Publicado no Observatório da
Imprensa em 24/10/2000
Este pequeno ensaio propõe que os
personagens Padre Marcelo e Tiazinha são produtos que
contribuem (não sozinhos, obviamente) para a crescente
onda de violência patológica de nossa sociedade.
A violência patológica é
aquela desproporcionalmente maior que seu motivo desencadeante e
na qual o agente violento apresenta, durante a ação,
um desvio de comportamento absolutamente caracterizado. São
exemplos cotidianos de violência patológica as
chacinas, os homicídios por motivo torpe, o comportamento
destrutivo das torcidas uniformizadas e muitos outros fatos que
considerável parcela da imprensa explora comercialmente e
banaliza.
O que é mais preocupante na análise
dos casos de violência patológica é que ela
não se restringe às ações de indivíduos
claramente desequilibrados, como o estudante de Medicina que
disparou uma submetralhadora contra a platéia de um
cinema do Morumbi Shopping porque "sempre" teve "na
mente que deveria matar alguém" (NetEstado, 4/11/99)
ou como o motoboy que estuprava e matava suas vítimas no
Parque do Estado e que "embora não tivesse
experimentado começava "a desejar comer carne humana"
(NetEstado, 8/8/99). A violência patológica é,
freqüentemente, praticada por indivíduos "normais"
que, "de repente", mostram-se desequilibrados, como os
policiais militares que invadiram a Casa de Detenção
do Carandiru e promoveram, em menos 30 minutos, um massacre com
111 mortos e mais de 100 feridos, detentos "metralhados
depois de se entregarem" e "que tiveram órgãos
arrancados pelos cães" (NetEstado, 23/3/99).
De onde vem a violência patológica
De forma simplificada, podemos dizer que a
violência patológica é resultado de dois
fatores: um impulso doentio e um modelo de comportamento. O
impulso doentio é o cerne e o esteio do ato violento. É
o dever matar, o precisar estuprar, o ter que fazer, a satisfação
de ter feito e, muitas vezes, a compulsão pelo refazer. O
modelo de comportamento, que se complementa pela disponibilidade
dos meios necessários para a prática da ação
violenta, é a receita do matar, a receita do estuprar, a
receita do fazer.
É evidente que a mídia
fornece os modelos de comportamento violento quando programas
como Cidade Alerta e jornais como Notícias Populares
estimulam a morbidez da população na busca da audiência
e de leitores. É evidente também que indivíduos
neuróticos apresentam freqüentemente impulsos
doentios. O que não é evidente é que os
produtos Padre Marcelo e Tiazinha estimulam a formação
da neurose porque incentivam um desequilíbrio no conflito
fundamental da formação da personalidade humana, o
Complexo de Édipo.
O produto Padre Marcelo
Uma armadilha que devemos evitar,
sobretudo quando tratamos de assuntos polêmicos como os
religiosos, são as discussões intermináveis
sobre alguns conceitos que dependem muito mais de uma definição
razoavelmente precisa do que de qualquer outra coisa. Sendo
assim, podemos afirmar que Padre Marcelo é um produto
simplesmente levando em consideração que "um
produto é algo que pode ser oferecido a um mercado, para
sua apreciação, aquisição, uso ou
consumo" e que "os produtos consistem, no sentido
amplo da palavra, em algo que pode ser comercializado, incluindo
objetos físicos, serviços, pessoas, lugares,
organizações e idéias" (Philip Kotler,
Administração de Marketing, 2ª edição,
pág. 506).
Este ponto de vista, que por si só
já é incontestável, é corroborado
pelo professor João Décio Passos, coordenador do
Departamento de Teologia e Ciências da Religião da
PUC de São Paulo, para quem Padre Marcelo é um "produto"
que, "com seu visual, suas músicas e sua aeróbica,
corresponde ao padrão da mídia, que explora sua
capacidade de comunicação para construir um ídolo
popular", e pelo padre Virgílio Leite Uchôa,
assessor político da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), que reconhece, nos eventos liderados
pelo Padre Marcelo, um "forte apelo emocional" e uma "importância
marcante da imagem e da mídia eletrônica"
(Yahoo! Brasil Notícias, 7/11/99).
