Vertigens do Tempo


Mediterrâneo - 2252 a.C.

Os anos passaram rápido e a fortuna dos irmãos Imortais fortaleceu-se como nunca. Sua alegria, entretanto, abalou-se quando, mais de nove anos depois da compra da casa em Ugarit, Menoren faleceu em Katsambas. Durante um de seus tradicionais jantares, Heka notou que o ancião não estava muito bem e aconselhou-o a repousar. Mesmo assim, Menoren insistiu em permanecer até o fim da festa, para então recolher-se a seus aposentos. Pela manhã Rukhai encontrou-o imóvel na cama e Akh, entre lágrimas, constatou que ele provavelmente morreu dormindo, vítima de um ataque cardíaco fulminante. Heka chorou como criança pela perda do amigo, em quem confiava demais, e Rukhai sentiu como se tivesse perdido o próprio pai. Akh adorava Menoren e sofreu demasiado com sua morte, mas tentou ser forte para dar apoio ao irmão e a Rukhai.

Após realizar um funeral com tudo a que Menoren teria direito, os irmãos decidiram levar Rukhai consigo para Ugarit e desfizeram-se das propriedades em Katsambas. Heka estava já há bastante tempo na cidade e em breve sua eterna juventude acabaria por chamar a atenção. Os marinheiros de Katsambas foram aos poucos substituídos por alguns de Ugarit e outros sem residência fixa. Akh sugeriu que Heka adquirisse novas propriedades em Palaiokastro, a cidade onde os dois tinham-se reencontrado e conhecido Rukhai. Heka achou a idéia tentadora, pois assim voltaria a usufruir da boa localização da ilha, e após alguns meses realmente comprou um depósito lá.

Rukhai, por sua vez, sentia-se agora pouco à vontade em Ugarit. Acostumada a morar sozinha com Menoren, a convivência diária com vários criados estranhos acabou sendo-lhe desagradável, pois em Katsambas ao menos ela podia vestir-se como mulher em casa. No começo ela divertiu-se com a nova casa, os novos ares. Porém Rukhai não era mais uma menina, estava com quase trinta anos e a perda de Menoren despertou nela o desejo de tomar outro rumo na vida. Pressentindo as idéias da amiga, Akh conversou com o irmão e, juntos, resolveram propor a Rukhai que voltasse a Creta, onde poderiam comprar-lhe uma casinha em Palaiokastro e visitá-la sempre que aportassem na cidade.

Animada com a idéia de retornar à ilha, Rukhai fez apenas uma exigência: a de chegar lá como quem realmente era, uma mulher e não um rapaz. Akh e Heka imediatamente concordaram, afinal ela passara tantos anos mantendo o disfarce apenas para não afastar-se de Menoren, e agora aquilo não fazia mais o menor sentido. Para isso, Heka e Akh fizeram duas viagens em busca do lugar ideal para Rukhai morar e, quando enfim estava tudo preparado, levaram-na com eles no navio. Rukhai manteve-se o máximo possível fechada na cabine durante a viagem, evitando ser reconhecida pelos marinheiros e, em Palaiokastro, desembarcou com o rosto coberto por um véu.

Quando chegou à casa que tinham comprado para ela, Rukhai quase caiu de costas, reconhecendo de imediato a pensão onde, uma década atrás, tinha encontrado Akh e Heka pela primeira vez! Akh contou-lhe que a antiga dona tinha falecido e foi fácil adquirir o prédio dos herdeiros. Rukhai agora poderia mantê-lo como pensão ou transformá-lo numa enorme residência, e os irmãos pagariam as reformas necessárias. Rukhai chorava de emoção, sem saber como agradecer. De imediato decidiu continuar o negócio, de onde poderia tirar seu sustento, e Heka financiou apenas algumas melhorias básicas para renovar a aparência do edifício.

