Um Amor Fracassado


Roma, Península Itálica - 180 a.C.

- É isso mesmo o que desejas?

O tom de Methos não poderia ter sido mais frio ao fazer a pergunta. Assim que ele chegou, Aka procurou-o no tablinum e, sem rodeios, propôs que pusessem um fim amigável ao casamento de quinze anos. Methos limitou-se a fitá-la com espanto e Aka, sem saber mais o que fazer, começou a explicar-lhe confusamente seus motivos e sua proposta. Em suma, ela confessou que estava farta de lutar para conviver com um homem que não confiava nela e em quem achava que não podia mais confiar - antes que a mágoa os transformasse em inimigos, era preferível que ele a devolvesse a Eksamat.

Enquanto ouvia tudo aquilo, Methos assumiu seu ar habitual de impassividade. De repente, cortou a conversa com a pergunta seca e direta, sem revelar nenhuma emoção na voz. Aka permaneceu alguns segundos encarando-o tristemente, antes de concordar com um curto "sim!". Methos não respondeu e, após lançar um rápido olhar pela sala, passou por Aka e saiu para o peristilium sem uma palavra.

Tremendo da cabeça aos pés, ela ouviu-o bater a porta do posticum com violência, e por um momento arrependeu-se de sua decisão. Sentando-se no divã mais próximo, Aka resolveu esperá-lo voltar para uma nova conversa, antes de tomar qualquer atitude definitiva.

*************

O grito estridente de uma das criadas ecoou pela casa e Aka demorou a compreender onde estava. Tinha adormecido no divã do tablinum à espera de Methos, sem nem jantar, e agora o sol começava a clarear a nesga de céu que via através do telhado aberto do peristilium, iluminando o jardim. A princípio Aka imaginou que o grito tinha sido parte do pesadelo que a atormentara a noite toda, porém logo escutou mais choros e gemidos. Descerrando o cortinado que dava para o átrio, viu os criados acorrendo à entrada da casa, onde duas de suas escravas batiam no peito e puxavam os cabelos, aos prantos. Em meio à confusão um homem de roupas simples, que Aka reconhecia como sendo um dos escravos pessoais de Peter Gaicus, gesticulava contando algo que fazia todos ao redor entrarem em desespero. Aka não conseguia entender o que ele dizia por causa do berreiro das mulheres, e demorou para que sua criada de quarto a visse ali parada. Correndo para Aka como rosto banhado em lágrimas, a mulher atirou-se a seus pés e gritou entre soluços:

- Senhora, uma desgraça! Nosso mestre está morto!

- Morto? Quem?

- Teu esposo, senhora! Oh, tragédia! Mestre Methos Remus morreu!

Ainda um tanto zonza de sono e cansada da noite mal dormida, Aka permaneceu olhando para a mulher descabelada a seus pés, sem entender nada. Methos era Imortal, do que aquela criatura estava falando? O mensageiro de Gaicus finalmente destacou-se do grupo de escravos histéricos e correu para Aka, também ajoelhando-se:

- Senhora, que Júpiter me fulmine com um raio por ousar trazer tal notícia, mas o patrício Methos Remus morreu há cerca de uma hora perto do mercado... Sinto muito, foi horrível!

Aka precisou de alguns instantes para assimilar a notícia, e subitamente foi como se o chão sumisse. A escrava e o mensageiro ampararam-na para que não caísse e levaram-na de volta ao divã, enquanto os outros criados acudiam com sais e abanadores trazidos às pressas. Aka arfava descontroladamente, sem conseguir respirar ou pensar, até que finalmente explodiu em soluços. Sua cabeça girava. Methos morrera logo após ela pedir-lhe a separação! Ela nem ao menos teve a chance de vê-lo para uma última conversa! Methos devia estar perturbado, encontrou outro Imortal pela rua e... Não, Eksamat não faria isso! Seu irmão evitaria a qualquer custo um confronto fatal com Methos, por amor a ela... Marconus e Gaicus idem, eles jamais trairiam o amigo! E se Aediles tivesse voltado e...

