Uma Alma Despedaçada


Mediterrâneo - 2264 a.C.

Quando procurou o irmão para o jantar, Akh descobriu que ele já havia descido e estava conversando com Nurit na sala, com Pyion aboletado em seus joelhos. Heka havia dito que não daria jantares como os de Katsambas, afinal Mileto era uma cidade maior e aqui ele era um entre vários outros mercadores bem-sucedidos, não havia lugar para politicagens particulares. Akh viu do alto da escada como o menino brincava com a longa trança de Heka, exatamente como ela mesma gostava de fazer com o pai ou com o próprio irmão, quando criança, e sentiu ao mesmo tempo um misto de ciúme e de orgulho por Heka.

Nurit foi a primeira a perceber sua chegada e voltou-se sorridente para cumprimentá-la. Akh sorriu em resposta e imediatamente sentiu-se estúpida, pois Nurit não poderia ver seu rosto. Murmurando um cumprimento formal, Akh deixou-se ficar perto de uma janela, enquanto Nurit sumia discretamente com Pyion pelo corredor. Heka ficou observando-os com um olhar triste, depois voltou-se para a irmã com um sorriso forçado:

- O jantar está servido! - disse, com falsa jovialidade - Aceitas mais vinho?

- Onde está Caulos? - arriscou Akh - Ele não jantará conosco?

- Ele esteve aqui ainda há pouco, avisou que precisará passar a noite na casa de um tio doente! - Heka deu de ombros, oferecendo uma taça cheia à irmã - Amanhã cedo ele estará no depósito e poderás conhecê-lo. Hoje jantaremos a sós!

Akh aceitou o vinho e aproximou-se da mesa ricamente posta, com travessas de prata e terrinas de porcelana. Heka falava sobre amenidades que ela fingia escutar, e logo puseram-se a comer. O vento fresco trazia o cheiro do mar misturado com o perfume das flores do jardim, prenunciando chuvas. Akh reparou que ainda não estava completamente acostumada à chuva, uma coisa que nunca houve no Egito, e comentou isso com o irmão. Heka desandou a falar de tempestades que havia enfrentado no mar e de lugares que conheceu onde chovia quase diariamente no verão, fazendo questão de preencher o tempo do jantar com conversas. Akh percebia que ele tentava a todo custo mostrar-se tranquilo e bem-disposto, principalmente quando Nurit aparecia na sala para certificar-se de que tudo estava conforme ele desejava.

Pyion entrou correndo algum tempo mais tarde, pulando ao pescoço de Heka para dar-lhe boa noite e beijá-lo carinhosamente. Nurit chamou-o da cozinha e logo o menino desapareceu, despedindo-se educadamente de Akh. O olhar de Heka entristeceu-se por alguns instantes ao vê-lo sair correndo pelo corredor e Akh não resistiu mais:

- Tu amas este menino, Heka Ma'At! - comentou ela com doçura.

Heka encarou a irmã por alguns instantes, sem saber o que dizer. Akh arrependeu-se de tê-lo pressionado e tentou iniciar um assunto diferente, porém logo Heka interrompeu-a com um gesto.

- Não adianta, minha irmã! - sorriu ele com tristeza - Agradeço-te por ter fingido acreditar em minha tagarelice fútil, amo-te ainda mais por isso! Perdoa-me se tenho agido de forma tão estranha e tão misteriosa para contigo, mas minha alma anda por demais atormentada por tantas coisas que nem sei como lidar com elas, muito menos como contá-las a ti...

Akh agarrou a mão dele por sobre a mesa, tranquilizando-o. Heka bebeu um longo gole de vinho antes de falar novamente, a voz pesada de tristeza:

- Nurit confessou-me agora há pouco que está grávida novamente... Sem conter uma exclamação de pesar, Akh correu a abraçar o irmão. Heka aceitou o carinho, mas logo afastou-a com delicadeza. Sabia que, se continuassem assim, ele seria incapaz de deter as lágrimas e Nurit acabaria por perceber. Akh não conseguiu tocar mais na comida e via que o irmão havia perdido definitivamente o apetite. Quando Nurit voltou à sala, Heka pediu-lhe que retirasse o jantar e deixasse apenas vinho suficiente, dispensando-a com carinho para que fosse dormir.

