O Velho e o Morto Que Anda


Terras do Sciasu (Península do Sinai, a norte do Mar Vermelho) - Uadi Maghara - 2840 a.C.

O sol do deserto tinha feito grandes estragos novamente eu seu rosto. A testa descascava em camadas grossas e em alguns pontos a pele nova rachava em feridas vermelhas, que repuxavam dolorosamente ao cicatrizar. Os lábios tinham crostas de sangue seco misturado com areia, incomodando-o até para respirar.

- Maldita tempestade! - pensou Methos pela milionésima vez - Se eu tivesse meus óleos...

De repente lembrou-se que há dias não tinha sequer água, quanto mais os óleos hidratantes, e teve vontade de rir. Mas o simples sorriso involuntário partiu seus lábios ressecados com uma dor quase insuportável, fazendo-o gemer. Seus olhos arderam e ele soluçou, num choro seco que tinha muito de ódio e desespero.

- Eu não vou enlouquecer! - Methos gritou para si mesmo com raiva, chutando a areia a cada passo forçado - NÃO VOU!

Seus pés queimavam no chão escaldante, os dedos estavam carcomidos pela areia que entrava implacavelmente em suas botas de pele improvisadas. Na véspera tivera que trocar o par anterior de botas, pois os furos já estavam tão grandes que as peles mais atrapalhavam do que ajudavam. Suas pernas moviam-se por instinto, doendo tanto que nem conseguia mais senti-las caminhar. Há mais de três semanas Methos estava sozinho naquela imensidão, desde que uma tempestade de areia afogou seu guia.

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O roliço sciasu (1) que contratara para levá-lo até o vilarejo de Uadi Maghara tinha-se enrolado em peles quando a ventania começou e mandou Methos fazer o mesmo, para proteger-se dos grãos de areia que furavam a carne como milhares de agulhas. Methos na hora sorriu para si mesmo, há séculos estava acostumado às tempestades do deserto e sabia muito bem o que fazer. Só que desta vez o vento demorou uma eternidade para amainar, soprando com uma violência acima da média, e Methos não ouvia nada a seu redor além do rugido das dunas, movendo-se como se estivessem vivas. Quando sentia o peso da areia cobrindo-o, agitava o corpo por baixo das peles para não ficar soterrado, mas não atrevia-se a descobrir a cabeça. Uma rajada de areia daquelas poderia facilmente lixar fora a pele de qualquer um, deixando-o em carne viva.

Quando finalmente o temporal passou, Methos demorou a localizar-se novamente. A paisagem estava completamente alterada e o tempo que permanecera coberto fizeram-no perder a noção das horas. Teria que observar novamente o sol para saber para que lado ele se movia no céu e reencontrar seu rumo. Cuspindo e assoando a areia que entrara por sua boca, olhos e nariz, Methos deu alguns pulos e sacudiu a roupa para limpar-se da melhor maneira possível. Só então reparou que Sekhebka não estava fazendo o mesmo. Onde tinha ido parar o maldito guia? Methos olhou em volta apreensivo, tirando a areia dos ouvidos. O homem não seria louco de sair andando durante a tempestade!

- Sekhebka? - gritou, tentando encontrar algum sinal do sciasu - SEKHEBKA!

A paisagem era um mar liso e brilhante de areia, seria impossível localizar as pegadas do homem e Methos só via o buraco de onde ele próprio tinha acabado de sair, no alto da ladeira de uma duna. Subindo ao topo da duna com dificuldade, Methos estudou a posição do sol e o deserto ao redor, cada vez mais irritado. Resolveu descer para buscar as peles no buraco e de repente tropeçou em algo duro. Methos caiu, rolando pela ladeira abaixo e por pouco não quebrando uma perna.

- Maldição! - xingou no auge da fúria - Que Amêntis devore o coração de Sekhebka diante de Ausar (2)!

Com ódio, Methos galgou novamente a duna até encontrar o que o tinha feito tropeçar. Era um pedaço de pele de cabra, talvez algum dos pacotes de sua bagagem que rolou para longe do trenó (3). Julgando que afinal tivera sorte em recuperar ao menos parte de seus pertences, Methos desandou a cavar ao redor da pele, tentando liberar o pacote. A tarefa não era fácil, com a areia do topo da duna desabando em cascatas cada vez que o buraco ficava mais fundo, obrigando-o praticamente a recomeçar tudo de novo. Desfiando uma lista de pragas e palavrões, Methos conseguiu finalmente enfiar as mãos ao redor do volume e puxou a pele com força, arrancando-a para fora num tranco.