Só então Aka começou a entender o que o mensageiro tentava explicar-lhe, falando aos tropeções e fazendo com que as escravas recomeçassem as lamúrias a seu redor:

- O cocheiro tentou parar mas não houve tempo, a biga vinha muito depressa! Ninguém entendeu como ele não viu os cavalos... Perdão, senhora, mas acho que ele estava meio embriagado, apesar de meu mestre Gaicus jurar que ele não tinha bebido tanto... Eu vi o corpo, os cavalos o judiaram muito! Realmente, uma tragédia! O patrício Marconus parecia um louco, não queria que ninguém tocasse em seu marido, senhora! Mestre Gaicus e o patrício Marconus embrulharam o corpo do patrício Remus num manto e levaram para a casa de meu amo... Não quiseram trazê-lo direto para cá para que a senhora não o visse naquele estado, queriam que recebesse a notícia primeiro... Sinto muito, foi uma morte terrível!

Aka aos poucos compreendeu que Methos não tinha se metido em nenhum duelo com outro Imortal, apenas fora atropelado por uma biga. E se Marconus e Gaicus tiveram pressa em escondê-lo foi porque ele logo voltaria a si, e ficaria bem! Engolindo o choro, Aka disfarçou o alívio e mandou trazerem imediatamente sua liteira para levá-la à casa de Gaicus. Ia também despachar um escravo atrás de Eksamat, mas sentiu o irmão chegando.

- Vim o mais rápido que pude! - gritou ele do vestíbulo, fazendo-lhe sinal para apressar-se - Estou com meu carro aqui, vens comigo?

Agarrando na corrida um véu de luto que a criada chorosa lhe trazia, Aka meteu-se na quádriga seguida pelo irmão, disparando para a casa de Gaicus.

- Aonde estavas com a cabeça quando concordaste com isso? - intimou Eksamat em egípcio, fuzilando a irmã com o olhar - Ele poderia ter morrido de verdade se uma roda passasse em cima do pescoço dele! E acaso já pensaste no escândalo que uma brincadeira dessas pode causar?

- Do que estás falando? - Aka fitou-o com espanto - Quase desmaiei de susto ao saber do acidente, e vens falar em brincadeiras?

- Então não sabias de nada? - Eksamat estendeu-lhe um pergaminho que Aka ainda nem notara que ele tinha nas mãos - Acho melhor leres isto! Recebi ainda há pouco, por isso corri a buscar-te!

Aka empalideceu ao ver o lacre rompido no pergaminho, reconhecendo parte do sinete de Methos, e tomou o rolo com as mãos trêmulas. Com uma caligrafia bem menos graúda e pesada do que costumava usar em suas cartas comuns - outro sinal do quanto ele ocultava a verdade sobre si próprio - Methos escrevera a Eksamat comunicando que seu casamento chegara ao fim. Numa linguagem cuidadosa, ele confessava seu pesar pelo fracasso da união e pedia desculpas pelo muito que fizera de errado. Confessava também que só não pediu a separação antes por medo de magoar Aka, a quem afirmava ainda amar apesar de tudo, e alegava que preferia transformá-la em viúva do que apenas devolvê-la. "Isso só nos levaria de volta ao ponto de onde partimos há quinze anos", escreveu Methos, afirmando que deixaria uma herança razoável em testamento para a esposa como compensação, pois tinha muito mais guardado e poderia viver bem com o que lhe restaria. Por fim, Methos pedia perdão pelo transtorno que causaria ao "suicidar-se", desejando que eles pudessem continuar como amigos e esquecer o passado.

- Ele escolheu bem as palavras, não achas? - ironizou Aka ao terminar de ler, lutando contra as lágrimas de raiva - Não foi muito poético, mas tem estilo!

- Pensei que estivesses de acordo com esse teatro do atropelamento! - resmungou Eksamat - Recebi a carta e, mal acabei de lê-la, um escravo de Marconus veio avisar-me do acidente! Pelo jeito Methos fez questão de tornar sua morte pública, e o dano agora é irreversível!

- E eu sou uma viúva novamente... - Aka irrompeu em lágrimas e atirou-se nos braços do irmão - Por que ele fez isso comigo? Por que ele não me avisou?