Depois de retirar a última bandeja, sempre com seu jeito tateante mas seguro, após toda uma vida de convivência com a cegueira, Nurit despediu-se e beijou-o respeitosamente na testa. Nesse instante, Akh pressentiu como Heka esteve a ponto de trair-se. Tudo o que ele desejava era poder tocá-la, beijá-la, demonstrar o que realmente sentia. E Nurit, inconscientemente, bloqueava-o com seu respeito e discrição, jamais imaginando o que se passava no coração daquele homem.

Na verdade, como patrão, Heka teve certos direitos sobre a empregada quando ela era solteira. Era comum atualmente que os patrões dormissem com serviçais, mesmo que elas fossem mulheres livres, desde que elas trabalhassem em sua casa, e na maioria das vezes o faziam até com o consentimento das próprias esposas e a aceitação das empregadas, que não raro julgavam tal procedimento um favor por parte do amo. Até onde Akh sabia, Nurit nunca fora escrava, porém Heka perdeu qualquer poder sobre ela no momento em que permitiu que ela se casasse. Heka sempre fora fervorosamente contra qualquer tipo de violência ou desrespeito contra mulheres, ainda que fossem escravas ou prostitutas. Aliás, como Akh, ele abominava a escravidão. Heka só dormiria com uma mulher se ela o permitisse, e pelo visto Nurit jamais lhe deu tal oportunidade.

Pela forma como o irmão encheu novamente as taças com vinho, Akh compreendeu que ele teria uma longa noite pela frente. Sempre que ficava entediado, deprimido ou contrariado, Heka passava a noite em claro remoendo seus pensamentos. Quando eram jovens em Abtu, após a morte do pai, ele ficava horas sentado num banco no quintal nos fundos da casa, encostado à parede e olhando as estrelas. Nos séculos em que vagaram pelo deserto, não raro ele saía sozinho à noite no escuro, quando pensava que a irmã estava dormindo, para vagar silenciosamente pelas dunas. Em Saqqara, ao descobrir a casa da alegria com Imhotep, Heka ia beber com as amantes e voltava invariavelmente de madrugada, exaurido. Akh nunca o pressionou ou perguntou seus motivos, sabia que o irmão usava esses momentos para desabafar. Quando fugiram de Mênfis e ele não tinha mais as moças da alegria para ajudá-lo a esquecer os problemas, Heka tornou-se insuportavelmente irrequieto, e muitas vezes bebia sozinho na sala depois que a irmã e o cunhado tinham ido dormir, ou saía no meio da noite pela cidade, como um fantasma, até finalmente decidir partir e desaparecer por séculos. Em Katsambas, quando todos beberam até cair, foi a primeira vez que Akh compartilhou uma noite de desafogo do irmão, e só agora ela dava-se conta disso.

- Queres conversar? - sussurrou Akh, vendo como ele permanecia em silêncio, o olhar perdido sobre a mesa vazia - Podemos sentar num desses teus sofás e passar horas falando bobagens...

Heka permitiu-se um sorriso triste. Levantando-se pesadamente, carregou a taça e a jarra de vinho para uma mesinha de ébano junto a um dos sofás, dispostos elegantemente perto das janelas na ampla sala atapetada. Akh apagou a maioria das lamparinas penduradas nas paredes e acomodou-se num sofá com vista para o jardim, enquanto Heka jogava-se sobre uma pilha de almofadas, de costas para uma das janelas, cruzando as pernas esticadas sobre um tapete no chão. Nenhum dos dois dizia nada, bebericando o vinho e apreciando o silêncio. Contra a luz da lua, Akh percebeu que o irmão desfazia a longa trança e soltava os cabelos sobre os ombros, displicente. O cheiro das ervas que ele usara no banho espalhou-se suavemente pela sala, levado pela brisa que entrava pela janela atrás dele. Após quase meia hora, desfazendo-se das sandálias com um gesto preguiçoso, Heka arriscou uma pergunta em tom quase infantil:

- Fala sinceramente, Akh, tu me achas tão feio assim?