Em dois anos Rukhai casou-se com um dos guardas que Heka pagava para vigiar seu depósito em Palaiokastro, e os irmãos fizeram questão de dar-lhes valiosos presentes. De certa forma, percebiam que Rukhai tinha notado algo sobre sua Imortalidade, ou talvez tivesse sabido do assunto por Menoren. O fato era que ela nunca comentava o assunto e eles sentiam que podiam confiar nela para guardar seus segredos pelo resto da vida, por isso continuaram visitando-a e recebendo-a em casa sem restrições. Quando Rukhai teve seus filhos, ganhou presentes maravilhosos dos amigos. Em homenagem a eles, ela deu o nome de Akh a uma de suas filhas, chamando um dos meninos de Menoren, seu querido mestre. E esse menino, quando ficou mais velho, acabou indo trabalhar como marinheiro para Heka, reiniciando o curioso ciclo da vida...

*************

Mediterrâneo - 2240 a 1900 a.C.

Como o mundo tem seus misteriosos caminhos, os Imortais descobriram que, após algumas décadas, um dos filhos de Pyion casou-se com uma das filhas mais novas de Rukhai. A própria Rukhai, que ainda mantinha sua tradicional pensão em Palaiokastro, faleceu aos setenta anos, deixando dez filhos e filhas, muitos dos quais envolvidos no comércio, graças à influência de Akh e Heka. Pyion encabeçou os negócios herdados de Caulos e Nurit em Mileto até os oitenta e cinco anos. Seu irmão mais novo, contrariando as expectativas da família, preferiu estudar medicina e faleceu jovem, aos quarenta e dois anos, atacado por uma infecção misteriosa. Menoren, filho de Rukhai, foi capitão de navio até os sessenta e nove, enquanto sua irmã Akh chegou aos setenta e um anos, porém ao morrer ambos já tinham enterrado filhos e até netos, alguns vítimas de terríveis terremotos em Creta. Enquanto isso os Imortais trocaram diversas vezes de residência, transferindo-se para novos portos em cidades florescentes.

Como Heka previra, os cretenses construíam sua hegemonia cultural e comercial no Mediterrâneo, espalhando-se aos poucos pelo Peloponeso e lançando as bases da cultura que mais tarde foi chamada de minóica. O Egito continuava uma nação poderosa, apesar das periódicas crises internas, e ampliara em muito suas fronteiras originais. Os hebreus, que chegaram a formar um largo contingente de escravos no Egito, agora floresciam em seu próprio território no Retenu, a Hebréia. Os Nehesiu, ao sul do Egito, tinham aprendido muito com os colonizadores do Nilo e organizavam sua própria nação no coração do continente, a Núbia. Os fenícios dominaram as artes do comércio e da navegação, saindo da posição de coadjuvantes da História para lançar-se por terras distantes e iniciar um império marítmo que um dia ultrapassaria as fronteiras do mundo conhecido.

A tudo isso os irmãos assistiram à distância, esgueirando-se pela história desses povos como heróis sem pátria. Os séculos passados no mar começavam a enjoar, principalmente porque nada era-lhes novidade. Já tinham morado em praticamente todas as principais cidades mediterrâneas, falavam e escreviam em quase todas as línguas e dialetos usados na imensa região, sabiam de cor as rotas marítimas, conheciam os navios amigos ou rivais só de olhar. Obviamente tinham sofrido diversos revezes, inclusive um naufrágio no mar Jônico, nas costas da ilha de Zákinthos, que levou-os a perder quase trinta marinheiros e uma fortuna em mercadorias. Porém eles na época já possuíam outros navios, muitas propriedades e um patrimônio gigantesco, e nem navegavam tanto quanto antes, estando mais empenhados em administrar o que tinham do que em ampliar seus tentáculos.

Quanto a outros Imortais, raramente ouviam boatos que os levassem a crer na existência de alguma ameaça - se outros caçadores de cabeças cruzavam aqueles mares, nunca tinham tido o azar de encontrar-se com os irmãos. Para eles, só havia paz e prosperidade a perder de vista, pelo resto da eternidade.

Ou quase.

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Peloponeso, Grécia - cerca de 1900 a 1000 a.C.

Quando a supremacia dos cretenses minóicos foi gradativamente substituída pelo poderio de seus descendentes no Peloponeso, Akh e Heka resolveram mudar-se para a península, onde investiram na criação de gado e plantações de uvas. Se viajavam, era apenas para fiscalizar negócios no exterior. Aos poucos foram abandonando a navegação, vendendo alguns de seus navios e depósitos comerciais, e mantiveram apenas casas para veraneio.