Para sua surpresa, a pele saiu vazia e o conteúdo permaneceu no buraco - a cabeça de Sekhebka encarava-o com olhos arregalados e a pele azulada dos asfixiados. O guia tinha sido soterrado por toneladas de areia e morreu afogado com o peso. Methos ficou com mais raiva ainda do homem, preferindo que ele tivesse fugido no meio da tempestade do que morrido de forma tão estúpida.

- Que idiota de sciasu é você afinal?! - gritou para o morto, dando-lhe tapas na cabeça cheia de areia - Não sabe nem sobreviver a uma tempestade, imbecil?

Após alguns instantes pensando sobre o que fazer, Methos decidiu desenterrar Sekhebka e tirar-lhe as peles, a roupa e o que mais pudesse levar. Se não recuperasse seus pertences, ao menos teria as coisas do guia para prosseguir viagem. Depois de passar horas cavucando as dunas em busca da bagagem, Methos encontrou finalmente alguns volumes. Provavelmente a areia cortante tinha roído as cordas do trenó, pois vários pacotes estavam abertos, espalhados ao redor de onde Sekhebka estivera enterrado. A maioria estava perdida - potes quebrados tinham deixado vazar óleos e grãos, sacos de tecido tinham rombos enormes, a comida estava estragada pela areia.

Acendendo uma pequena fogueira com alguns trapos e gravetos, Methos adentrou a noite roendo algumas raízes e contando o que ainda lhe restava: a maior parte das roupas, um odre de couro cheio de água e outro pela metade, uma lamparina de bronze sem óleo, uma adaga com cabo de osso, sua espada, várias peles, uns poucos pedaços de carne seca e raízes, um pacote de farinha grossa, um pote de mel vedado com cera e um saquinho de sal, além de meia dúzia de tâmaras murchas e um enorme pedaço de pão duro, que estavam escondidos nos bolsos de Sekhebka. Não era o suficiente para continuar a viagem, mas Methos sabia que não podia desistir tão facilmente. Talvez tivesse que morrer algumas vezes de fome e sede no caminho, mas um dia alcançaria um oásis ou encontraria alguma caravana. Já passara por aquilo antes e tinha até tornado-se rei do Egito, não tinha?

Cantando uma velha canção dos tempos da corte real, Methos embrulhou tudo o que lhe restava nas peles antes que a pequena fogueira apagasse e adormeceu abraçado ao pacote, vencido pelo cansaço.

*************

Por mais de uma semana Methos racionou seus mantimentos, rumando na direção previamente estabelecida por Sekhebka antes de morrer. Levava a bagagem ora nos ombros ou na cabeça, ora puxava-a atrás de si, mas sempre andando sem parar, mesmo sob o sol forte. Sabia que o melhor seria viajar só à noite, aproveitando o ar fresco, porém quanto mais tempo ficasse ali sozinho, parado, pior seria. Seu corpo precisava de alimento e água para continuar, e quanto mais depressa encontrasse um oásis, melhor. Methos odiava morrer de fome ou sede, sentia que o sofrimento poderia enlouquecê-lo um dia, e lutava por manter-se acordado ao máximo, parando apenas quando suas pernas não obedeciam mais. Então adormecia quase imediatamente, mesmo com o sol cozinhando suas carnes, e assim que acordava punha-se novamente em marcha, recusando-se a desistir.

A comida acabou primeiro, dois dias depois acabou também a água. Em pouco tempo seu corpo estava tão ressecado que nem conseguia mais urinar. Às vezes mastigava pedaços de couro para enganar o estômago, mas sabia que não demoraria muito até desmaiar e morrer.

E Methos morreu e ressuscitou várias vezes, chorando com olhos secos, amaldiçoando a vida e o mundo. Mas continuou andando, algumas vezes duvidando se estaria no rumo certo, outras falando sozinho sem perceber. Lembrava-se vagamente de ter rastejado em algumas ocasiões, mas sua cabeça estava tão confusa que nem tinha certeza se aquilo não teria sido um sonho ruim.