Ela não conteve uma gargalhada e, se estivesse mais claro na sala, teria visto o rubor no rosto do irmão.

- Estás brincando, Heka? Tu és lindo, quem acaso disse que tu és feio?

- Tu és minha irmã, quero saber o que pensarias se não o fosses... Sinceramente!

Sentindo o tom amuado na voz dele, ela observou-o em silêncio, analisando-o.

Heka era bastante alto, com mais de quatro côvados de altura, e sua magreza parecia esticar sua silhueta. Mesmo assim, era musculoso e forte, elástico, rápido, com um corpo extremamente bem torneado. O duro trabalho no mar tinha apenas melhorado aquela perfeição. Suas mãos eram longas e finas, a voz forte e profunda podia reboar pelos quatro cantos da casa ou sussurrar meigamente como agora, sem perder o timbre agradável. A pele, já naturalmente morena, tomava um tom encantador quando ele ficava muito tempo ao sol. Heka não possuía muitos pêlos no peito nem tinha os ombros tão largos, como Imhotep, mas sua barba era espessa e crescia depressa, deixando uma sombra escura em seu rosto de ossos salientes. O queixo era ligeiramente quadrado, contrastando harmoniosamente com seu nariz, pequeno e reto, e com sua boca bem desenhada. As orelhas eram delicadas, as sobrancelhas grossas e marcadas sobre os olhos fundos, escuros, misteriosos. Seus cabelos negros, apesar de lisos, formavam suaves cachos nas pontas, chegando-lhe quase à cintura em profusão volumosa. Nem o sol ou o sal do mar conseguiam estragar aqueles longos fios, e Akh admirava-os com certa inveja, de tão brilhantes e sedosos. Como se fosse possível, Heka ficava ainda mais belo quando soltava suas gostosas gargalhadas, exibindo os dentes grandes e perfeitos. Havia em todo o seu aspecto uma mistura de criança e homem, capaz de enganar à primeira vista, e não raro haviam-no tomado por adolescente quando na verdade ele tinha já trinta e dois anos ao morrer pela primeira vez. Como Caulos podia acreditar que Heka era um velho? Akh não precisou pensar muito:

- Tu és um homem maravilhoso, meu irmão, tua beleza é quase uma perdição! Acredito que és provavelmente um dos homens mais belos que já vi, nunca passarias despercebido por mim se eu não fosse tua irmã! Os deuses estavam certamente inspirados quando te criaram... Admira-me que alguém pense que precises de remédios ou mágicas para diminuir a idade! Tu mal tens algumas rugas leves ao redor de teus olhos... Quando sorris, ainda pareces um menino!

- Não me julgo assim tão bonito! - Heka esticou-se para servir-se de mais vinho e engatinhou até a irmã para encher-lhe a taça, deixando-se ficar encostado ao sofá onde ela estava - Tenho a cara comprida e angulosa, sou todo ossudo, às vezes vejo meu reflexo e sinto-me desgostoso! Olha o tamanho de minhas mãos, são enormes!

Akh alisou-lhe os cabelos perfumados. Heka depreciava-se porque Nurit não podia vê-lo. A jovem rejeitava-o sem imaginar o que estava perdendo, levada pela imagem mental de um idoso quando na verdade tinha diante de si um homem atlético, sensual e vigoroso. Em sua paixão sem futuro, Heka perdera o interesse por outras mulheres e nem via mais como a maioria esticava olhares cobiçosos quando ele passava, caminhando a passos largos e gingados. Mesmo quando descia do barco usando o simples saiote de marinheiro, sem jóias ou atavios, sua longa trança balançando de encontro ao torso nu, ele era espetáculo mais do que suficiente para garantir bons suspiros.

- E a troco de que estás agora a cismar contigo mesmo, irmão de meu coração? - Akh beijou-lhe o topo da cabeça - Acaso não te recordas de quantas mulheres já tiveste, ou quantas sussurraram propostas indecentes quando te viam disponível? Aposto que já fizeste muita mulher sofrer ao não ceder a tais propostas!