Com os séculos os fenícios começaram a tomar conta do sul do Mediterrâneo, enquanto os novos reinos do Peloponeso assumiam o norte, liderados pela crescente cidadela de Micenas - o mar virou território de ninguém, ou de quem pudesse mais. Com a ordem das coisas subvertida, o tratado secreto que Heka Ma'At tinha com os piratas havia desaparecido há tempos. Também tornou-se impossível gerenciar uma rede secreta de contatos num mundo cada vez mais dividido em que até os egípcios, antes restritos à navegação no Nilo, arriscavam-se na disputa pelo mar aberto. Outros barcos começavam a usar velas para aumentar a velocidade, como Heka já fazia há séculos, e as viagens tornaram-se mais rápidas, mais rentáveis, mais concorridas. Aos poucos os dois Imortais viram-se tendo prejuízos. Sua fortuna ainda era descomunal, porém sentiram que era preciso concentrá-la novamente sob seus olhos, afinal viajar estava tornando-se perigoso.

Por segurança, passaram a investir em diversas atividades no Peloponeso e montaram pequenas fábricas para manufaturar seus próprios produtos. Se tinham olivais e parreirais, obtinham azeite e vinho. Se criavam ovelhas, fiavam a lã e vendiam tecidos. Se plantavam trigo, produziam farinha. Se criavam bois, curtiam as peles e negociavam o leite e a carne. Se obtinham a exploração de uma mina, também forjavam armas ou utensílios em metal. As novas cidadelas cresciam rapidamente, havia muito o que fazer na região.

Para adaptar-se aos novos tempos e colocar um ponto final em sua vida no mar, os dois irmãos resolveram mudar os nomes. Foi uma luta chegarem à essa conclusão, e pior ainda escolherem nomes que agradassem. Após muita birra, Akh Kheper-Apet transformou-se apenas em Aka, e Heka Ma'At virou Eksamat. Na verdade tinham apenas adotado a pronúncia de seus nomes originais na língua local, evitando confusões.

No plano pessoal, pelo fato de agora viverem restritos numa área menor, os Imortais tornaram-se mais discretos. Voltando a assumir sua feminilidade, já que não precisava mais disfarçar-se de marinheiro, Aka tinha um ou outro amante eventual. Eksamat divertia-se tanto com damas da sociedade quanto com prostitutas, dependendo do que estivesse mais à mão, e sem o mínimo preconceito.

Quando precisavam fugir de alguma cidade por qualquer motivo, ou mesmo quando o tédio os atingia, os dois enfurnavam-se em uma de suas imensas propriedades, às vezes passando-se até por humildes trabalhadores. Eksamat chegou ao cúmulo de trabalhar em uma de suas minas de cobre por três anos, e em outra ocasião decidiu aprender com os ferreiros a forjar suas próprias espadas. Aka reclamava que o trabalho dele como forjador não era grandes coisas, mas pelo menos Eksamat ficou cansado demais para correr atrás de rabos de saias por vários meses. Quando ele inventou de trabalhar numa mina de extração de mármore, Aka achou mais inteligente aprender a esculpir com um artista que depois tornou-se seu amante. Eksamat ria das peças que ela fazia, vingando-se das gozações contra suas espadas tortas, e Aka acabou por desistir da escultura e do amante ao mesmo tempo.

O coração de Eksamat, contudo, acabou sendo fisgado por uma bela jovem da cidade de Pilos, e o Imortal não resistiu, casando-se pela quarta vez. Aka adorava a cunhada e foi com extremo pesar que viu-a falecer, aos cinquenta e cinco anos, vítima de um mal cardíaco. Eksamat passou anos inconsolável, irascível e bebendo muito, até que cansou-se de sofrer e voltou à vida normal.

