Publicado no Jornal Folha de São Paulo em 16/08/98
É curioso como certos assuntos não
morrem nunca. É o caso de uma fraude medieval, um
brilhante feito da malandragem que algumas pessoas insistem em
considerar um objeto sagrado. O Santo Sudário exposto em
uma igreja em Turim, Itália, não passa de uma
pintura bem feita por um artista espertalhão. Mas tem
sido venerado como o pano que teria envolvido o cadáver
ensanguentado de Jesus de Nazaré, líder de uma
seita religiosa judaica e que se dizia filho de Deus.
O que está por trás da nova
onda de veneração desse objeto é o fato de
ele ter começado a ser exposto à visitação
pública, e de o próprio papa ter sido ambíguo
em relação a sua autenticidade. Não há
nada de rigorosamente novo sobre o Sudário, a não
ser especulações de alguns crentes, e a péssima
mania dos meios de comunicação de procurarem pêlo
em ovo. Para "esquentar" a notícia, os órgãos
de imprensa retomaram o assunto enfatizando a possibilidade de o
Sudário ser autêntico, naturalmente ouvindo os crédulos
de plantão.
Curiosamente, a Bíblia não
fala de um Sudário, mas de vários panos que teriam
envolvido o líder dos que depois seriam chamados de cristãos.
O Sudário já foi alvo de
pesquisas científicas anteriores _que mostraram que ele
datava da Idade Média. Mostrou-se até mesmo que as
manchas não eram de sangue, mas de um pigmento de tinta.
Algumas conclusões são até mesmo óbvias.
Quem já manchou uma camisa com sangue sabe que a mancha
fica marrom, não vermelha. Mas o Sudário é
de um vermelho vivo.
Ou veja a própria posição
do corpo, que dificilmente deixaria as manchas que ali estão.
Basta ver a posição nada natural dos cabelos ou
das orelhas. É claro, se você acha que é um
milagre, nenhum argumento racional vai convencê-lo do
contrário.
Há quem diga que "acharam DNA"
no Sudário. E daí? Material genético tem em
toda a parte, qualquer célula humana tem o seu DNA. A
coisa mais comum é haver contaminação
nesses testes que buscam detectar quantidades pequenas do
material. Só espero que não digam que é o
DNA de Jesus. E se alguém sugerir clonar o homem?
Era comum haver relíquias desse
tipo na Idade Média, especialmente depois das Cruzadas a
Jerusalém. Havia tantos pedaços de madeira da "verdadeira
cruz" que daria para construir um navio. Só Sudários,
a história registra uns 40, diz Joe Nickell, autor de um
livro cético sobre o pano de Turim (infelizmente, no
Brasil as editoras só traduzem as bobagens místicas,
quando o livro de Nickell seria mais conveniente).
O documento mais interessante ligado ao
Sudário é uma carta de um bispo medieval,
reclamando do uso que estava sendo feito do pano por alguns
malandros. O bispo francês Pierre D'Arcis, nessa carta de
1389, já dizia que alguns ladrões se aproveitavam
do sudário para "roubar as bolsas dos peregrinos".
E o bispo também dizia que ele tinha sido obra de um
artista local.
É pena que ele não mencionou
o nome do artista, que mereceria ser lembrado nos livros de história
da arte, e não nos de religião. Mas mesmo que ele
tivesse dado o nome e o RG do sujeito, ainda haveria uma revista
"Time" dando destaque para esse pedaço de pano
pintado.
Nickell afirma que certa vez uma mulher
lhe disse que o importante não era saber se o Sudário
era verdadeiro ou não. O que importava era que ele
ajudava a trazer devotos para a igreja. "Madame, a senhora
me assusta", disse Nickell para a maquiavélica católica.
A autoridade dos papas
Publicado em 02/07/2000 no Jornal Folha de
São Paulo
Autor: RICHARD RORTY
O filósofo Richard Rorty comenta "Pecado
Papal", obra recém-lançada nos EUA que faz um
indiciamento irrestrito e devastador da atuação
dos líderes católicos
A autoridade dos papas
Richard Rorty
especial para "The NYT Book Review"
A maioria das grandes organizações
possui procedimentos por meio dos quais pode repudiar os atos de
um executivo-chefe que tenha tomado decisões autocráticas
e desastrosas. A igreja Católica Romana também os
possui, em tese _tem um Conselho Geral autorizado a modificar
doutrinas ou políticas do governo. Mas nos últimos
dois ou três séculos a intimidação
papal reduziu os conselhos à impotência. Assim, os
católicos que, como Gary Wills, acham que o papado está
envergonhando a igreja, não têm a quem recorrer, a
não ser aos colegas de congregação.