- E agora sou eu quem sofro! - balançando a cabeça com tristeza, Heka virou o vinho de um só gole e serviu-se novamente - Mas não tenho direito a nada mais além do que já possuo... Se ao menos minha alma pudesse contentar-se com isso!

Akh não permitiu que ele completasse também sua taça, ainda bastante cheia. Lembrando-se que Menoren comentara o fato de Heka estar sozinho há anos, Akh entendeu que Nurit era outro segredo precioso do irmão, que nem o ancião sabia. E só o fato de estar novamente na mesma casa que aquela moça punha-o naquele estado... Talvez fosse mais acertado deixá-lo a sós pelo resto da noite, para que Heka pudesse beber à vontade e desabafar a dor que deveria estar passando.

Provalvelmente pressentindo o que a irmã pensava, ou talvez pelo silêncio que notava nela, Heka surpreendeu-a:

- Por favor, Akh, não me deixes aqui sozinho hoje... Não esta noite! - falou, sem sequer voltar-se para olhá-la - Preciso de alguém em quem confie de verdade a meu lado, já não sinto-me capaz de suportar sozinho minhas amarguras! Às vezes creio que estou ficando insano... Temos um passado tão longo, já vivemos tantas coisas! É tudo tão sem sentido... As pessoas morrem ou somem de repente de nossas vidas, mas nós não conseguimos esquecê-las... Eu não consigo esquecer!

- Eu também não esqueço! - Akh às vezes surpreendia-se por sua capacidade de ainda lembrar detalhes de eventos passados há séculos - Acho que isso faz parte de nossa maldição... Colecionar lembranças, boas e más!

Heka riu involuntariamente, imaginando uma cena absurda de suas memórias dispostas em prateleiras, catalogadas e rotuladas em potes como as misteriosas coleções de ervas de um sacerdote farmacêutico. Mas não era isso mesmo o que ele fazia, guardando seus diários e mapas de navegação, seus relatórios comerciais, suas cartas, até mesmo algumas jóias ou talismãs trazidos dos lugares por onde viajou? Suas duas casas, seus depósitos e seu próprio barco tinham baús cheios de coisas que coletara ou escrevera nas últimas décadas. Não era aquilo também uma forma de armazenar o passado?

- Por que não podemos envelhecer e morrer, e um dia partir deste mundo, como todos os outros? - murmurou ele - Nós sabemos tanto, mas não deixamos sementes... Precisamos nos esconder, fugir, não temos direito a criar famílias ou vínculos... Que vida desgraçada é essa, minha irmã? Essa solidão imensa... Será que vale a pena? Não podemos nem contar uns com os outros, pois nunca sabemos quando um de nossa espécie tentará arrancar nossa cabeça!

Akh sentiu os próprios olhos ardendo e segurou-se para não chorar. Tinha as mesmas dúvidas do irmão, não sabia o que responder. O que a manteve viva por tanto tempo sem ele foi apenas a esperança, ainda que frágil, de poder reencontrá-lo. Já tinha perdido Imhotep e, se soubesse com certeza que tinha perdido Heka também, provavelmente enlouqueceria de dor. A solidão eterna era seu pior pesadelo, a simples idéia dava-lhe calafrios. Se um dia tivesse descoberto que ele havia morrido mesmo, talvez oferecesse o pescoço ao primeiro Imortal que encontrasse.

- Às vezes sinto pena por nós não podermos ter filhos... - continuou Heka - Seria tão bom ensinar-lhes tudo o que aprendemos através dos séculos!

- Ou talvez eles morressem em nossos braços como milhares de nossos amigos, ou nos vissem perdendo a cabeça para algum Imortal! - a voz de Akh era triste - Às vezes acho que o fato de não termos filhos é uma bênção...