Quase dois séculos mais tarde, quando os irmãos mudaram-se para Micenas atrás de um soldado amante de Aka, Eksamat apaixonou-se novamente. Desta vez, foi por uma garota de quatorze anos que lembrava-lhe Nurit na mesma idade. Ao vê-la passar com os pais na rua, tímida porém altiva, o Imortal ficou catatônico. Na ocasião, Eksamat estava conversando com um grupo de amigos micenianos com quem costumava praticar artes de combate, e todos zombaram ao vê-lo perdido por uma menina tão nova. Mas Eksamat não conseguia pensar em outra coisa e tanto fez que conseguiu descobrir quem ela era e onde morava, passando a vigiar a garota à distância. Aka arrancava os cabelos para chamá-lo de volta à realidade, chegando a pedir ajuda ao namorado para que desse conselhos a seu irmão, porém sem sucesso. Teimoso, Eksamat passava horas esperando que a menina saísse à rua para segui-la ou subia em árvores para vê-la passeando entre os jardins da casa dos pais, derretendo-se em suspiros como um adolescente. Seus amigos faziam piadas, criavam versinhos para azucriná-lo quando a garota passava por eles na rua, compunham musiquinhas maliciosas para cantar nas tabernas quanto conseguiam arrastá-lo para alguma noitada.

Após dois anos de paixão recolhida, Eksamat foi forçado pela irmã a tomar uma atitude decente. Se gostava tanto assim da moça a ponto de bancar o ridículo, deveria ir de uma vez à casa dos pais dela e pedi-la em casamento. O soldado amante de Aka encorajou-o e foi com ele visitar a família da jovem. Eksamat finalmente declarou-se e, para sua surpresa, descobriu que era correspondido! A menina tímida há muito tinha notado-o constantemente na vizinhança e, vivendo seu primeiro amor, estava encantada com aquela discreta insistência romântica. Os pais da menina sabiam que Eksamat andava em companhia de rapazes bagunceiros, além de aparentar o dobro de idade da jovem, porém ele era rico e culto. Após alguns meses de namorico, a família finalmente consentiu no casamento e em pouco tempo Eksamat casou-se pela quinta vez.

Como tinha seu amante fixo, Aka resolveu que não ficaria bem ir morar com a jovem esposa do irmão, e comprou uma casinha no centro da cidade, perto do ginásio militar onde seu soldado passava a maior parte do dia. O soldado bem que gostaria de convencê-la a casar-se também, porém Aka preferia relacionamentos dos quais pudesse desligar-se sem culpas em caso de necessidade. Se algo acontecesse, forçando-a a fugir, pelo menos não carregaria o remorso de abandonar um marido. E seu apaixonado soldado também podia ser a qualquer momento enviado para uma das muitas batalhas entre os belicosos reinos locais, deixando-a viúva... Aka já tinha passado por isso uma vez e não pretendia sofrer novamente.

Numa das vezes em que seu amante tinha sido enviado com um destacamento em vistorias preventivas pela região, Aka convidou o irmão e a jovem cunhada para um jantar em família. Uma das coisas que Aka mais reclamava era da necessidade de ter empregados, pois a sociedade miceniana não via com bons olhos o fato de uma mulher rica realizar pessoalmente todas as tarefas domésticas. Por isso mantinha apenas duas criadas, mas não gostava da forma como elas temperavam sua comida. Sabendo que o irmão apreciava certos pratos que não eram comuns na culinária local, Aka achou melhor assumir a tarefa e cozinhar a seu modo para aquele jantar especial.

Zanzando entre as barracas e lojas do mercado, verificando as frutas da estação e procurando certas ervas de que precisaria, Aka chocou-se ao sentir a presença de um Imortal. Eksamat estava na cidade, mas a vibração que ela sentia era diferente, conhecia bem demais o irmão para enganar-se. Havia alguém mais em Micenas, e estava aproximando-se rapidamente!

Há cerca de mil anos Aka não sentia outro Imortal além do irmão. Tinham viajado pelos limites do Mediterrâneo conhecido e, apesar dos rumores, nunca voltaram a encontrar outros de sua espécie. Continuavam a treinar o manejo das adagas e espadas por hábito, às vezes aprendendo novas técnicas de luta com os povos com quem conviviam, contudo era mais uma forma de espantar o tédio do que de realmente preparar-se para um possível confronto. Agora, Aka estava em pânico.