O que Padre Marcelo não é,
certamente, é um sacerdote com discurso religioso
profundo, atuação política destacada ou
qualquer outra característica que o tornasse mais
semelhante a Dom Paulo Evaristo Arns, por exemplo, e menos
parecido com um "mauricinho" típico da televisão:
branco, alto, "aeróbico", vazio, freqüentador
de lugares badalados e ídolo das menininhas - semelhante,
mas menos divertido, que o falecido vocalista Dinho, do grupo
Mamonas Assassinas, que parece ter inspirado um dos maiores
sucessos do padre, o Vira de Jesus.
O sucesso do padre
Deixando de lado a possibilidade de uma
intervenção divina, é razoável que
se procure uma explicação plausível para o
sucesso de um padre que consegue reunir centenas de milhares de
pessoas em sua missas, que vende centenas de milhares de CDs e
que é disputado freneticamente pelas maiores redes de
televisão, especialmente na acirrada briga pela audiência
dominical.
Pelo que já foi exposto, o sucesso
do "padre-cantor" (expressão utilizada pela
revista Veja de 10/11/99) não se deve às suas
qualidades de padre, que de forma alguma lhe sobressaem. O
repertório dos CDs também não parece, pelo
menos em princípio, ser responsável por tamanha
popularidade - é tão pobre que inclui o Hino
Nacional e a Ave Maria (nada contra o hino e a reza que,
exatamente por serem solenes, não combinam com a aeróbica
das outras músicas).
Mas se o padre-cantor não faz
sucesso nem por ser padre nem por ser cantor, voltamos ao ponto
inicial: de onde vem o sucesso de Padre Marcelo? A música
Vira de Jesus, cuja parte mais marcante (o vira) foi copiada do
grande sucesso Vira-vira, dos Mamonas Assassinas, fornece
algumas pistas.
Vira de Jesus [Padre Marcelo]
E os homens, por que vieram? / Viemos louvar ao Senhor
Aleluia, aleluia / Glória e louvor ao Senhor
As mulheres, por que vieram? / Viemos louvar ao Senhor
Aleluia, aleluia / Glória e louvor ao Senhor
Os jovens, por que vieram? / Viemos louvar ao Senhor
Aleluia, aleluia / Glória e louvor ao Senhor
As crianças, por que vieram? / Viemos louvar ao Senhor
Aleluia, aleluia / Glória e louvor ao Senhor
Vira-vira [Mamonas Assassinas, última estrofe]
Oh, Maria essa suruba me excita
Arrebita, arrebita, arrebita
Então vá fazer amor com uma cabrita
Arrebita, arrebita, arrebita
Mas Maria isto é bom que te exercita
Bate o pé, arrebita, arrebita
Manoel tu, na cabeça, tem titica
Larga de putaria e vá cuidar da padaria
Estas duas músicas, numa vista
superficial, nada têm em comum, mas se admitirmos, mesmo
que pareça absurdo, que o tema seja o mesmo - uma suruba
- poderemos encontrar uma explicação para o fato
de que os velhos foram suprimidos no "vira" do padre:
seguindo o censo comum, os idosos não se encaixam na idéia
da suruba. Esta rejeição aos velhos não é
tão evidente no disco de Padre Marcelo, mas é em
algumas apresentações ao vivo em que ele canta "E
os velhos, por que vieram?" e afirma, depois que parte do
povo responde "vieram louvar ao Senhor", que não
há velhos para Jesus, embora a Bíblia esteja
repleta de anciãos.
Continuando na mesma linha de raciocínio,
pode-se encontrar uma explicação para as perguntas
"... por que vieram?": quando se vai a uma suruba,
deve-se ter um outro destino para se declarar. Estas especulações
não seriam dignas de crédito se não fossem
ratificadas por dizeres de duplo sentido de outras músicas.
No Iê, iê, iê de Jesus, por exemplo, sob o
pretexto de rezar, ocorrem pulos e gritos, que são muito
mais relacionados aos prazeres carnais do que à tradição
católica daquele que busca elevar-se espiritualmente na
direção da divindade.
Iê, iê, iê de Jesus
Iê, iê, iê, iê, iê, iê, iê...
/ Uou, uou, uou, uou, uou, uou, uou...
Reza, reza, reza, nós rezaremos!
Louva, louva, louva, nós louvaremos!