Heka voltou a ficar em silêncio. Akh arrependeu-se pelas palavras duras, compreendendo que ele referira-se à gravidez de Nurit. Na penumbra, podia ver a taça de prata na mão dele cintilar de forma irregular, e percebeu que ele tremia levemente enquanto bebia. Pelo que havia presenciado naquela tarde, naquela mesma sala, sabia que ele estava fazendo enorme esforço para não perder novamente o controle. Nunca soube ao certo o que fazer quando o via neste estado, por isso deixava-o sozinho ou fingia não ver suas escapadas noturnas. Era um acordo silencioso que respeitavam desde quando eram crianças. Heka sempre soubera resolver-se sozinho, de um jeito ou de outro. Ou será que não? Akh viu-se desorientada.

- A notícia de Nurit me pegou totalmente desprevenido! - confessou Heka, tentando manter a voz calma - E eu devia ter esperado por isso... Pyion já tem seis anos, seria lógico que ela e Caulos desejassem ter outros filhos! Mas simplesmente não consigo me conformar. Sinto-me um monstro por desejá-la! Ela me vê apenas como um amo generoso, um patrão compreensivo... E Caulos chega a ser odioso, ele realmente gosta de mim! Ele preocupa-se com minhas viagens, dedica-se aos meus negócios como se fossem dele e deixa Pyion chamar-me de avô, parece até que ele tem orgulho disso! É tudo tão ridículo... Eles nem imaginam o que eu sinto, não têm a mínima idéia do quanto eu sofro!

Heka bebia o vinho cada vez mais depressa, sua voz ia ficando pastosa.

- Quando vim para Mileto foi só para negociar por pouco tempo, porém fiz amigos, contratei marinheiros como o pai de Nurit, criei laços com a cidade. Depois ela nasceu e fiquei apegado àquela menininha frágil, lembrando de quando tu eras uma criança... - um sorriso triste passou-lhe pelos lábios e Heka suspirou tentando engolir um soluço - Quando vi ela estava órfã e depedendo de mim, e eu alimentava essa dependência por causa do meu orgulho! Então tomei posse dela e comprei esta casa para aprisioná-la, mentindo para mim mesmo que queria apenas protegê-la! Quando ela decidiu casar-se, foi aí que vi como tinha ciúmes dela, como estava apaixonado por aquela criança... Para mim ela era uma menina, ainda! Tentei fugir da verdade e agora...

Num gesto súbito, Heka atirou a taça furiosamente contra uma parede, espalhando gotas de vinho pelo ar. O som estrondoso do metal resvalando pelo mármore cortou o silêncio da sala como uma faca. Por sorte os tapetes no chão amortizaram a queda e a taça rolou suavemente para baixo de um coxim, impedindo que novos ruídos ecoassem pela casa. Heka passou ambas as mãos pelo rosto, enxugando as lágrimas que não conseguiu mais segurar e que desciam volumosas por sua face.

Akh precisou de alguns momentos para recuperar-se do susto. Reparando na conversa toda, ela lembrou-se que Heka tinha falado diversas vezes em filhos desde que tinham se reencontrado, e acabava de tocar repetidamente no assunto. "Ele está com ciúmes de Nurit porque ela está novamente grávida de... NÃO! Isso tudo não é só por Nurit!", pensou Akh de repente, "Heka está sofrendo também por não poder ser PAI!".

Vendo-o ali no chão a seus pés, chorando abraçado aos joelhos, Akh engoliu em seco. Nunca tinha sequer imaginado que aquilo pudesse ser tão importante para seu irmão! Ela mesma às vezes magoava-se com a idéia, porém era mulher, seus instintos maternais eram naturais. Antes de conhecer Imhotep, ambos eram virgens e nem sabiam que não podiam ter filhos. Depois, Akh simplesmente evitava pensar no assunto e sempre acreditara que Heka, por ser homem, nunca se incomodou com a esterilidade. Contudo, ele fora praticamente seu segundo pai. Sua mãe Mahkret morrera pouco depois de adotá-los, Epher vivia ocupado no templo e na verdade foi Heka quem a criou! Até onde Akh podia lembrar-se, era sempre ele quem cuidara dela, quem lhe dava banhos e trocava suas roupas, penteava seu cabelo, inventava histórias para distraí-la... Foi ele quem ensinou-a a contar e escrever, quem defendia-a quando ela fazia algo errado...