Na quarta vez em que voltou a si, descobriu que tinha perdido a pequena bagagem de roupas que restava. Provavelmente nem percebeu que o pacote ficara para trás, delirando antes de desmaiar da última vez, e agora não tinha mais nada, pois sua espada e a adaga de cabo de osso estavam enroladas junto com a bagagem. Seu corpo magro e judiado era tudo o que sobrou, e nem isso era-lhe o bastante. Uadi Maghara talvez nem estivesse tão longe, ou talvez já tivesse passado ao largo da cidade sem saber. Não tinha como descobrir, não havia saída.

Cambaleando sem rumo, Methos caminhou por alguns minutos e depois deixou-se cair novamente na areia, entregando-se. Esticou os braços ao lado do corpo, deixando o sol comê-lo até os ossos e rezando para que desta vez não precisasse acordar novamente.

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Methos voltou a si num tranco, engasgando com o ar seco que feria sua garganta. Tentou abrir os olhos mas não conseguiu, desesperado, sabendo que um Imortal estava por perto. Um Imortal poderosíssimo, a julgar pela vibração que sentia. Com esforço e dores terríveis, Methos levantou a mão e de repente seu braço foi envolvido por uma compressa de pano úmido, enquanto uma voz de homem murmurava-lhe em dialeto sciasu:

- Calma, meu filho! Estás muito doente, mesmo para um de nós! Eu não vou fazer-te mal, deixa-me cuidar de ti... Relaxa, deita-te!

O máximo que Methos conseguiu foi abrir os olhos numa fresta, ressentindo-se contra a claridade do sol. Via a sombra de alguém movendo-se a seu lado e sentia panos úmidos sendo colocados cuidadosamente sobre sua pele encarquilhada, causando-lhe calafrios horríveis. Sua língua inchada parecia colada dentro da boca, todo seu corpo doía. Mesmo um Imortal sofria com a inclemência do deserto e seu organismo debilitado não tinha forças para recuperar-se com a rapidez necessária. Talvez precisasse de semanas, ou até meses, para voltar ao normal. Se é que um dia voltaria ao normal...

Surpreso, Methos sentiu que passavam-lhe um trapo úmido pelos lábios, e esforçou-se por abrir a boca e chupar um pouco daquele frescor. O outro Imortal, quem quer que fosse, derrubou-lhe cuidadosamente algumas gotas de água pelos lábios entreabertos. A princípio Methos engasgou, mas logo entendeu, engolindo com dificuldade. Sua língua finalmente desprendia-se e voltava a mover-se, e sua garganta, mesmo arranhada, resfrescava-se com alívio. Em seguida o outro Imortal colocou-lhe compressas úmidas sobre o rosto, e Methos desmaiou.

Quando abriu os olhos, Methos sabia que desta vez não tinha morrido, só ficado desacordado por algum tempo. Ainda tinha os panos molhados envolvendo seu corpo e podia sentir o aroma de ervas curativas, e também percebia que estava numa tenda, deitado numa maca de peles. Seus músculos recusavam-se a reagir, porém conseguiu virar a cabeça para o lado e viu o Imortal que tinha feito tudo aquilo. Era um homem, com ombros largos e longos cabelos negros, que estava sentado a poucos passos, anotando coisas em um papiro, sob a fraca luz de uma lamparina fumacenta. Methos tentou chamá-lo e horrorizou-se ao ouvir a própria voz soando como um gemido. Voltando-se para vê-lo, o outro Imortal sorriu com dentes alvos e perfeitos, pequenas rugas surgindo ao redor de seus olhos escuros.

- Ah, finalmente acordaste! - disse o estranho, abandonando o papiro e com evidente satisfação na voz - Não, não tentes sair daí, eu mesmo te darei água! Ainda estás muito fraco!

Com gestos experientes e cuidadosos, o outro Imortal ergueu-lhe gentilmente a cabeça e verteu lentamente água em sua boca, deixando-o beber o quanto quisesse. Methos fez-lhe um sinal com os olhos quando sentiu-se satisfeito e o homem recolocou-o na maca, retirando as compressas que envolviam seu rosto e aplicando-lhe uma pomada com cheiro forte. Methos emitiu um fraco protesto no início, sentindo a pele dolorida ao simples contato, porém logo abandonou-se aos cuidados do estranho. De qualquer forma, estava à mercê do que o outro quisesse fazer, e a pomada realmente aliviava seu sofrimento de uma forma inesperada. Minutos depois, o outro Imortal afastou-se para um canto da tenda e voltou com um caldo morno numa caneca de cerâmica.