Tentando não demonstrar seu medo, Aka saiu andando lentamente entre as barracas, alisando o cabo de sua longa adaga. Trazia a arma sempre consigo por puro costume, atada junto à sua coxa por baixo das várias camadas de saias, e a presença do metal junto à sua pele nunca lhe parecera mais reconfortante. Puxando um véu sobre os cabelos elegantemente enrolados ao redor da cabeça com presilhas, ela tentava ocultar-se ao mesmo tempo em que varria as redondezas com o olhar. Muitas matronas circulavam acompanhadas de criados, mercadores carregavam caixas ou sacudiam produtos diante de seus olhos. A passos mais acelerados, Aka desviou na direção oposta, tentando sair daquela confusão. Pensou em procurar o irmão em busca de ajuda, porém era justamente entre ela e o palacete de Eksamat que o outro Imortal estava, por isso resolveu correr para casa e esconder-se até que o estranho fosse embora. De lá, pelo menos poderia enviar uma das criadas em busca de Eksamat.

Dando voltas, Aka conseguiu finalmente sair do mercado. Seu estômago gelou-se quando percebeu que o estranho vinha na mesma direção e, correndo o mais rápido que lhe permitiam as longas saias, Aka entrou quase voando em casa, gritando pelas criadas. Em poucos segundos passava as trancas nas portas e ia fechar também as janelas quando uma das empregadas apareceu, avisando que sua companheira tinha saído para entregar algumas cartas. Aka tremeu. Estava sozinha com aquela mulher, e mesmo assim precisaria mandá-la à casa do irmão...

Arriscando um olhar para a rua, Aka não conseguiu identificar seu perseguidor. Sabia que ele estava muito perto, só não conseguia ver onde. Fechando as últimas janelas, decidiu-se por despachar imediatamente a única criada que lhe restara, torcendo para que a outra voltasse logo. Rabiscando um bilhete que só o irmão poderia entender, Aka empurrou a mulher porta afora, insistindo-lhe para que voasse à casa de Eksamat e não descansasse enquanto não lhe entregasse pessoalmente o recado, ainda que fosse necessário procurá-lo pela cidade.

Assim que viu a mulher disparar pela rua, Aka trancou novamente a porta e correu a buscar uma espada e outra adaga em seu quarto. Há alguns anos Eksamat tinha aprendido com amigos a lutar com duas lâminas, usando um pequeno escudo atado ao antebraço que carregava a adaga, e ensinou-a a fazer o mesmo. Mantendo a primeira adaga escondida sob as saias, Aka amarrou às pressas as tiras de couro do escudo ao braço esquerdo e empunhou as duas novas lâminas, atenta à presença do outro Imortal. Sentia-o incrivelmente perto, talvez estivesse rodeando sua casa, e restava-lhe apenas esperar que ele permanecesse do lado de fora.

Sua esperança não durou muito. Ouvindo um estrondo, soube que o outro tinha acabado de arrombar uma de suas janelas dos fundos. Saindo decididamente do quarto para enfrentá-lo, Aka encontrou-o já no corredor - um homem não muito alto, mas corpulento e ostentando um sorriso sádico no rosto bronzeado.

Aka odiou-o ao primeiro olhar, sentindo o sangue ferver. Ele fitava-a de alto a baixo, como se apreciasse sua presa. Pelas roupas ele parecia um soldado contratado, um daqueles mercenários sem pátria que vendiam-se para quem pagasse mais e que infestavam a península. Mas, pelos poucos passos gingados que ele cautelosamente dava em sua direção, Aka soube que ele já fora um marinheiro, quase com certeza um fenício. Talvez fosse um daqueles que ela sentiu em sua primeira viagem de navio, ou mesmo um dos que andaram atrás de Eksamat para vingar o mestre, que ele havia decapitado há mais de um milênio!

Nenhum dos dois dizia nada, estudando os pontos fracos um do outro. Aka sabia que estava em desvantagem por seu tamanho e por suas longas vestes, porém o outro Imortal tinha apenas uma pesada espada e não usava escudo, apenas um comprido manto azul nas costas e algumas placas de couro incrustado com tachas de metal, caindo-lhe sobre os ombros e cobrindo o alto de seu peito. Sem tirar os olhos dele, Aka recuou lentamente pelo corredor em direção à sala, onde teriam mais espaço para lutar. Ele talvez pensou que ela estava fugindo, pois deixou escapar uma risada autoconfiante. Contrariando o próprio medo, Aka sorriu com desdém e ele fechou a cara, tentando um bote rápido com a espada. Num pulo Aka estava novamente fora de seu alcance, ainda sorrindo apesar do susto. Sem endender por que ela sorria, o outro irritou-se e tentou novos golpes, porém agora Aka estava na ponta do corredor, na sala aberta, e ele ainda estava preso entre as paredes apertadas, sem espaço para mover-se.