Antes mesmo de chegarem ao palacete de Peter Gaicus, perceberam o movimento pouco usual na rua e reconheceram amigos nas calçadas, sinal de que a notícia já tinha se espalhado e os curiosos queriam ver o corpo para testemunhar a morte de Methos. Aka imediatamente cobriu a cabeça com o véu, como qualquer viúva, e estremeceu ao sentir que havia três Imortais na casa de Gaicus. Os irmãos foram imediatamente recebidos pelos criados e conduzidos a um cubículo nos fundos do átrio - o quarto que Methos costumava usar nos tempos de solteiro, quando dormia na casa do amigo após alguma noitada, conforme ele próprio confessara uma vez. Lá dentro, entre os consternados Marconus e Gaicus, o próprio Methos permanecia deitado na cama, ainda completamente coberto pelo manto ensanguentado com que fora embrulhado na rua.

- Levanta-te, infeliz! - rosnou Aka entre dentes assim que percebeu a porta sendo fechada novamente - Se a biga não foi suficiente para dar cabo de ti, eu mesma posso terminar o serviço!

Ouvindo a raiva na voz dela, Methos pulou da cama imediatamente. Aka não tinha sacado a espada e trazia os olhos inchados de choro, mas era patente que ela estava furiosa e poderia muito bem fazer o que dizia. Ele ainda tinha crostas de sangue seco por todo o corpo e suas roupas estavam esfarrapadas e cheias de poeira. Era evidente que o acidente tinha sido realmente horrível. Os dois permaneceram encarando-se em silêncio, até que Aka recomeçou a soluçar:

- Por que, Methos? - perguntou ela, inconformada - Por que tudo isso?

Methos aproximou-se com um gesto conciliador e Aka esquivou-se para o lado. Eksamat fez menção de interpôr-se entre ambos, contudo Marconus fez-lhe sinal para que não interferisse e ele recuou para a porta, com o semblante carrancudo. Aka acabou permitindo que o marido a abraçasse, apesar da mágoa que sentia e das roupas sujas dele, e chorou por um longo tempo, enquanto ele a embalava com carinho, murmurando-lhe ao ouvido palavras de consolo. Ninguém entendia o que eles diziam um ao outro e de repente, para espanto de todos, Methos parecia estar chorando também. Finalmente Aka assentiu a algo que ele lhe disse e começou a acalmar-se. Uma onda de alívio percorreu os outros três Imortais, que observavam silenciosamente a conversa, prontos a intervir caso a situação tomasse outro rumo. Mesmo sendo contra as Regras, o que menos queriam era que o casal partisse para um duelo ali, naquele cubículo, com um monte de gente do lado de fora aguardando para ver com os próprios olhos o suposto cadáver de Methos. Mais tranquilos, Marconus e Gaicus puxaram Eksamat a um canto para contar-lhe o que ocorrera desde a noite da véspera.

- Ele voltou para cá pouco antes do jantar, e com a cara mais esquisita que eu já tinha visto! - explicou Marconus num cochicho - Ele pediu-nos material para escrever e fechou-se por mais de uma hora aqui no quarto, recusando-se a comer conosco, depois insistiu em arrastar-nos para um... Bom, para um daqueles prostíbulos pros lados de Subura (1)... Nós passamos a noite só jogando dados e brincando com as moças, nada sério, eu juro! Methos recusava-se a dizer por que tinha nos levado até lá e apenas mandava servirem-nos vinho e comida à vontade, como se fosse uma festa, apesar de ele próprio ter comido e bebido muito pouco... O sol já estava para nascer quando ele pareceu enjoar daquilo e exigiu ir embora às pressas. Vi quando ele pagou a um rapazola do bordel para levar um pergaminho para algum lugar, mas nem perguntei o que era. Nós estávamos voltando à pé com os criados quando ele de repente correu pela rua...

- Eu vi a carruagem e gritei, mas ele parou bem no meio do caminho! - interrompeu Gaicus, com voz cansada - Ele simplesmente colocou-se na frente dos cavalos e deixou-se atropelar... Foi a coisa mais estúpida que já vi!