Uma sucessão vertiginosa de cenas antes insignificantes correu pela mente de Akh - Heka chorando no deserto na noite em que uma mulher nômade deu à luz um bebê morto, Heka pagando do próprio bolso para que um menino acusado de roubo não fosse açoitado pelo pai num oásis, Heka ensinando os pequenos nômades a escrever e desenhar, Heka criando creches improvisadas e exigindo salários para as crianças que trabalhavam fabricando cestos e cordas em Saqqara, Heka sorrindo ao ver um bando de moleques correndo pelas ruas poeirentas de Mênfis para saudar o rei, Heka dando presentes a Rukhai em Katsambas, Pyion brincando com a trança de Heka há poucas horas... Enquanto Akh há séculos evitava um contato maior com crianças porque elas lembravam-lhe que seu próprio ventre era eternamente infrutífero, seu irmão sempre correra instintivamente na direção contrária e ela nunca percebera! Ele sofria sabendo que sua longa vida não teria uma continuidade em outro ser vivo gerado de seu próprio sangue! Por que ele nunca lhe disse nada disso?

Sem saber mais o que fazer, Akh ajoelhou-se ao lado do irmão e abraçou-o. Heka pendurou-se a ela como um náufrago numa tábua, mordendo as mãos para abafar a violência com que os soluços agora arrebentavam seu peito. Akh logo estava chorando também, embalando-o, sentindo as lágrimas quentes dele molharem seu pescoço e sua túnica. Tudo o que tinha acontecido na vida de Heka enquanto esteve longe da irmã, sem que ele tivesse em quem apoiar-se ou com quem desabafar, tinha-se somado para explodir agora que Akh voltava para o lado dele.

Finalmente, a custo, Heka desvencilhou-se dela com os olhos inchados. Seus soluços estavam mais calmos. Limpando o rosto com as mãos, ele deitou-se de costas no tapete, sem atrever-se a encará-la. Foi Akh quem rompeu o silêncio, irritada ao vê-lo fechar-se novamente, como se fosse possível trancar o mundo do lado de fora e ignorar o que tinha acabado de acontecer:

- Essa tua postura orgulhosa é incompreensível! Tu queres que adivinhem a tua dor, mas tu mesmo estás escondendo-a... Estás escondendo-te até de mim, e há séculos! Parece que tu gostas de sofrer, vivendo desse jeito com Caulos e Nurit! Tu nunca disseste a essa mulher quem és de verdade, como esperar que ela pudesse sentir por ti algo que nem imagina possível?

- E como eu poderia dizer-lhe? - Heka virou-se para a irmã com espanto - Deveria eu acaso chegar simplesmente e contar-lhe que tenho quase mil anos de idade, mas pareço tão jovem quanto ela? Que conheci seu pai décadas antes de ela nascer, e ainda assim não possuo sequer um traço de velhice em meu corpo?

- E o que disseste a tuas duas últimas esposas, que tu amaste e eram tão mortais quanto Nurit? - insistiu Akh - Uma delas sei que nunca viveu o bastante para perceber teu segredo, mas e a outra, que tu disseste ter morrido no Egito após décadas à minha procura? Esta certamente viu que tu não envelhecias!

- Eu contei-lhe tudo quando já estávamos casados há anos! Ela sofreu muito, não entendia como isso era possível. Acho que ela nunca se conformou! Para ela deve ter sido horrível envelhecer e perder a saúde, enquanto eu permanecia imutável... Fui um covarde por tê-la submetido a tamanha tortura! Se eu tivesse dito a verdade antes, ela ao menos teria tido a chance de não se casar comigo...

Heka virou para o outro lado e enrolou-se como uma criança, agarrado a uma almofada. A lembrança das esposas queridas era-lhe cruel demais. Desta vez suas lágrimas escorreram silenciosamente, mornas, perdendo-se no emaranhado de seus cabelos. Akh amaldiçoou-se por ter tocado no assunto. Imaginava como ele devia ter sofrido ao perdê-las, e sentiu-se egoísta por ter chorado tanto tempo por Imhotep. Ao menos haviam desfrutado séculos de sólida convivência, e a Heka nem isso fora permitido. Estava descobrindo tantas coisas novas nele que era-lhe impossível juntar tudo de forma coerente. Ele passara por tantos tormentos! Não era à toa que estava tão abalado!