- Não é muita coisa, meu filho, mas pelo menos vai sustentá-lo! - desculpou-se o estranho, dando-lhe o caldo para beber - Amanhã talvez estejas em condições de tomar algo melhor!

Para a fome de Methos, o sabor da sopa era melhor que qualquer delícia que já houvesse provado em toda sua vida. O caldo esquentou-o por dentro e, sentindo seu estômago dilatar-se mesmo com o fraco alimento, Methos perguntou-se sobre o que aconteceria com os órgãos internos de quem morria de fome e sede. Provavelmente murchavam como frutas secas, ou talvez engolissem a si próprios - pelo menos era essa a sensação que ele tinha cada vez que sofria com uma morte dessas. Com um olhar suplicante, Methos deu a entender que queria mais caldo, porém o outro deu-lhe apenas mais meia caneca, avisando com voz gentil:

- Não posso dar-te muita coisa agora, ou teu corpo rejeitaria e acabarias vomitando! Daqui a algumas horas beberás mais, podes ficar sossegado!

O outro Imortal retirou os panos úmidos e começou a aplicar a pomada pelo resto de seu corpo, depois cobriu-o novamente com as compressas. Methos adormeceu novamente e, quando acordou, o estranho estava erguendo sua cabeça para que bebesse mais uma caneca de caldo. Pela luz que entrava fracamente por alguma abertura na tenda, Methos imaginou que o dia estaria amanhecendo. Tentou perguntar onde estavam, e sua voz saiu fraca e rouca.

- Estamos perto de Uadi Maghara! - disse o outro, olhando-o com tanto carinho que Methos teve vontade de chorar - Assim que estiveres melhor, levar-te-ei para minha casa lá, onde poderás terminar tua recuperação!

Methos murmurou um débil agradecimento e permaneceu algum tempo com os olhos fechados, sentindo que seu organismo começava a reagir. As dores ainda eram quase insuportáveis, mas pelo menos sua pele já não repuxava tanto, e o caldo morno tinha feito seu sangue pulsar mais rápido. Nunca pensou que pudesse sobreviver desta vez. Após alguns minutos, forçou-se a abrir novamente os olhos e perguntou o nome do estranho, que aparentemente preparava outra pomada de ervas, amassando alguma coisa numa vasilha a seu lado.

- Ah, meu filho, eu já tive tantos nomes! - disse o estranho, sorrindo - Mas podes chamar-me de Emrys, que é como sou conhecido por aqui! (4)

- Emrys... - Methos repetiu, testando a própria voz - Eu sou Methos...

Para sua surpresa, o estranho gargalhou, encarando-o com olhos brilhantes.

- Methos? - disse o outro, voltando a esmagar suas ervas - "O Morto Que Anda"... Gostei disso!

Só então Methos lembrou-se do significado de Emrys: "O Muito Velho"! Teve medo de sorrir mas não se conteve, e por sorte desta vez seus lábios estavam melhores, pois não racharam dolorosamente como esperava. Emrys continuou esmagando pacientemente as ervas na vasilha e Methos pôde observá-lo melhor, reparando que ele não era tão velho quanto seu nome faria supor. Sua barba espessa tinha uns fios brancos, é verdade, mas seu cabelo era negro e farto. Emrys não deveria ter mais do que quarenta anos quando morreu pela primeira vez, a julgar pelas rugas que formavam-se ao redor de seus olhos quando ele sorria, porém seus dentes eram bons e seu corpo parecia vigoroso sob a larga túnica. Era difícil julgar os homens do deserto pela aparência, afinal o sol acabava com a juventude de qualquer rosto, e muitas vezes a má alimentação e as constantes viagens faziam com que eles parecessem muito mais idosos do que realmente eram. Incrivelmente alguns viviam bastante, às vezes beiravam um século de idade, contudo a maioria não chegava sequer aos trinta ou quarenta anos.

Finalmente, como se percebesse que estava sendo observado, Emrys levantou a cabeça e sorriu, aproximando-se de Methos para espalhar o caldo das ervas amassadas cuidadosamente sobre seu rosto e seus braços. Em seguida, Methos sentiu-se novamente embrulhado em panos úmidos e adormeceu mais uma vez.