Marconus lançou-lhe um olhar de reprovação e, diante do silêncio concentrado de Eksamat, retomou a narrativa:

- Acho que podes imaginar o tumulto que ele causou... Ainda estava meio escuro, mas já havia muita gente nas ruas perto do mercado, foi uma gritaria! Queriam chamar um médico, a milícia, o de sempre nessas horas. Tivemos que agir rápido, então embrulhamos ele de qualquer jeito e saímos correndo para cá! Por sorte ele só acordou aqui, senão...

- O pergaminho que ele despachou foi para mim! - comentou Eksamat, com um suspiro - Era um aviso do que ele pretendia fazer! Em seguida recebi a notícia do acidente, e até pensei que Aka tivesse combinado algo com ele...

Ainda fungando, Aka sentou-se ao lado do marido na cama onde ele estivera deitado. Enxugando disfarçadamente as últimas lágrimas, Methos chamou a atenção dos outros três:

- Por favor, amigos, peço mais uma vez perdão por todo esse transtorno, mas foi necessário! Eu já estou há tempos demais em Roma, ando tendo problemas sérios com o censor Lucius Valerius (2) e nosso casamento, infelizmente, não era o que Aka merecia. Sei que nem tudo era do vosso completo conhecimento, porém a única saída decente que encontrei foi provocar minha própria morte em público. Se não vos avisei de minhas intenções era porque necessitava que minha morte parecesse real e definitiva, e somente pegando-vos desprevenidos eu teria certeza de que todos reagiriam com a emoção natural nesses casos!

- Há quanto tempo vinhas tramando isso? - quis saber Eksamat - Era para tua fuga que vinhas esvaziando teu cofre?

Methos assentiu com um gesto cansado. O acidente fora mais massacrante do que planejara e seu corpo ainda doía, apesar dos ferimentos já estarem completamente curados.

- O maldito Valerius notou que havia algo errado com minhas propriedades desde que assumiu o cargo! - recomeçou Methos após um breve silêncio, percebendo que todos aguardavam suas explicações - Até então tenho conseguido enganá-lo, mas tenho certeza de que chegaria uma hora em que o desgraçado encontraria alguma prova de minhas sonegações e acabaria comigo!

Os outros três homens entreolharam-se em silêncio, cientes das implicações do que acabavam de ouvir. Se Lúcius Valerius conseguisse provas para acusar Methos formalmente por crimes contra os cofres públicos, eles eventualmente também se veriam envolvidos no processo e suas vidas seriam reviradas do avesso. Poderiam ser todos acusados do mesmo crime, reduzidos à miséria e à vergonha pública ou, pior ainda, acabar como escravos!

- Há dois anos, quando vi que não teria escapatória, libertei Lívius e mandei-o comprar uma casa e algumas terras bem longe daqui, em Bedriacum (3), onde ele está agora! - prosseguia Methos - Tudo lá está em nome de Lívius, para que Valerius perca minha pista. Também tive que gastar um bom dinheiro com viagens, documentação, rebanhos, novos escravos... Eu queria que parecesse que Lívius tinha feito fortuna sozinho no norte, mas aquilo tudo na verdade é meu. Temos um contrato estabelecendo que um dia retomarei posse de tudo, e ele receberá uma boa recompensa pelo serviço. E não se preocupem, Lívius já sabe meu segredo há anos, é de inteira confiança! Eu pretendia fugir só daqui a alguns meses, mas Aka ontem pediu-me a separação e vi que tinha chegado a hora de partir...

Aka recomeçou a soluçar e Methos abraçou-a, murmurando-lhe novas palavras doces ao ouvido.

- Como daremos satisfações à cidade após toda essa confusão? - perguntou Eksamat em voz baixa a Marconus e Gaicus - Vi um bando de gente aí fora e provavelmente outros estão chegando, será preciso fazer uma exposição pública do corpo (4)!

- Methos estava fingindo-se de morto até agora! - sussurrou Marconus - Nós o deixamos todo sujo de propósito para causar má impressão e permanecemos aqui de olho, repetindo o quanto ele está mutilado, assim todos ficam com nojo e nem se atrevem a levantar o manto para espiar melhor... O problema é que uma hora teremos que fazer a cremação! Como vamos evitar que descubram a verdade na hora de abrirem-lhe os olhos (5)?

