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Educação religiosa e ensino público
Carlos Minc

Publicado no Jornal O Globo em 09/10/2000

A separação entre a Igreja e o Estado laico, há 250 anos, foi uma das bases das modernas democracias republicanas. A distinção absoluta entre a gestão da coisa pública, fundada em marcos jurídicos democráticos, e a hierarquia religiosa, confessional, fundada em princípios doutrinários, abriu o caminho para o respeito a todas as crenças e aos cidadãos ateus. Esta separação de poderes civis e eclesiásticos impediu a repetição de terríveis experiências, como a Santa Inquisição, em que a máquina repressiva estatal sustentou o braço secular persecutório dos Torquemadas e alimentou as fogueiras onde arderam judeus, mulçumanos, ciganos, mulheres insubmissas, protestantes, heroinas como Joana D'Arc e cientistas. Galileu só escapou da fogueira ao renegar suas idéias.

A lei 3459/2000 que institui a educação religiosa confessional nas escolas públicas estaduais contém várias ilegalidades e confunde as fronteiras entre a necessária liberdade religiosa e a aplicação do dinheiro público de um Estado constitucionalmente laico. A LDB - lei federal de diretrizes e bases da educação - 9394/96 determina a oferta da disciplina de educação religiosa no ensino fundamental (Primeiro Grau), com conteúdo definido pelo sistema público de ensino (art.33), ouvida as comunidades religiosas, não estabelece que o Estado custeie o ensino confessional e, sobretudo, não permite qualquer mecanismo de veto aos professores exercido pelas autoridades religiosas. A lei 3459 do dep. Carlos Dias (PPB-RJ) estende a obrigatoriedade da oferta ao Segundo Grau, estabelece que as autoridades religiosa (e não o sistema de ensino) definirão os currículos, obriga o Estado a custear essas cadeiras com o dinheiro público (da arrecadação de impostos) e impõe que estes professores, ainda que concursados, apenas exercerão a disciplina se tiverem a aprovação explícita da respectiva autoridade religiosa (art. 2º, inciso II).

Analisemos um hipotético exemplo que evidencia o absurdo desta lei: suponhamos que haja um concurso e que para a disciplina religiosa no catolicismo, frei Leonardo Boff e frei Beto tenham sido classificados nos primeiro lugares. Se eles não tiverem a aprovação explícita da Arquidiocese do Rio de Janeiro, não assumirão a disciplina. Ou seja, o dinheiro é público, inclusive do contribuinte que é ateu ou agnóstico, mas a definição do conteúdo e de quem lecionará a cadeira é de uma hierarquia eclesiástica confessional. Isto vai contra o art. 33 da LDB, portanto é ilegal e nulo de pleno direito e fere o princípio constitucional da separação entre Igreja e Estado.

A liberdade do exercício de todas as fés é uma garantia constitucional. Aprovamos na Constituição Estadual (RJ) o artigo 334 que proíbe qualquer forma de restrição ou discriminação às raças e religiões. Considero que a dimensão espiritual é necessária. Hoje nas favelas e prisões, a religião é um dos poucos contrapontos ao poder do tráfico. Devemos afirmar na educação novos valores de defesa de todas as formas de vida e de cultura. Aprovamos inovadora lei de educação ambiental (3325/99) que proporcionará a 2 milhões de estudantes mudanças de comportamento dentro e fora das salas de aula , adoção dos ambientes do entorno das escolas e envolvimento das famílias em práticas como a reciclagem.

O cerne da questão não é pôr em causa se o conhecimento da teologia e da filosofia das religiões são necessários ou se os valores espirituais ajudam a formação mais ampla das consciências. O âmago da questão é a relação constitucional entre Igreja e Estado. Ou bem a educação religiosa é fornecida em igrejas, templos, sinagogas, mesquitas, casas de culto, com determinação total de conteúdos e professores por suas autoridades, custeada pelos fiéis de cada confissão, ou é oferecida pelo Estado, que, segundo a LDB, definirá o conteúdo (ouvindo o conjunto das comunidades religiosas), preferencialmente de caráter ecumênico e contratará professores concursados sem o veto de cada Instituição, já que se trata de dinheiro público.

Imaginemos outra hipótese absurda, decorrente da apropriação confessional do conteúdo da educação religiosa. Uma disciplina de saúde pública explica aos alunos o que são as DSTs (doenças sexualmente transmissíveis) e quais as formas de evitá-las, como p.ex. os preservativos (camisinhas). Noutra cadeira, para o mesmo período escolar, um professor aplica o programa aprovado por sua hierarquia confessional, e defende que o uso da camisinha não é seguro, fere certos princípios religiosos, como o sexo voltado à reprodução e a monogamia com fidelidade. Como ficam os alunos?

Uma polêmica dessas dimensões não pode ser tratada de forma simplista, maniqueísta, reduzindo artificialmente o debate como se este fosse entre os que são favoráveis ou contrários à dimensão religiosa e espiritual. Devemos garantir a ampliação das liberdades, da informação sobre as diversas fés e doutrinas, mas não podemos perder de vista o que as experiências históricas nos ensinaram, e o que muitos líderes religiosos defendem com convicção - impedir de todas as formas, o retrocesso que seria a volta a uma relação promíscua entre o poder público democrático e as hierarquias confessionais. Esta é a base do fundamentalismo religioso, do xiitismo e da intolerância que afetam muitos países e provocam tantas guerras.

Pensamento: "Os budistas encontravam contentamento em viver, em mudar como as estações mudavam, em aceitar tudo o que a vida tinha a oferecer....ou tomar. Os católicos lutavam contra a ordem natural, acreditavam que o homem devia estar acima destes instintos baixos, que devia impor sua própria ordem específica sobre a anarquia já existente" Eric Van Lusbader, Livro Jian


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