Permitindo finalmente que ele avançasse, Aka começou a rodeá-lo, atenta a cada movimento dele. Ela sabia onde estava cada móvel e cada tapete, enquanto ele tinha que desviar o olhar com frequência para ver onde pisava. Aproveitando-se disso, Aka atacou-o com pequenos golpes rápidos de ambos os braços, obrigando-o a aparar suas duas lâminas de uma vez, o que era virtualmente impossível com uma única espada. Em poucos minutos ele já tinha vários cortes pelo corpo, além de alguns riscos em sua armadura rudimentar, enquanto ela trazia apenas o escudo um pouco amassado e as saias rasgadas até o joelho. Se tivesse tempo para pensar, Aka até agradeceria pelas saias, pois ele não via suas pernas com clareza e não conseguia feri-las, enquanto as coxas dele eram um alvo fácil e sangravam por pelo menos três lugares.

Os dois voltaram a rodear-se, recuperando o fôlego. O homem suava sob o peso do manto e da armadura. Um corte em seu supercílio esquerdo ainda sangrava, atrapalhando-lhe a visão. Reparando naquilo, Aka decidiu concentrar seus golpes na mão direita, que ele não poderia ver tão bem, e avançou protegendo-se sob o escudo. Só que o Imortal conseguiu empurrá-la contra uma banqueta, derrubando-a. O homem riu com escárnio ao vê-la engatinhar de costas para longe e, desdenhosamente, deu-lhe algum tempo para tentar fugir antes de voltar à carga. Sem pensar, Aka protegeu-se com o escudo e girou a espada contra as pernas dele, atingindo-o logo acima do joelho esquerdo. A pancada forte da lâmina dele partiu seu escudo e cortou-a até o osso, enquanto o golpe dela cortou-lhe tendões e artérias, fazendo-o gritar. Foi o tempo de que ela precisava para pôr-se novamente em pé, pálida de dor e raiva.

O Imortal fuzilou-a com o olhar e atacou com golpes pesados, tentando derrubá-la novamente. Aka não conseguia livrar-se do escudo partido e seu braço esquerdo estava praticamente inutilizado. O homem avançava mancando, deixando um largo rastro de sangue. Aka sabia que, se não terminasse logo aquela luta, em pouco tempo a perna dele voltaria ao normal, e ele estaria ainda mais enraivecido. Sua única chance era correr e foi o que ela fez, disparando pelo corredor e aproveitando para cortar os laços do escudo, que abandonou pelo caminho.

Grunhindo, o outro Imortal seguiu-a o mais rápido que podia, arrastando a perna dilacerada e brandindo a espada em gestos de fúria. Sem perceber, ele reabria a ferida e perdia cada vez mais sangue, e era o que Aka queria. Só quando encontrou-a na cozinha foi que ele entendeu a armadilha - sua visão estava turva, pontos luminosos dançavam diante de seus olhos e um suor frio começou a brotar-lhe por todo o corpo. A hemorragia o faria desmaiar em pouco tempo, precisava matá-la depressa!

Concentrando as energias num grito inumano, o Imortal avançou com violência. Aka corria e desviava, desesperada ao ver que ele ainda tinha tanta força. Ele conseguiu encurralá-la contra a parede e, num reflexo, Aka esqueceu que estava sem o escudo. Levantando o braço para defender-se, acabou levando outro golpe, bem perto do primeiro. Desta vez ela ouviu um dos ossos rachando e pensou que fosse desmaiar de dor, enquanto ele sorria com olhos embaçados, empurrando a lâmina com ambas as mãos para fazê-la ceder. Encarando-o com um ódio que jamais sentira antes, sabendo que grossas lágrimas escorriam por seu rosto, Aka girou a espada e apunhalou-o por baixo das costelas, enterrando a longa lâmina o mais fundo que podia.