- Podemos arrumar um cadáver qualquer em Subura mesmo! - sugeriu Peter Gaicus, coçando o queixo e assumindo um tom conspiratório - Lá morre gente todos os dias e não é tão difícil comprar o corpo de algum miserável sem família, basta procurar as pessoas certas... Depois podemos amortalhá-lo da cabeça aos pés. Se alguém perguntar, diremos que o corpo estava com ferimentos tão medonhos que o sangue começou a apodrecer! Podemos até dizer que os cavalos pisotearam seu rosto... Nem nossos escravos puderam ver nada direito no meio da confusão do acidente!

Eksamat e Marconus concordaram com acenos silenciosos de cabeça. Os romanos tinham uma curiosidade mórbida para testemunhar a morte de alguém, contudo fugiam correndo de medo das doenças que os cadáveres apodrecidos poderiam trazer. Com a aprovação deles, Gaicus saiu em busca de um corpo, enquanto Methos e Aka ainda conversavam. Ela estava bem mais calma e ele parecia aliviado, comentando por fim:

- Percebi que Gaicus foi tomar providências para meu funeral, mas eu ainda preciso encontrar um jeito de sair da cidade sem ser reconhecido. Eu pensei em tudo, porém isso é uma coisa que não tinha como calcular... E eu só pretendia executar meu plano daqui a alguns meses!

Os quatro confabularam por algum tempo, entretanto nenhuma idéia era plausível. Eksamat chegou a oferecer-se para trocar de roupas com o cunhado para que ele fugisse à noite quando o movimento diminuísse na casa, visto que ambos tinham a mesma altura e poderiam ser confundidos no escuro, mas Methos não tinha as longas madeixas fora de moda que Eksamat teimava em manter, e era também alto demais para travestir-se de mulher. Foi Aka quem, após um longo silêncio, sugeriu:

- Raspa teu cabelo, veste-te com a roupa de um dos criados e pintarei teus olhos como os dos orientais! Tenho uns potes de pomada que podes usar para escurecer tua pele, pensarão que és algum cativo estrangeiro recém-chegado. Ninguém presta atenção em escravos, basta andares curvado e não encarares ninguém, nem abrir tua boca enquanto não estiveres bem longe daqui!

Todos fitaram-na com espanto diante da idéia genial. Os romanos desprezavam os orientais, ainda mais se fossem escravos, e evitavam até falar com eles. Methos tinha uma estatura e um nariz difíceis de disfarçar, era verdade, mas bastaria ele desfilar careca e com roupas de criado para que todos desviassem o olhar, tomando-o por uma criatura sem importância.

Enquanto Methos voltava a deitar-se e fingir-se de morto para que os visitantes que esperavam impacientemente para vê-lo pudessem entrar no quarto, Eksamat correu à casa da irmã para buscar pessoalmente o que ela lhe especificara. Aka permaneceu ao lado de Methos, junto com Marconus, com a cabeça coberta e fingindo debulhar-se em lágrimas. Só o fato de ela estar ali intimidava os visitantes, que na maioria limitavam-se a espiar da porta, constrangidos. Se alguém se aproximava demais, Aka irrompia em gritos e gemidos, atirando-se sobre Methos como uma desvairada, e a cena deprimente logo expulsava os curiosos.

Eksamat e Peter Gaicus retornaram quase ao mesmo tempo. Previdente, Eksamat trazia também sob o manto uma velha sacola de estopa com todo o dinheiro que encontrou e alguma comida para a viagem de Methos, que estava sem alimentar-se direito desde a véspera.

- Consegui um cadáver! - comentou Gaicus ao ouvido de Marconus - Um velho que morreu ontem ao anoitecer, sozinho em casa, e até agora ninguém tinha ido reclamar o corpo para o funeral. Por sorte era um velho magro e comprido, vai ficar perfeito! Deixei-o embrulhado num saco perto do posticum, podemos trazê-lo para cá quando quisermos. Só não podemos demorar, senão aquilo vai começar a feder por causa do sol! E aqui estão também algumas roupas e sandálias do velho, Methos pode usá-las na viagem!