Ao acordar, já com o sol desaparecendo no horizonte, Methos conseguiu erguer metade do corpo na cama e olhar ao redor. Seu estômago grunhiu ao sentir cheiro de carne assada e imediatamente chamou por Emrys. O outro Imortal surgiu pressurosamente na abertura da tenda, olhando-o com preocupação. Methos deixou-se cair para trás e confessou que estava com fome.

- Então acordaste com o cheiro da comida, hein? - Emrys parecia divertir-se - Sinal de que estás bem melhor! Aguarda mais um pouco e logo trarei algo que poderás comer sem susto!

Pela primeira vez em semanas Methos sentiu a boca salivar e sorriu para si mesmo. Tinha perdido a noção do tempo que ficara sem comer. Pouco depois Emrys voltava com uma tigela de mingau e outra de carne desfiada, que Methos encarou com decepção.

- Isso é tudo o que aguentarias comer por hora! - desculpou-se Emrys, ajudando-o a erguer-se na cama e sustentando-o com almofadas de pele - Mesmo um de nós precisa de tempo para recuperar-se após tudo o que passaste! Mais tarde dar-te-ei mais comida, quando puderes digerir normalmente!

Mal colocou as mãos nas tigelas, Methos sorveu o mingau com sofreguidão, depois encheu a boca com a carne e mastigou com gosto. Entretanto, antes mesmo de chegar à metade da segunda tigela, viu que não conseguiria engolir tudo. Seu estômago parecia estranhamente estufado com a pequena ração. Lembrava-se que também sentira-se assim há muito tempo, antes de ter sido preso pelos soldados do rei Djer. Tinha roubado alguns figos, mas só conseguira comer três, e ia levando os outros consigo quando foi surpreendido e arrastado ao palácio. Por coincidência, Djer também era um Imortal, como Emrys, e salvou-o de ser decapitado como um prisioneiro comum, chegando até a transformá-lo em seu herdeiro. Só que Emrys não era rei, ou pelo menos não parecia ser um. Com pesar, Methos abandonou a tigela com os restos da carne. Percebendo que suas mãos ainda estavam esverdeadas por causa das ervas medicinais, decidiu começar a fazer perguntas.

- Obrigado, Emrys! Eu ainda não sei por que tu estás a cuidar de mim, mas agradeço-te do mesmo modo! Estamos muito longe de Maghara?

- Estamos a meio dia de viagem! - Emrys tinha retomado suas anotações enquanto comia e respondeu-lhe com a boca cheia, sem se virar - Se estiveres melhor, em dois ou três dias poderemos partir!

- E tu moras lá há muito tempo?

- Há alguns anos, sim! - Emrys deu de ombros - Ainda posso permanecer lá mais uma ou duas décadas!

- Tu és um curandeiro?

- Sou curandeiro, sacerdote, conselheiro... - desta vez Emrys fez um gesto vago, com um pedaço de carne na mão - Dependendo do que precisam, eu faço!

- Mas tu não és tão velho quanto teu nome diz!

Finalmente Emrys levantou os olhos do papiro em seu colo e virou-se para encarar Methos com um brilho divertido no olhar. Após um breve instante, sorriu e disse:

- Tu queres saber há quanto tempo sou Imortal? - pego em flagrante, Methos não viu outra saída a não ser concordar com a cabeça. Emrys riu com gosto - Pois saibas que nem eu mais sei minha idade! Estou assim desde antes dos homens inventarem os números, então não tenho idéia de há quantos anos morri pela primeira vez! É verdade!

Arrotando sem querer, Methos encarava Emrys com dúvida. Ele próprio tinha perdido a conta dos anos, mas devia estar beirando os quatro séculos, talvez um pouco mais ou menos. Porém na sua época já havia números, e Methos só não sabia a própria idade porque no começo era analfabeto, e depois nem sempre conseguiu converter os números para os diversos calendários dos povos com que viveu. Cada um contava o tempo a seu modo e era difícil lidar com datas complexas cada vez que mudava de um lado para outro.

- De onde vieste, Emrys? Tu falas como um perfeito sciasu!

- Eu vim de um lugar bem longe daqui! - Emrys ofereceu-lhe um pouco de água - Mas já andei muito por aí, e com o tempo consegue-se aprender um pouco dos costumes do povo com quem se vive! Há várias décadas estou entre os sciasu... E tu, meu filho, de onde vens? Por que estavas abandonado daquele jeito no deserto?