Wills, historiador eminente e um dos mais
intelectualmente respeitados membros do laicato católico
nos Estados Unidos, escreveu um livro que é um
indiciamento devastador e irrestrito dos papas. Na primeira
parte de "Papal Sin" (Pecado Papal) _"Desonestidades
Históricas"_, ele mostra como a hierarquia eclesiástica
tem mentido e se esquivado de maneira constante quanto ao que a
igreja fez ou deixou de fazer durante o Holocausto. A segunda
parte _"Desonestidades Doutrinais"_ argumenta que os
papas recentes viraram leninistas: passaram a preocupar-se mais
em conservar seu domínio e autoridade do que em atender às
necessidades daqueles a quem afirmam servir.
Nas duas últimas partes do livro _"A
Questão da Honestidade" e "O Esplendor da
Verdade"_, Wills escreve sobre seus heróis: lorde
Acton, o cardeal Newman e Santo Agostinho, oferecendo-os como
exemplos a quem a igreja poderia se voltar para escapar das
orwellianas "estruturas de falsidade" hoje embutidas
na prática pontifical.
Crime horrendo
Em 1864, Pio 9º denunciou aqueles que
ousavam afirmar que "o pontífice romano pode e deve
se reconciliar com e aceitar o progresso, o liberalismo e a
civilização moderna". Lorde Acton _como
Wills, historiador respeitado e acadêmico perfeitamente
capaz de fazer frente aos teólogos do Vaticano no próprio
território deles_ percebeu que o papa estava conferindo
uma imagem ridícula ao catolicismo. Assim, fez tudo que pôde
para persuadir o concílio Vaticano Primeiro a não
dar a Pio 9º o que ele mais queria: a ratificação
da doutrina da infalibilidade papal. Acton perdeu a batalha, mas
apenas depois de Pio 9º ter utilizado todos os truques do
repertório eclesiástico para obrigar os sacerdotes
do concílio a seguir a linha traçada por ele.
Wills afirma que Pio 9º é "uma presença
no Vaticano até hoje".
A falsidade e arrogância papais são
ilustradas de maneira mais vívida, para Wills, pelo fato
de Paulo 6º ter retirado a questão do controle de
natalidade das mãos do concílio Vaticano Segundo.
Paulo 6º, diz ele, se apavorou diante da possibilidade de
os clérigos do concílio repudiarem os
pronunciamentos contrários à contracepção
feitos por Pio 11, que, em 1930, anunciara a visão
descrita por Monty Python como aquela segundo a qual "todo
espermatozóide é sagrado" ("a Divina
Majestade", escrevera Pio 11, "vê com o maior
repúdio possível esse crime horrendo" _ou
seja, o homem derramar suas sementes no chão ou dentro de
uma camisinha).
Assim, Paulo 6º decidiu que seria
melhor dificultar a vida de gerações futuras de
católicos do que permitir que o concílio admitisse
que um seu antecessor tinha cometido um engano. Wills diz que o
"Humanae Vitae", a encíclica lançada por
Paulo 6º em 1968 na qual ele reafirma a proibição
da contracepção, "não diz respeito ao
sexo, na realidade. Diz respeito à autoridade. Paulo 6º
decidiu a questão com base exclusivamente nisso".
Wills utiliza esse episódio para
chegar ao ponto mais importante que quer deixar claro: "Agora
pedem que aceitemos que apenas o papa, e mais ninguém,
seja autorizado a dizer aos cristãos como eles devem
viver... O Espírito Santo agora fala com apenas uma
pessoa na Terra, o onicompetente chefe da igreja, igreja essa
que é toda cabeça, sem membros. Se fosse assim, o
corpo de Cristo teria sido vergonhosamente reduzido". Mas
ele tem muitos outros exemplos de desonestidade a dar:
interpretações distorcidas das Escrituras, distorções
manifestas e não disfarçadas da história
eclesiástica, infindáveis queixas hipócritas
e mentiras puras e simples.
Ele é espantosamente franco sobre
questões que a maioria dos escritores católicos
evita, como quando escreve: "Na verdade, a admissão
de homens e mulheres casados ao sacerdócio _que não
poderá deixar de ser aceita algum dia, de qualquer
maneira_ pode muito bem terminar por ser aceita pelos motivos
errados, não porque as mulheres e a comunidade o mereçam,
mas em razão do pânico gerado pela percepção
de que o sacerdócio está se tornando
predominantemente gay". Ele é igualmente franco e
sem meias palavras quando se refere ao papa atual, que descreve
nos mesmos tipos de termos usados por Acton com referência
a Pio 11: "O restante da igreja é obrigado a viver
em estruturas de falsidade porque esse homem isolado se mantém
fiel a sua visão intensamente pessoal".
Tirania papal
Seria concebível que um autor não-católico
tivesse redigido os primeiros 15 capítulos do livro de
Wills _aqueles que retiram pedras para jogar luz no que se
esconde debaixo delas, revelando prelados, acobertando
desesperadamente acobertamentos anteriores. Mas apenas alguém
que está envolvido na história da igreja e que
participa regularmente da missa católica poderia ter
escrito os últimos seis capítulos. Nestes, Wills
pede a seus colegas católicos que não apenas
derrubem a tirania papal, mas também renunciem à
convicção de que sua igreja guarda as chaves do
paraíso.