Iê, iê, iê, iê, iê, iê, iê...
/ Uou, uou, uou, uou, uou, uou, uou...
Corre, corre, corre, nós correremos!
Pula, pula, pula, nós pularemos!
Iê, iê, iê, iê, iê, iê, iê...
/ Uou, uou, uou, uou, uou, uou, uou...
Pula, pula, pula, nós pularemos!
Grita, grita, grita, nós gritaremos!
Mas a música que definitivamente
carrega em si toda uma série de conotações
sexuais é a que talvez seja o maior sucesso do padre:
Erguei as Mãos.
Erguei as Mãos
Erguei as mãos e dai glória a Deus / Erguei as mãos
e dai glória a Deus
Erguei as mãos e cantai como os filhos do Senhor
Os animaizinhos subiram de dois em dois / Os animaizinhos
subiram de dois em dois
O elefante e os passarinhos, como os filhos do Senhor
Erguei as mãos e dai glória a Deus / Erguei as mãos
e dai glória a Deus
Erguei as mãos e cantai como os filhos do Senhor
Os animaizinhos subiram de dois em dois / Os animaizinhos
subiram de dois em dois
A minhoquinha e os pingüins, como os filhos do Senhor
Erguei as mãos e dai glória a Deus / Erguei as mãos
e dai glória a Deus
Erguei as mãos e cantai como os filhos do Senhor
Os animaizinhos subiram de dois em dois / Os animaizinhos
subiram de dois em dois
O canguru e os sapinhos, como os filhos do Senhor
Esta letra refere-se à arca de Noé,
embarcação em que foram reunidos um macho e uma fêmea
de cada espécie animal para que eles se reproduzissem
(fizessem sexo) depois do dilúvio. A primeira "curiosidade"
significativa sobre Erguei as Mãos é a escolha dos
bichos. Enquanto as histórias tradicionais sobre o dilúvio
apresentam um tipo muito característico de animal, os mamíferos,
que fornecem alimento e vestimenta ao homem, como boi e vaca,
carneiro e ovelha, Erguei as Mãos optou por símbolos
fálicos como o elefante (representado, na coreografia do
padre, pelo balançar da tromba), o passarinho (termo
usado para se referir ao pênis), a minhoquinha (idem) e o
pingüim (cuja coreografia ressalta o contraste de sua
rigidez com a moleza da minhoca lembrando os estados de ereção
e relaxamento do órgão sexual masculino).
No final da canção, o
canguru lembra a figura materna, já que é
associado freqüentemente à bolsa abdominal em que
podem ser carregados os filhotes, e o sapo representa não
apenas a sexualidade que pode ser associada à viscosidade
de sua pele e à capacidade de inflar quando excitado, mas
também um certo repúdio ao sexo, como nos inúmeros
contos de fada em que, para desposar o príncipe a garota
tem que suplantar o asco que sente pelo sapo (ver Bruno
Bettelheim, A psicanálise dos contos de fadas).
Sendo assim, parece que existe um clima de
sexo e de repressão na arca de Noé do padre. Mas
existe outro "problema" nesta cena: num exercício
trivial de lógica, temos que se "os animaizinhos
subiram de dois em dois", algo que não tenha subido
de dois em dois não é um animalzinho, ou seja, o
elefante, a minhoquinha e o canguru não são
animaizinhos. Sendo assim, enquanto os animaizinhos se preparam
para procriar, estão sendo seguidos, observados.
Novamente, sexo e repressão.
Continuando, temos ainda que os animais e
os pseudo-animais, com exceção do canguru, são
todos símbolos masculinos. Com a mãe-canguru menos
importante, temos voyeurismo e homossexualismo.
O desequilíbrio no conflito do
Complexo de Édipo
Segundo Alberto Reis, em Teorias da
Personalidade em Freud, Reich e Jung (coordenação
de Clara Regina Rappaport), pág. 37, "o complexo de Édipo
refere-se a um drama vivido intensamente pela criança"
quando ela "passa a dirigir sua libido para a mãe",
mas encontra uma recusa, a proibição do incesto.
No caso da criança do sexo masculino, ela "vislumbra
o poder do falo nas excitações genitais (...)
primordialmente, dirigidas à mãe" mas
encontra uma barreira para suas "pretensões eróticas
infantis", que é a "presença paterna".