Methos sentiu-se pela primeira vez incomodado com o fato de Emrys chamá-lo toda hora de "meu filho". Djer também fizera o mesmo, e na verdade não passava de um rei maluco, um Imortal bem mais novo do que o próprio Methos. Mas Emrys não parecia maluco.

- Meu guia sciasu morreu numa tempestade de areia quando íamos para Maghara! - disse Methos por fim - Perdi tudo no deserto, inclusive minha espada! Maldito Sekhebka!

Emrys dirigiu-lhe um profundo olhar de reprovação e Methos decidiu ter mais cuidado da próxima vez. Queria continuar a conversa e não sabia como, então não reprimiu um bocejo e logo Emrys ajudava-o a deitar-se novamente, oferecendo-lhe um pouco de chá forte e amargo. Methos reconheceu pelo cheiro que era um fortificante e, apesar de não conseguir evitar uma careta, bebeu tudo obedientemente. Desta vez Emrys dispensou as bandagens úmidas e Methos perguntou-se como estaria sua aparência agora, aos olhos do curandeiro. Seus braços, apesar de magros e fracos, pareciam estar com a pele praticamente nova, e provavelmente seu rosto também estaria bem melhor. Se não fosse Imortal, talvez nunca se recuperaria das queimaduras que sofrera. Sentia seu próprio corpo cicatrizando e estava maravilhado. Sua debilidade tinha tornado o processo mais lento do que o normal, apesar de ainda continuar sendo rápido para os padrões humanos. Methos nunca abusara tanto dos limites do próprio corpo como desta vez, e se Emrys não tivesse aparecido, talvez não tivesse resistido muito mais tempo. Será que Imortais podem morrer desse jeito também?

Emrys voltara a seu enorme papiro, relendo o que já tinha escrito e acrescentando novas anotações. Methos sabia agora ler e escrever pelo que aprendera no Egito, mas a facilidade com que o outro o fazia era-lhe impressionante. De onde estava, Methos reconhecia que aquilo no papiro não era egípcio. Se Emrys sabia ler e escrever, mas na época dele nem havia números, quantos anos ele teria? Provavelmente, por ser sacerdote, Emrys tivesse mais tempo para aprender. Methos, ao contrário, passara a vida toda vagando sem rumo. Nunca tivera família, apesar de ter-se casado algumas vezes. Seu primeiro mestre foi também um nômade que mais tarde tentou cortar-lhe a cabeça numa noite de bebedeira, e depois de vencê-lo Methos chorou muito. Sozinho, conseguiu matar vários outros adversários, e sobrevivera à base de esperteza, teimosia e raiva. Quando sua esposa sciasu foi assassinada junto com o resto de sua caravana, por ordens de Djer, o "Rei Falcão", por sorte Methos teve a chance de vingança, forjando a morte do rei e mumificando-o vivo. Djer talvez estivesse morto de fome em seu sarcófago agora... Methos assumira o trono com o nome de Djet, o "Rei Serpente", e casou-se com uma ex-concubina de Djer, Mereneith, que tinha-lhe sido dada pelo "pai" para diversão. A mulher era bonita, inteligente e esperta, Methos gostava dela e deu-lhe para criar um menino órfão de nome Den, dizendo que era seu filho bastardo. Quando Methos supostamente morreu durante uma expedição militar ao Nehesiu (5), a rainha assumiu o trono como tutora do pequeno Den, até que o herdeiro alcançasse a maioridade. Methos, vivendo escondido entre os nehesiu, orgulhou-se dela por isso. Djer teria arrancado a própria cabeça se soubesse que sua desprezada concubina reinou em seu lugar por mais de uma década...

A lembrança fez com que Methos risse alto sem querer, chamando a atenção de Emrys, que voltou-se para olhá-lo com curiosidade.

- Lembrei-me de um fato agradável! - desculpou-se Methos, ainda sorrindo. Seu ódio por Djer era tão grande que não poderia furtar-se a esses deleites da vingança - Dize-me, Emrys, tu já encontraste muitos outros como nós?

- Ah, sim, muitos! - Emrys entregou-lhe uma caneca com água e sentou-se a seu lado na maca - Alguns são meus amigos até hoje, outros infelizmente se perderam... E tu, também encontraste muitos?

- Vários! - Methos evitou ser específico - Há pouco tempo deixei dois no Egito... Um não era confiável, por isso abandonei-o, mas o outro, coitado, talvez não dure muito!