- Perdoa-me, irmão, perdoa-me! - sussurou Akh, acariciando as costas tensas de Heka - Não sei o que dizer-te, essa situação toda é nova para mim! Comigo tudo foi diferente, Imhotep sabia quem eu era... Nem posso imaginar as dificuldades por que tu passaste longe de mim! Estou sendo egoísta ao julgar por minha limitada experiência, quando tu és quem tem mais a ensinar-me! Mas acho que precisas colocar um fim nesse teu sofrimento, tu não vês o quanto isso está a fazer-te mal?

Rolando para junto da irmã, Heka escondeu a cabeça nos joelhos dela. Sabia o que precisava fazer, sempre soubera. O difícil era reunir forças para seguir em frente. Um trovão reboou surdamente e a chuva desabou em grandes gotas no jardim, tornando o ar abafado e úmido.

Repassando agora toda sua história com Nurit, Heka não conseguia encontrar algo de que não se arrependesse. Nunca admitira francamente que a amava, nunca confessou-lhe seus sentimentos, nunca dissera-lhe a verdade sobre sua Imortalidade. Tratara-a sempre com falso distanciamento, justamente para não demonstrar sua paixão, e chegara a ser grosseiro com ela em várias ocasiões. Bloqueada pela cegueira física e pela ignorância do que ia no coração dele, Nurit permanecera a seu lado imaginando conviver com uma criatura completamente diferente do que ele era na realidade. Se hoje ela era feliz nos braços de outro, quem era ele para condená-la ou atrapalhá-la, se o único culpado era ele? Como esperar que Nurit adivinhasse, que o amasse, se o homem que ela imaginava nunca existiu? Se ela o tivesse amado um dia, a revelação da verdade agora só serviria para destruir tudo.

- Preciso ir embora daqui e rápido! - sentenciou Heka por fim, fungando ruidosamente - Já me magoei demais, chegou a hora de encerrar esse assunto de uma vez! Se eu contar a verdade a Nurit ou a Caulos, eles podem odiar-me, fugir de mim. Quem garante que eles viriam a me entender? Pyion também logo vai crescer e fazer perguntas. Não sei se suportarei ver Nurit ter outro filho... Tenho que deixá-los seguir suas vidas, afastar-me de seus caminhos!

Heka explicou então à irmã que há muitos anos tinha um contrato estabelecendo que, caso algo lhe acontecesse, a casa e o depósito em Mileto ficariam para Nurit e Pyion, além de uma boa fortuna que tinha separada. Outro contrato, em Creta, deixaria a casa, o depósito e seu barco para Menoren, em Katsambas. Se por acaso Heka morresse publicamente e precisasse fugir, eles herdariam suas propriedades e poderiam viver com conforto, enquanto o próprio Heka ainda teria muitos outros bens e mercadorias espalhados por vários lugares, nas mãos de comerciantes de confiança. Sua fortuna tinha sido dividida em partes para casos de emergência e seus testamentos eram sempre independentes, assim Heka poderia morrer oficialmente em uma cidade, porém nas outras continuaria vivo e em plena posse de seus bens. Era um esquema complexo, mas ele afirmou que já tinha usado esse truque antes.

- Eu poderia forjar minha morte e deixar-lhes minha herança aqui em Mileto, assim eles não teriam mais obrigações para comigo, mas seus futuros estariam garantidos! - disse Heka num fio de voz - Se eu tentar dar-lhes presentes, talvez eles não aceitem ou sintam-se ainda mais presos a mim... Quero cortar definitivamente estes laços, Akh! Nunca mais quero voltar a Mileto, nunca mais! E preciso de tua ajuda!