A um sinal de Eksamat, Aka redobrou os gritos e gemidos, pedindo para ficar a sós para lavar e preparar pessoalmente o "corpo destroçado do marido", e desta vez todos saíram. Alguns criados de Gaicus entraram com ar pesaroso, trazendo vasilhas com água perfumada, óleos e tudo o mais que ela precisaria, e Aka recusou veementemente qualquer ajuda. Quando enfim ela trancou a porta, Methos pulou da cama e deixou que Aka lhe raspasse o cabelo com a navalha, enquanto ele lavava o sangue seco e espalhava cuidadosamente a pomada pelo corpo todo.

- Tens muita confiança em mim para deixar-me com uma navalha perto de ti depois do que fizestes! - cochichou Aka de repente, tentando não olhá-lo sem roupas - Eu poderia tentar vingar-me... Não te movas tanto ou acabo cortando-te!

- Eu sempre confiei em ti, só nunca soube demonstrar-te! - Methos lutou contra o súbito nó na garganta e a vontade de jogar-se com ela na cama uma última vez antes de partir - Acho que nunca fui bom para lidar com sentimentos, tu não merecias um marido como eu!

- Nós apenas nos encontramos na hora errada de nossas vidas, Methos! - Aka enxugou uma lágrima verdadeira antes que ele percebesse - Até hoje eu só fui casada mesmo uma vez, com um de nossa espécie, e talvez por isso imaginei que só outro como nós poderia trazer-me de volta a felicidade que desfrutei ao lado dele... Ao passo que tu não consegues entregar-te completamente a outros Imortais, porque tens medo de perder a cabeça! Deves ter muitos traumas...

- Tens razão! - Methos estava surpreso por ver o quanto ela conseguira ver através dele, a despeito de seus segredos - Meu passado guarda muitas histórias que não gosto de lembrar, acho que ainda tenho fantasmas demais a me perseguir... Mas em nossos quinze anos juntos tu nunca me falaste desse teu primeiro marido!

- Assim como nunca me falaste de Emrys! - Aka sorriu contra a vontade ao perceber como ele sobressaltou-se ao ouvir o nome do velho mestre - Nós dois sempre tivemos tantos segredos um para o outro... A propósito, não fui eu que matei meu primeiro marido!

- Ainda bem! - Methos forçou uma risada, era justamente nisso que estava pensando - Talvez um dia eu consiga ser como tu, capaz de entregar-me sem receios... Espero que possas realmente perdoar-me pelo que estou fazendo!

Aka não respondeu, limpando-o dos restos de cabelo e logo ocupando-se em espalhar-lhe pomada pela cabeça nua e contornar-lhe os olhos com seus cosméticos. Treinada a usar a Voz, acabara aprendendo a reconhecer as pequenas nuances nas palavras de Methos. Sempre soubera quando as perguntas dele tinham segundas intenções, mesmo quando ele fazia-as parecerem completamente casuais, e por isso sempre mentiu-lhe, assim como ele mentia. Porém também sabia quando ele estava sendo sincero, como agora. Ainda não tinha assimilado toda aquela confusão e não tinha certeza de como se sentiria depois que ele partisse. Provavelmente iria sofrer, e muito, porém o que importava no momento era dar um jeito para que ele escapasse de Roma sem ser reconhecido.

Mastigando um pedaço de pão que Eksamat lhe trouxera, para disfarçar a emoção, Methos arrependia-se de tudo o que estava fazendo. No começo pretendia avisar Gaicus e Marconus quando chegasse a hora de realizar seu plano, sabia que ambos o ajudariam e apoiariam cegamente, mas depois fez tudo num impulso, pressionado pelos acontecimentos da véspera. Nunca imaginou que logo Aka estivesse a seu lado agora! Acreditou que ela ficaria revoltada, histérica, com ímpetos de vingança, ou mesmo que desse de ombros e apenas assumisse seu papel de viúva, porém jamais supôs que ela fosse capaz de ajudá-lo pessoalmente na fuga. Não valorizou-a como ela merecia... Invejara Eksamat, mas nunca permitiu-se ser para ela o que o irmão sempre fora - sincero, transparente, confiante e confiável. Se ao menos pudesse voltar atrás e apagar os últimos quinze anos de suas vidas, teria feito tudo tão diferente! Sentir agora as mãos dela tocando-o gentilmente, cheia de carinho e dedicação apesar do golpe traiçoeiro que ele lhe desferira, era quase mais do que Methos podia suportar.