Wills vê como totalmente inválida
a doutrina da sucessão apostólica, que afirma que
Roma, mas não Canterbury ou Salt Lake City, pode suprir
os sacerdotes que herdam dos apóstolos o poder de
transubstanciar os elementos da eucaristia, com isso oferecendo
aos fiéis a possibilidade de consumir o próprio
corpo e sangue de Cristo. Ele preferiria que a teoria da
transubstanciação nunca tivesse sido imaginada e
que padres e bispos ainda fossem escolhidos pelas comunidades de
fiéis (como eram na época de Agostinho), em lugar
de serem indicados pelo departamento de pessoal da cúria.
A igreja dos sonhos de Wills "não restringiria o
sacerdócio aos padres, os magos da transformação
eucarística. Não preferiria privar comunidades
inteiras de seus sacerdotes a relaxar um código de
celibato que nunca foi imposto aos apóstolos".
Num capítulo que o cardeal Joseph
Ratzinger e outros dinossauros do Vaticano verão como o
auge da irreverência e do desrespeito, Wills deplora o
culto da Virgem. Ele sugere que os católicos localizem o
elemento feminino do divino na Terceira Pessoa da Santíssima
Trindade, à qual se refere como "ela" em lugar
de "it", o pronome sem gênero no inglês.
Muitos católicos que não se
pautam pelas idéias de Ratzinger podem achar essa idéia
exagerada. Apesar disso, podem espantar-se com o que Wills tem a
lhes dizer sobre a ausência da maior parte da doutrina católica
contemporânea (incluindo a mariologia) das Escrituras e
das crenças dos fiéis nos primeiros quatro séculos
depois de Cristo _espantar-se tanto quanto se espantaram os católicos
dos tempos de Lutero ao ouvir algumas dessas mesmas coisas.
Mas Lutero não teve nenhum desejo
de dividir a igreja, e Wills tampouco. Ele anseia por reformas
internas, não por um cisma. Quer que o próximo
papa seja Gorbatchov, contra o Lênin de Pio 11.
Wills leva completamente a sério o
texto (João 14:6) que afirma que Cristo é verdade.
Ele louva Agostinho, que qualifica como o teólogo que
mais bem compreendeu e explicou essa afirmativa, e o toma como
autoridade que fundamenta a visão de que "o novo
pecado papal, o pecado do logro, é pior do que os pecados
antigos e mais vívidos da cobiça material, da ambição
soberba ou da licenciosidade sexual. Trata-se de um pecado
espiritual, da frustração interior do acesso do
Espírito à alma". Mas talvez tivesse mais
dificuldade em conseguir a concordância de Agostinho
quando diz: "Acho que minha igreja não detém
o monopólio do Espírito, que respira onde Ela
quer, em cada seita e igreja cristã. Na verdade, Ela
respira em toda a vida religiosa, onde quer que seja que se dê
ouvidos ao chamado da religião, entre judeus, budistas,
muçulmanos e outros". Essa é a linguagem do século
19 de Acton, não do século 4º de Agostinho.
igreja livre e democrática
Wills é um historiador da liberdade
americana cujos escritos infundiram nova vida às palavras
de Jefferson e Lincoln. Como já se poderia prever, ele
quer uma Igreja Católica livre e democrática, uma
igreja que não tenha tempo para sair à caça
de heresias e na qual o papa faça jus ao título
antigo de "servo dos servos de Deus". No entanto
Agostinho passou muito tempo detectando e denunciando heresias,
e a mesma coisa terá que ser feita por qualquer instituição
que quiser reivindicar para si uma ligação
especial e privilegiada com o divino.
Se Deus realmente é generoso o
suficiente para reconhecer que judeus e budistas dão
ouvidos a seu chamado, então não está claro
por que precisamos de uma igreja de Cristo. Mas, se de fato
precisarmos dela, então ela irá excluir além
de incluir, e a caça às heresias vai continuar
sendo uma estratégia de exclusão inelutável.
A visão tradicional da igreja tem
sido a de que Deus não é tão generoso assim
e que os cristãos precisam acreditar que os apóstolos
de Cristo e seus sucessores autorizados _mas não os de
Joseph Smith, de Buda ou de Maomé_ proporcionam os meios
necessários à salvação. Agostinho
teria concordado com isso, para melhor ou para pior. Wills não
concorda. O momento de sua polêmica esplendidamente
apaixonada o deixa frente a frente com a pergunta: uma igreja de
Cristo idealmente honesta e livre ainda seria uma igreja?
Papal Sin
326 págs., US$ 25
de Garry Wills. Doubleday
(Estados Unidos).
Onde encomendar
Em SP, na livraria Cultura (tel. 0/xx/11/
285-4033), e, no RJ, na livraria Leonardo da Vinci (tel.
0/xx/21/533-2237).
Richard Rorty é filósofo
americano e professor na Universidade de Stanford. É
autor, entre outros, de "Para Realizar a América"
(DP&A), e "Ensaios sobre Heidegger e Outros"
(Relume-Dumará).