestos grandiosos, e o irmão retratara-o fielmente em sua expansividade dramática, chegando ao detalhe de colocar um cinzel em sua mão direita e um esquadro na esquerda. Junto ao escultor e arquiteto, um jovem alto e esguio, com longas madeixas negras, estava visível de frente e trazia compridos rolos de papiro sob um dos braços. Com a mão livre estendida, ele parecia convidar generosamente a que contemplassem a maravilhosa obra. O rosto dele estava voltado para algumas pessoas ligeiramente à sua esquerda, uma mulher loura e um homem de barba e cabelos negros. A mulher, uma jovem de tranças enroladas na cabeça e enfeitadas com flores - Paneno adorava pintá-la com flores nos cabelos, parecendo uma ninfa - , tinha as mãos postas em sinal de admiração. Ao lado dela o homem de barba trazia braceletes de prata em ambos os braços musculosos, e um ramo de ervas numa das mãos. Por entre as imensas colunas inacabadas podia-se ver os escravos trabalhando duro para cortar, polir e esculpir as pedras de mármore, carregando ferramentas ou puxando cordas para erguer os pesados blocos.

O velho sabia o nome das outras três pessoas junto de Fídias, pois conhecera-os praticamente ao mesmo tempo, numa situação não muito diferente da mostrada na parede. O arquiteto falecera há três décadas, mas os outros continuavam vivos e exatamente iguais ao que eram quando uma cena parecida com a da pintura aconteceu, há mais tempo ainda. Eram seus três assuntos - três humanos Imortais, e entre eles estava seu salvador. Na época o velho não imaginava quem eram, só descobriu mais tarde. Era possível que acabasse percebendo sozinho um dia, porque o casal permanecera tempo demais na cidade e sua eterna juventude começava a despertar rumores invejosos justamente quando eles sumiram, fugindo da grande guerra contra Esparta. Porém a confissão de seu salvador permitiu-lhe viver conscientemente entre seus assuntos por um bom tempo antes da guerra, e essa glória secreta ninguém poderia negar-lhe.

Com um sorriso torto, o velho retomou os textos que acabara de escrever. Como tantos outros, aqueles também desandaram para confissões íntimas, portanto não podia enviá-los a seus superiores. Certamente apenas abandonaria-os junto com a pilha dos muitos relatórios que nunca despachara. Não tinha coragem de destruí-los, preferindo acumulá-os para que Aristocles os lesse após sua morte. O rapaz era inteligente e saberia o que fazer com aquilo tudo. Sim, ele era de sua inteira confiança. Era bem provável que um dia um homem misterioso convocasse Aristocles para uma conversa, como um dia ele próprio tinha sido convocado, mas pelo menos desta vez não haveria surpresa. Talvez houvesse um escândalo, se o rapaz decidisse divulgar o que estava naqueles documentos, ou talvez a verdade permanecesse trancada ali, naquele escritório secreto. De qualquer forma, o velho a esta altura já estaria morto e nada mais poderia afetá-lo.

Puxando a lamparina ainda mais para perto, o velho espremeu novamente os olhos e, coçando o nariz arrebitado, dedicou o relatório a Aristocles, chamando-o carinhosamente pelo eterno apelido - "para Platão, de Sócrates". (1)

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Notas explicativas:

1 - Sócrates foi oficialmente acusado de perverter a juventude com suas idéias e Platão, seu aluno mais famoso, foi um dos que mais saíram em sua defesa. Percebendo que o processo jurídico contra o mestre poderia acabar mal, Platão e um grupo de outros alunos propuseram a Sócrates que fugisse num barco que tinham preparado, porém o filósofo recusou, acreditando que enfrentar o processo até o fim seria seu mais importante exercício de cidadania, moral que ele tanto pregava. Durante o processo Sócrates não defendeu-se como poderia ter feito, alegando que um espírito protetor, que acompanhava-o a vida toda, aconselhou-o a abster-se sobre certos assuntos. Poucos historiadores comentam a lenda desse "espírito conselheiro", mas é sabido que o filósofo dizia tomar suas decisões mais importantes baseando-se em mensagens misteriosas dessa entidade. Assim, Sócrates acabou preso e condenado à morte em 399 a.C., sendo forçado a beber cicuta. E o verdadeiro nome de Platão era Aristocles, sendo que o apelido, pelo qual ficou conhecido através da História, era devido a seus ombros muito largos.


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