Há séculos tinha resolvido ser um homem decente e mudara completamente de vida, mas alguns traumas nunca seriam apagados de sua memória e Methos ainda errava com frequência, mesmo acreditando que estava agindo certo. Só depois percebia seus enganos e talvez o que estava fazendo com Aka agora fosse pior do que muitas atrocidades que tinha cometido no passado. Antes ele era um monstro frio e assumido. E agora, que nome mereceria, ao perpetrar tamanha crueldade contra sua própria esposa? Diabos, ele a amava de verdade! O pão que mastigava embolou-se em sua boca seca e Methos teve que fazer um esforço desesperador para controlar a vontade de gritar, revelar sua falsa morte a quem quer que estivesse lá fora e fugir arrastando Aka consigo. Por que não conseguia mais viver sem remorsos? Por que não tinha continuado a ser o demônio maldito e sem alma que fora um dia - o manipulador, o torturador, o assassino, o covarde sádico, o estuprador? Não, era melhor continuar com a farsa... Aka definitivamente não merecia um marido como ele!

Aka percebeu a agitação íntima de Methos, mas imaginou inocentemente que ele estava apenas receoso pelo sucesso da fuga e calou-se. Quando terminou de aprontá-lo, ajudou-o a vestir as roupas curtas e surradas de escravo e olhou-o com satisfação - Methos parecia bem mais moreno e até mais magro do que era por causa da pomada escura, e a ausência de cabelo tinha deixado-o praticamente irreconhecível, ainda mais com os olhos verdes realçados com tinta preta, à moda asiática. Aliás, asiática era o modo pejorativo de falar dos romanos pois, ao olhar para ele agora, Aka via os típicos egípcios bronzeados e carecas, com olhos sensualmente delineados com kohl (6), dos bons tempos em Saqqara. O engraçado é que Imhotep, seu primeiro marido egípcio, também morreu em público e ela teve que fingir-se de viúva chorosa, como hoje. A diferença era que na época Aka fugira com Imhotep, e agora ficaria sozinha...

Espantando os pensamentos tristes com decisão, Aka começou a juntar o melhor que podia os tufos de cabelo que estavam espalhados pelo quarto, enfiando-os sob o colchão. Quando Methos sacudiu o manto para limpá-lo também, algo caiu tilintando pelo piso ladrilhado em mosaicos - a corrente com a chave de ouro do cofre, que provavelmente partira-se no acidente e por sorte ficara presa nas dobras do tecido.

- Toma, agora isso é teu! - disse Methos, recolhendo a corrente com a chave e enfiando-as na mão de Aka - Não há muito lá dentro, mas ao menos terás com que pagar as dívidas antes que possas receber minha herança oficial...

- Não quero nem preciso de nada, tu o sabes!

Aka tentou devolver a chave, mas Methos colocou-a novamente na mão dela num gesto cheio de carinho, fitando-a com ternura e tristeza. Num instante os lábios dos dois se tocaram, porém ouviram algumas pancadinhas leves na porta, sinal dos outros para que se apressassem, e o encanto se desfez. Aka ajudou Methos a ocultar-se sob o manto mais uma vez e voltou à sua atitude chorosa de antes, abrindo a porta para os amigos. Felizmente a espera tinha feito com que a maior parte dos curiosos desistisse e fosse embora, diminuindo sensivelmente o movimento na casa. Gaicus também despachara todos os escravos possíveis para a rua, sob os mais variados pretextos, a fim de evitar testemunhas do que ainda precisavam fazer. Numa hora em que certificou-se de não haver mais ninguém por perto, ele e Marconus carregaram o cadáver do velho para o quarto e Methos despediu-se às pressas de Aka e dos amigos.