Os olhos dele estreitaram-se num momento de dúvida, depois pareceram sorrir novamente, ainda forçando-a contra a parede. Aka não conteve mais o grito de agonia, ambos os ossos de seu antebraço estavam sendo fendidos de encontro a seu peito. De repente, a pressão afrouxou-se e o outro Imortal começou a desabar diante de seus olhos, o mesmo sorriso estúpido na cara, vencido pela hemorragia. Largando a própria arma, ele caiu de joelhos e levou debilmente as mãos ao cabo da espada atravessada de lado a lado em seu ventre. Tremendo descontroladamente da cabeça aos pés, Aka puxou desesperadamente as saias com a mão direita até conseguir liberar a outra adaga que tinha escondida. Percebendo em seu torpor o que ela fazia, o Imortal entrou em pânico, balançando a cabeça e tentando balbuciar alguma coisa.

Cambaleando para trás dele, Aka girou o corpo com toda a força que ainda tinha, o braço direito estendido num enorme arco, levando a adaga de encontro ao pescoço do Imortal. A cabeça dele pareceu cair vagarosamente, enquanto o corpo tombava para o lado com o impacto do golpe. Num último pensamento, insana de dor, Aka apontou a adaga suja de sangue para a cabeça que rolava e gargalhou histericamente, murmurando:

- Eu nem sei teu nome, mas... Foi uma... Enorme honra... Conhecer-te!

Quando os primeiros raios atingiram-na, Aka estava já inconsciente. Foi a força daquela energia explosiva que manteve seu corpo em pé, sacudindo-a como uma boneca, contraindo seus músculos e fazendo-a revirar os olhos. Potes de cerâmica e vidro explodiram nas prateleiras, os vitrais das janelas estilhaçaram-se, tijelas foram lançadas contra as paredes, tapetes passeavam sozinhos pelo chão. No meio do caos, Aka gemia sem saber, deixando a adaga cair de sua mão frouxa quando um raio chicoteou seu braço. Seus ossos fendidos estalavam ruidosamente, luzes entravam e saíam pelos cortes em sua carne como agulhas mágicas, seu cabelo desgrenhado era revolvido por um vento que vinha do nada, as saias rasgadas enroscavam-se em suas pernas. Quando enfim o último raio serpenteou e estalou em seus ouvidos, tudo o que estava suspenso no ar veio ao chão com estrondo, inclusive ela.

Foi assim, desmaiada em meio a poças de sangue, vinho e óleo que Eksamat encontrou a irmã, depois de arrombar a porta da frente da casa com uma força que nem imaginava ter. Ao receber o bilhete da criada, que sequer tinha fôlego para explicar-se, Eksamat desabalou-se pela cidade, dando voltas para fugir ao tumulto do maldito mercado e derrubando estranhos pelo caminho sem nem olhar para trás. Estava quase à porta da irmã quando escutou as explosões e viu os raios no fundo da casa, como se uma miraculosa tempestade tivesse invadido o lugar.

Ensandecido, Eksamat atirou-se contra as portas como um animal, rugindo e chorando de ódio. Vendo que todas as entradas estavam trancadas, usou a própria espada para destroçar a madeira, pouco importando-se com os gritos assustados de quem passava. Em segundos estava dentro da casa e os raios ainda não tinham cessado, arrastando móveis e espalhando almofadas. Vendo o pandemônio e o rio de sangue pela sala, Eksamat urrou de desespero, acreditando no pior.

Neste instante os raios desapareceram e ele conseguiu enveredar pelo corredor, patinando em mais sangue e tropeçando no escudo partido de Aka. Aquilo doeu-lhe como uma flechada no peito, fazendo-o deter-se para enxugar as lágrimas. Com passos lentos, Eksamat aproximou-se e viu a irmã caída ao lado do corpo do homem decapitado. Rompendo em soluços ao sentir a débil vibração dela, sinal de que estava viva, Eksamat passou com cuidado por entre os cacos e ergueu-a delicadamente nos braços, carregando-a para o quarto. As saias dela manchavam sua túnica com óleo e sangue, mas Eksamat nem reparava, depositando o corpo desfalecido da irmã por sobre a grande cama. Com carinho, começou a limpar lentamente o rosto dela com uma ponta de lençol.