Para o menino, a solução do complexo é
identificar-se com o pai e dirigir a libido para outras
mulheres, que substituem a mãe. No caso da criança
do sexo feminino, o interesse erótico da menina, no
Complexo de Édipo, é desviado para o pai e "é
identificando-se com a mãe que a menina passa a assumir a
identidade feminina e buscar, nos homens, similares do pai".
O personagem Padre Marcelo, sendo pai
(padre é pai, e é o que ensina, julga e perdoa),
traz em si um modelo de solução do Complexo de Édipo
diferente do saudável, baseado num pai que é
voyeur e homossexual. Como os conflitos infantis permeiam a vida
do indivíduo adulto, esta resolução
imperfeita do Complexo de Édipo propicia um reavivamento
do conflito estimulando uma solução neurótica
que nutre e é nutrida pela tendência ao
comportamento compulsivo que estimula e é estimulada
pelas freqüentes e inflamadas aparições do
padre na mídia.
Voltando ao nosso esquema inicial, temos
então que Padre Marcelo fomenta a geração
de indivíduos neuróticos que, com impulsos
doentios, modelos de comportamento e os meios necessários,
praticam a violência patológica.
Tiazinha, a mulher do padre
No conflito do Complexo de Édipo
masculino, a mãe aparece como um objeto de desejo que é
negado com a ameaça da castração. A
personagem Tiazinha encarna a mãe (tia é quase mãe)
do Complexo de Édipo, fazendo uma castração
pela depilação. Esta depilação é
uma castração porque o arrancar dos pêlos
substitui o arrancar do pênis pela perversão sexual
conhecida como fetichismo (no fetichismo, a atenção
que deveria ser dirigida aos órgãos sexuais é
dirigida a outras partes do corpo ou a objetos). O fetichismo da
depilação promovida por Tiazinha é
acompanhado ainda pela perversão do masoquismo, em que o
prazer erótico é obtido pela submissão
moral e pela dor física de um dos parceiros.
Assim, enquanto Padre Marcelo traz, para o
Complexo de Édipo, uma solução baseada no
homossexualismo e no voyeurismo, Tiazinha baseia sua solução
no fetichismo e no sadomasoquismo.
A semelhança na essência e a
dessemelhança na forma dos dois personagens poderia
parecer estranha se não nos detivéssemos no fato
de que educamos os meninos e as meninas de forma completamente
antagônica. Para os meninos, é certo que tenham o
desejo sexual. Só não podem dirigir este desejo
para a mamãe... por isso Tiazinha é explícita
em termos de sexualidade e nega sua identidade (inclusive com a
máscara que faz parte de seu visual típico). Para
as meninas, é certo que tenham ligações
fortes com o papai (estas ligações, com menor
intensidade, são permitidas aos meninos também). Só
não podem ter o desejo sexual... por isso Padre Marcelo não
precisa negar sua identidade (padre é pai), mas precisa
esconder ao máximo sua sexualidade.
O controle social dos meios de
comunicação
Com tudo o que foi exposto, torna-se mais
uma vez evidente que é necessário um controle
social dos meios de comunicação, principalmente
das concessões públicas de TV. Não se
questiona aqui o sagrado direito democrático de se
expressar uma opinião. Mas se até esta opinião
precisa respeitar certos limites (não pode ser racista, não
pode insuflar atos criminosos), a desinformação de
apelo violento ou sexual deve ser limitada.
Apenas para citar um exemplo óbvio
demais de abuso, deve-se reconhecer que a família
brasileira tem o direito de educar seus filhos e suas filhas sem
que a quase totalidade das coreografias exibidas nas apresentações
musicais da TV seja marcada pelo movimento de puxar os braços
para trás e projetar os quadris para a frente,
representando o coito e dizendo algo idiota como "Vem neném,
neném, vem neném, neném vem, neném,
neném vem!".
É preciso dar um basta nisso tudo
antes que Tiazinha, "nossa" heroína infantil,
resolva aparecer num programa vespertino fazendo a felação
que insinuou chupando o dedo médio na capa da revista
Playboy.
(*) Consultor de Tecnologia em RH,
analista de sistemas, projetista de banco de dados e webdesigner
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