- Como assim?

- Eu fui seu primeiro mestre! - Methos não disfarçou o orgulho - Ele já era Imortal há algumas décadas, mas não sabia nada! Era um médico, tive que ensiná-lo a segurar uma espada, tudo! Ele até que era bom, mas me irritava com tantas perguntas. Até que um de nós surgiu para desafiar-me e, após vencê-lo, vi que meu aluno tinha fugido! Acreditas nisso?

- Pobre homem! - Emrys balançou a cabeça, pesaroso - Qual era o nome dele?

- Imhotep! - Methos disse, dando de ombros - Ele era de Abtu, mas estudou um tempo em Saís (6)... Do jeito que fugiu de medo, logo alguém vai matá-lo, talvez nem esteja mais vivo hoje!

- Imhotep... - repetiu Emrys - Realmente, meu filho, alguns de nós não têm espírito de sobrevivência! É uma pena, pois creio que a Imortalidade é um dom que não deveríamos desperdiçar!

Emrys levantou-se pensativo, parecendo de repente um idoso, e Methos decidiu ficar quieto. Imhotep era inteligente, mas covarde e bobo, tão irritante que Methos até agradeceu aos deuses por ele ter sumido aquele dia no deserto, depois do duelo. Não gostava de conversar com Imhotep, aliás não gostava de conversar com ninguém. Se estava puxando assunto com Emrys era porque estava desarmado, perdido e fraco. Do contrário, já teria sumido dali, de preferência com a espada de Emrys. Não pretendia enfrentá-lo, afinal não tinha idéia da capacidade dele, mas roubar e fugir não seria má idéia. Se ao menos soubesse onde o outro guardava a arma...

Emrys saiu da tenda e voltou em seguida com outra tijela de mingau e uma caneca de chá amargo, que Methos bebeu obedientemente. Pouco depois Emrys apagou a lamparina, indo dormir enrolado numas peles do outro lado da tenda. Methos permaneceu ainda um tempo acordado, raciocinando por que o outro tratava-o tão bem. Teria sido mais fácil matá-lo no deserto, quando ainda estava fraco, ao invés de ter todo esse trabalho. Bom, pelo menos isso dava-lhe a chance de viver e ficar mais forte. Derrotado pelo chá e pelo cansaço, Methos adormeceu.

*************

Por mais dois dias os Imortais continuaram no deserto. Methos recuperou-se completamente, sentindo-se como novo e esbanjando ânimo. Nesse meio tempo, tinha falado pouco de si e arrancado muitas confissões de Emrys, que gostava de conversar e parecia não ter medo de falar sobre seu passado.

Com espanto, Methos descobriu que o outro tinha sido um feiticeiro desde a época das cavernas, e morreu pela primeira vez por envenenamento súbito, ao calcular mal a quantidade de ervas numa poção que lhe permitiria ter visões místicas. Ao voltar a si, Emrys foi visto como um mago supremo por seu povo ignorante e, sem saber quem era, continuou a viver como antes. As gerações foram se sucedendo, sua tribo foi evoluindo, e Emrys era o mesmo, fazendo a única coisa que sabia: amar e proteger seu povo. Era ele quem pintava as paredes das cavernas para atrair boa caça e sorte na guerra, quem fazia amuletos da fertilidade e ajudava as mulheres nos partos, quem tratava os feridos e sepultava os mortos. Quando seu povo passou a criar rebanhos e cultivar a terra, era Emrys quem dançava pedindo chuvas, pintava o corpo para garantir boas colheitas, orava para que o gado crescesse forte e saudável, sacrificava animais para afastar as epidemias e aplacar a ira dos deuses. Até que, um dia, um Imortal o encontrou e ensinou-lhe sobre o Jogo.

Emrys aprendeu tudo o que podia com o mestre, mas não quis participar daquela loucura e seu professor partiu decepcionado. Emrys decidiu que, se conseguisse sobreviver sozinho, ótimo. Senão, caso um dia algum Imortal o decapitasse, ao menos Emrys queria ter a certeza de que sua longa vida não tinha sido em vão. Cada vez que encontrava outro de sua espécie, tentava ensinar-lhe algo bom. Se o outro viesse para lutar ou ferir seu povo, Emrys o enfrentava com a coragem dos que têm a consciência limpa e, se estava vivo até hoje, achava que era porque os deuses apoiavam sua decisão.