- Irei contigo para dar-te cobertura! - decidiu Eksamat no último minuto - Tu não poderás fazer nada nestes trajes, podem até pensar que és um fugitivo. É preciso que alguém passe por teu mestre para que consigas chegar a Bedriacum!

- Então tomes mais algum dinheiro, é o que sobrou depois que comprei esse vovô aqui! - Gaicus enfiou a bolsa sem pestanejar nas mãos de Eksamat - Poderás pagar-me quando voltares, não te preocupes! Agora apressa-te e tira Methos da casa antes que os criados voltem!

- Ficaremos com Aka, Gaicus e eu, e tomaremos conta de tudo! - prontificou-se Marconus, abraçando Methos e entregando-lhe sua bolsa - Aqui tens minha ajuda também... Não é muito, mas deve bastar para ambos! Se perguntarem algo, direi que Eksamat viajou em busca de algum possível parente teu ao norte para avisar que morreste!

- Sempre serei grato a todos por isso! - Methos deu um último beijo rápido em Aka e esgueirou-se pelo corredor do posticum com Eksamat.

Com a ajuda dos amigos, Aka amortalhou o velho às pressas e cobriu-o com o manto sujo de Methos. Quando novos visitantes atrasados apareceram, o mau cheiro do cadáver já era notável e Gaicus aproveitou para decretar que era hora de cremar o corpo, insinuando que o sangue dos ferimentos estava apodrecendo. Isso bastou para espantar os últimos curiosos, que deram-se por satisfeitos só em sentir de longe o odor que começava a exalar do embrulho sobre a cama.

- Um rato morto teria saído mais barato! - murmurou Gaicus com ironia, quase fazendo Marconus perder a compostura e cair na gargalhada - Pelo menos o pobre velho terá seu funeral...

Enquanto Aka, Marconus e Gaicus ocupavam-se do cerimonial fúnebre e da inevitável burocracia, sempre fingindo-se emocionados e prontos a engabelar qualquer um que fizesse maiores perguntas, Methos fugia da cidade com Eksamat em direção ao norte, disfarçado de escravo.

*************

Notas explicativas:

1 - Os patrícios, que compunham a nobreza rica de Roma, moravam no alto das sete colinas que formavam o núcleo da cidade, principalmente nos montes Palatino e Aventino. A plebe, ou população menos abastada, vivia nos vales entre as colinas, sendo que o vale de Subura, a nordeste do antigo forum, era considerada a região dos miseráveis, infestada de bordéis e antros de marginais. Durante a noite, nenhum cidadão romano decente e de bom senso circularia pelas ruelas escuras de Subura sozinho.

2 - Lucius Valerius Flaccus foi censor do patriciado da República Romana entre 184 e 179 a.C.. Na época havia sempre um censor responsável pelo patriciado e outro pelo resto da população, chamada de plebe. Ambos trabalhavam em paralelo por um mandato de cinco anos seguidos, chamado "census", sendo depois substituídos por dois novos censores.

3 - A cidade de Bedriacum, hoje conhecida como Cremona, foi uma colônia latina fundada em 218 a.C. no extremo norte da Península Itálica.

4 - Sempre que algum membro do patriciado falecia, era feito um anúncio público do fato e seu corpo ficava exposto no átrio da casa por algum tempo, para que se pudesse confirmar sua morte e fossem-lhe prestadas as devidas homenagens.

5 - A cremação era a forma mais comum de funeral na época, e a tradição mandava que se abrissem os olhos do cadáver uma última vez diante de testemunhas, logo antes de acender-se o fogo. Se isso ocorresse no funeral de Methos, a troca dos cadáveres não poderia ser disfarçada e viraria um escândalo.

6 - Kohl é o nome da tinta negra que os antigos egípcios empregavam para contornar os olhos. Tanto homens como mulheres pintavam-se com kohl diariamente e ainda hoje, no norte da África e no Oriente, as mulheres usam o mesmo cosmético para enfeitar-se. O kohl seria o ancestral do rímel e do delineador que, com novas fórmulas químicas, tornaram-se comuns também na maquiagem ocidental atual.
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