Aka voltou a si pouco depois, debatendo-se assustada. Não tinha morrido, só desmaiado, e em seu nervosismo chegou a gritar quando o irmão agarrou-a pelos ombros, sem reconhecê-lo. Só quando ouviu a voz dele foi que ela teve consciência de que tudo tinha mesmo acabado, tinha vencido mais uma vez, e chorou como uma criança.

Alguém havia chamado os milicianos, que acorreram do quartel próximo, armados como se fossem para a guerra. Eksamat viu que não tinha outra alternativa senão deixá-los entrar. Vizinhos e transeuntes aglomeravam-se na rua, a porta estava arrombada e um corpo sem cabeça jazia no meio da cozinha - não tinha como ocultar a desgraça que acabara de acontecer ali. Inventou às pressas que fora ele quem decapitara o homem, um invasor que tentava atacar sua pobre irmã. Reconhecendo Aka como namorada de um colega, os milicianos revoltaram-se contra o morto e, embrulhando-o num saco qualquer, carregaram o corpo dali em minutos, sem mais perguntas. Aka permaneceu no quarto, tentando recompor-se, e Eksamat preparou-lhe pessoalmente um banho, deixando que os soldados fizessem o que bem entendiam. As duas criadas já estavam de volta e, mesmo assustadas com a bagunça e o sangue, a presença dos milicianos mostrou-lhes que tudo estava bem. Logo elas estavam recolhendo os cacos de vidro e cerâmica e lavando a sujeira.

Eksamat declarou que Aka venderia a casa o mais depressa possível, indo morar com ele novamente. Ela nem sequer protestou, toda sua coragem de instantes atrás havia abandonado-a. Compreensivo, Eksamat tomou as rédeas da situação e preservou a irmã ao máximo. Houve o inevitável falatório pela cidade, sua própria esposa estava apavorada, o soldado amante de Aka correu a procurá-la assim que chegou da patrulha. A todos os irmãos repetiam que o morto era um mercenário que perseguiu Aka no mercado, invadiu-lhe a casa e estava prestes a violentá-la quando Eksamat chegou e decapitou-o. O fato de algumas pessoas terem visto raios por sobre a casa foi desconsiderado, pois Aka e Eksamat faziam-se de desentendidos.

Mesmo assim, Aka quis passar uma temporada fora de Micenas e foi morar com o irmão e a cunhada numa propriedade rural nas imediações, onde tinham uma olaria. Lá, Aka distraía-se produzindo algumas peças em cerâmica e passeando sozinha pelas colinas, perdida nos próprios pensamentos. Só após um ano longe da cidade foi que ela sentiu-se segura para voltar, e estava com saudades do amante. Ninguém deu-lhe muita atenção, várias outras novidades já tinham substituído as fofocas sobre o incidente em sua casa.

Alguns anos depois seu soldado morreu numa batalha e, duas décadas mais tarde, a esposa de Eksamat faleceu, atacada por uma febre misteriosa que vitimou vários habitantes de Micenas. Os irmãos enfurnaram-se mais uma vez em uma de suas propriedades, desta vez bem mais ao norte, onde Eksamat passou oito anos em depressão. Também triste pela morte da cunhada, Aka deixou-o lamentar-se à vontade, sabendo o quanto ele amava a falecida esposa, uma mulher adorável e delicada.

Às vezes os dois tinham longas conversas, pensando em tudo o que já tinham visto e vivido, e quase sempre acabavam chorando um nos braços do outro. Em várias ocasiões Aka embriagava-se com o irmão, a única forma que conheciam de anestesiar um pouco seus corações cansados. Em outras vezes, distraíam-se lendo, fazendo algum artesanato ou simplesmente passeando pelos arredores, admirando as magníficas paisagens. Eksamat interessara-se por música graças à última esposa e algumas vezes dedilhava seu alaúde, mas só conseguia tocar canções tão tristes quanto as dores que levava na alma, acabando ainda mais deprimido do que antes.

Um dia Eksamat amanheceu decidido a retomar a vida, e Aka aplaudiu. Ambos mudaram-se para a cidade próxima, onde compraram uma casa e fizeram novos amigos. Dali a décadas mudaram-se novamente, e novamente, e novamente. Apesar de tudo, suas vidas continuavam, estavam um ao lado do outro e apoiavam-se sempre, não importava o tempo que passava. E rapidamente novos séculos escoaram-se nas areias do tempo...

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