Methos ouvia tudo com curiosidade sincera, porém não conseguia compartilhar o mesmo amor de Emrys pela humanidade. Já tinha sofrido muito, passado por muitas desilusões e traições, e por isso vivia com o espírito prevenido, até mesmo contra Emrys. Tentava não demonstrar, mas o fato de estar desarmado na companhia de outro Imortal era-lhe profundamente desagradável. Por isso, foi com alívio que finalmente rumou com o companheiro para Maghara, onde conseguiu serviço como carregador e, após algum tempo, comprou sua própria adaga, que mantinha escondida.

Quando viu que Emrys realmente levava uma vida pacífica e rotineira, Methos cansou-se. Tinha aprendido muito com o outro Imortal, mas algo dizia-lhe para ir embora dali logo, porque Maghara não era seu lugar. Para sua surpresa, ao anunciar sua intenção de partir, Methos foi presenteado por Emrys com uma bela espada e um terno abraço de despedida. Por alguns instantes Methos quase voltou atrás, porém já estava com tudo preparado para a viagem em direção ao norte, e não queria bancar o emotivo na última hora.

- Que os deuses o abençoem e protejam, meu filho! - Emrys disse-lhe às portas da cidade, com lágrimas nos olhos - Espero que possas viver muitos milênios ainda, e que um dia nós possamos nos reencontrar! Toma cuidado na viagem... Minha casa e meu coração estarão sempre abertos para ti!

Lutando contra o choro, Methos fez sinal ao guia para iniciar a caminhada e foi embora arrastando sua bagagem, reconfortado ao sentir a espada nova balançando de encontro às suas pernas. Vendo-o sumir na distância, Emrys sofria, pois sabia o que o destino lhe reservava, mas não podia contar-lhe. Experiente e intuitivo, Emrys previa os muitos séculos de violência, maldade, traição e morte por que Methos ainda iria passar, antes de enfim retomar o caminho do equilíbrio.

- Um dia estarás no meu lugar... - profetizou Emrys num sussurro levado pelo vento - Um dia...

Se tivesse olhado para trás, Methos teria visto a dor nos olhos do maior amigo que conheceu, do único pai que jamais teve, e cujo valor só descobriria dali a muitos milênios...

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Notas explicativas:

1 - Sciasu era a região hoje conhecida como Península do Sinai, ao norte do Mar Vermelho. Os povos que lá habitavam, também chamados sciasu, seriam os antepassados dos atuais sírios.

2 - Amêntis era um deus, misto de cachorro com boca de crocodilo, que comparecia ao julgamento da alma dos mortos. Ausar ou Asar era o deus-múmia Osíris, senhor supremo dos cerimoniais funerários e rei dos mortos, diante de quem era feito o julgamento das almas. Se um morto tivesse muitas culpas, seu coração seria devorado por Amêntis e Ausar não permitiria a entrada daquela alma no reino eterno.

3 - Os viajantes carregavam sua bagagem nas costas ou na cabeça ou arrastavam-na atrás de si em trenós rústicos. Não havia outra forma de transporte de cargas no deserto nesta época, pois a roda só foi introduzida no Egito mais de mil anos após esta história. Os camelos provavelmente eram conhecidos dos egípcios por volta do século II d.C., e só passariam a ser largamente utilizados como animais de carga após a invasão árabe, durante o século VII d.C.

4 - Emrys é o personagem citado em "Highlander: The Series" como "O Velho", um dos mais antigos Imortais de que se tem notícia. Ele teria sido decapitado por Darius às portas de Paris em cerca de 410 d.C., e a bondade de Emrys transformou o general bárbaro, levando-o a tornar-se um padre pacifista. O nome Emrys surgiu oficialmente no livro "Shadow of Obsession", de Rebecca Neason, e significaria "O Mais Velho dos Velhos", "O Eterno", "O Grande Ancião" ou, em resumo, "O Imortal". Da mesma forma o nome Methos, em aramaico, significa "Morto Que Anda".

5 - Nehesiu significa "negro", e no caso era o nome dado à região ao sul do Egito, onde viviam tribos de população negra. Essa região depois recebeu o nome de Núbia.

6 - Abtu é a provável tradução da grafia original do nome egípcio para a cidade de Abidos. Saís também é conhecida como Saïs, Zau ou Sa el Hagar, e sua famosa escola de medicina é considerada a primeira universidade da história da humanidade.


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