Akh franziu a testa, tentando fervorosamente construir um plano com a idéia que o irmão lhe sugerira. Ele ainda não admitira sua carência paternal com todas as palavras, contudo era fácil para ela supor que Heka adoraria ver Pyion assumindo os negócios na cidade em seu lugar, como se fosse seu filho e legítimo sucessor. Só que não poderiam esperar o menino crescer, Heka já tinha arriscado demais ficando tanto tempo por ali. Se as pessoas comentavam sobre sua eterna juventude agora, quem sabe o que diriam quando Pyion fosse adulto? O menino poderia virar as costas a Heka, temendo aquele mistério. E com Nurit grávida, Heka poderia sentir-se tentado a adiar a partida, mesmo afirmando que não suportaria aquilo. Ele estava há anos sofrendo em silêncio, podia muito bem encontrar novas desculpas para continuar naquele martírio. Mas Heka também era impulsivo o bastante para realmente abandonar tudo no dia seguinte, Akh sabia disso. Só o que ele precisava era de um pretexto e um empurrão. Akh depois saberia impedi-lo de voltar atrás.

- Caulos é teu ajudante, talvez ele pudesse assumir teus negócios aqui em Mileto! - sugeriu ela por fim - Nurit receberá a herança e ele administrará tudo por ela. Isso abrirá caminho para que no futuro Pyion assuma os negócios da família! O que achas?

Aos poucos o olhar de Heka desanuviou-se, admirando as perspectivas que a irmã lhe expunha. Se Caulos conseguisse cuidar de tudo até que Pyion crescesse, o menino um dia seria seu sucessor e Nurit viveria confortavelmente. Seria perfeito, desde que Heka desaparecesse por completo. Uma de suas desculpas para permanecer em Mileto tinha sempre sido garantir o futuro de Nurit e, depois, o de Pyion. "E meu ciúme contra Caulos!", admitiu Heka para si mesmo, sem conseguir deixar de odiar o rapaz, que roubou-lhe Nurit e ainda tinha filhos com ela. Heka sentia um certo prazer doentio em ter o casal sob seu teto, ambos como seus empregados e dependentes, apesar de magoar-se ainda mais ao ver como eles lhe dedicavam genuína afeição. Agora, Akh estava fornecendo-lhe uma saída razoável para o dilema. Uma saída sem volta, é verdade, mas ainda assim bastante decente. Além do mais, bastaria incluir uma nova cláusula no contrato de testamento e Caulos nunca seria o dono verdadeiro dos bens, apenas seu administrador até a maioridade de Pyion.

Heka tinha acostumado-se aos problemas legislativos justamente por necessidade de reaver seus bens, após morrer publicamente uma vez, e aprendera a fazer testamentos e procurações para si próprio, sob nomes falsos, ou para contatos de confiança, como forma de precaver-se contra novas perdas. Já havia feito isso várias vezes antes, quando algum fato chamava a atenção para sua Imortalidade ou seu passado duvidoso, forçando-o a fugir. Seria fácil para ele inventar um meio de fazer sua herança passar diretamente de Nurit para Pyion, evitando que Caulos pudesse prejudicar os interesses do menino - essa seria a pequenina e derradeira vingança de Heka contra o rival.

- Tens razão! - concordou ele após alguns instantes, encarando a irmã - Caulos cuidará de tudo e Nurit não ficará desamparada! Quando for mais velho, Pyion assumirá o lugar de Caulos... O MEU lugar! E eu tenho como manter-me sem problemas mesmo perdendo os negócios em Mileto. Vou precisar de um tempo para organizar isso... Depois sumiremos daqui para sempre, ou nunca ficarei livre desse pesadelo!

- Eu te ajudarei no que for necessário, tu sabes! - Akh pressentiu que ele estava mesmo decidido - Faremos tudo com calma, agora estou aqui contigo e vou apoiar-te!

Heka concordou lentamente, suspirando, e juntos subiram a escadaria para os quartos. Akh não permitiu que o irmão passasse o resto da noite sozinho e enfiou-se com ele na cama, abraçando-o. Várias vezes percebeu que ele enxugava lágrimas silenciosas, fingindo dormir para não incomodá-la, mas Akh também não conseguia relaxar e passou praticamente a noite em claro, adormecendo só quando sentiu que ele finalmente ressonava, vencido pelo cansaço.

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