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A história de uma farsa que se mostrou bem lucrativa
José Meirelles Passos

Publicado no Jornal O Globo em 11/03/2001

Detalhes de uma conspiração para evitar que o presidente Fernando Henrique Cardoso fosse reeleito em 1998 são contados agora, pela primeira vez, por quem até hoje é tido como o cérebro da fraude: o empresário Oscar de Barros. Ele é dono de duas firmas de consultoria financeira em Miami, especializadas em abrir empresas em paraísos fiscais.

Depois de um silêncio de dois anos e meio, Barros disse dias atrás estar cansado de aparecer como suspeito de uma manobra de difamação que, segundo reafirmou, foi realizada por pessoas que estavam ao seu redor e que usaram o seu nome para tentar dar legitimidade a documentos falsos.

-- Esses papéis foram fabricados por uma turminha pouco recomendável de Miami. São todos brasileiros. Não quero que continuem me colocando nesse barco - disse Barros em entrevista exclusiva ao GLOBO.

O empresário aguarda sentença que lhe será ditada em fins de abril, depois de ter sido condenado por um tribunal federal da Flórida, no mês passado, num outro caso. O FBI reuniu provas de sua participação em operações de lavagem de dinheiro do narcotráfico colombiano e também num plano de contrabando de cocaína para os EUA.

Barros falou durante oito horas e meia, divididas em três sessões, ao som de música clássica entrecortada por repentinas intervenções de duas cacatuas-mini (uma espécie de papagaio). A conversa foi na sala de seu apartamento no edifício The Palace, na Avenida Brickell, com uma magnífica vista para a baía e atracadouro próprio nos fundos.

- Não tenho nada contra Fernando Henrique. Nem a favor. Imagino que ele tenha sofrido muito com isso. Deve ter ficado noites sem dormir - disse Barros.

Ele garantiu que, apesar de procurado por políticos brasileiros para participar da trama, preferiu ficar fora. Na sua versão, o principal responsável pela campanha de difamação do presidente é um outro empresário brasileiro que vive em Miami há duas décadas:

-- Quem comandou essa operação foi Luiz Cláudio Ferraz Silva. Enviaram dinheiro para ele, que saiu em busca dos papéis. Com a ajuda de um advogado, obteve uma certidão legítima de uma empresa nas Bahamas, e usou esse papel como matriz para o pacote com material falso. Para dar um ar de legitimidade aos documentos, utilizou uma folha com o logotipo da minha empresa, que é conhecida no Brasil, principalmente nos meios políticos, como uma firma especializada em negócios offshore.

Fornecedor de equipamentos médicos para o Ministério da Saúde e braço direito do ex-presidente Fernando Collor nos EUA, Ferraz Silva nega-se a falar a respeito. Seu advogado, Jack Rubino, que se tornou famoso por representar o general Manuel Noriega no processo movido pelo governo americano, afirmou que o seu cliente não tinha interesse em conversar sobre o assunto.

Barros, que está em prisão domiciliar, disse que levou oito meses investigando o caso por conta própria, na tentativa de descobrir quem havia envolvido o seu nome. Segundo apurou, os papéis custaram menos de mil dólares e foram vendidos por US$ 4 milhões a um pequeno grupo de políticos e empresários. Embora não tenham evitado a reeleição de Fernando Henrique - teriam rendido milhões de dólares ("eles falavam em cerca de US$ 200 milhões") às pessoas que manipularam o pacote.

Os autores teriam enriquecido com operações em bolsas de valores, no mercado paralelo de dólares e em títulos da dívida externa brasileira. O dossiê, segundo Barros, foi divulgado pelo grupo para gerar notícias que sacudissem o mercado financeiro:

-- O senador Gilberto Miranda foi uma das pessoas que ganharam muito dinheiro com o dossiê.

O senhor acompanhou os negócios de Caio Fábio com Ferraz a respeito do dossiê?

BARROS: Vi essa história de perto porque aconteceu na minha frente. Depois que surgiu o nome da minha empresa na papelada, comecei a investigar e reconstitui os passos. Depois do acerto com o Zé Ferraz, Caio Fábio deixou de ser meu cliente. Os negócios dele ficaram com o Ferraz.

Os US$ 350 mil restantes apareceram?

BARROS: Foram enviados do Brasil pelo Francisco Rossi, que era candidato a governador de São Paulo pelo PDT. Mas o dinheiro não era dele. Rossi fez a transferência, mas o dono do dinheiro era Antônio Cabrera, ex-ministro da Agricultura (governo Collor), e me parece que era candidato ao Senado.

Como o senhor pode afirmar isso?

BARROS: Porque quando o papel não apareceu, o Cabrera telefonou para mim cobrando os US$ 500 mil. Eu lhe disse que não tinha nada com a história. Era coisa do Zé Ferraz.

O dinheiro foi enviado para o seu escritório?

BARROS: Veio para o Ferraz, mas em nome de outro sujeito, Paulo Sérgio Rosa, o rei da beirada. Ele está em todas, comendo por fora, levando comissões. Foi quem me trouxe o Caio Fábio como cliente.

O que Paulo Rosa tem a ver com o dossiê?

BARROS: Ele tinha se mudado para Miami. Rossi o conhecia do ABC paulista. O dinheiro veio em nome do Rosa, através da Vigo (empresa especializada em remessas financeiras), para que ele o entregasse ao Ferraz. Só que o Ferraz não queria que o nome dele aparecesse e me pediu ajuda.

Como assim?

BARROS: Ele não sabia como fazer para não aparecer a origem do dinheiro. Sugeri que abrisse uma conta no Bank of America, em Miami, onde o gerente era amigo, um brasileiro, o Elias Facuri, mais conhecido como Turcão. Disse para o Ferraz pedir à Vigo que lhe desse um cheque de US$ 350 mil em nome do Bank of America. Com o cheque, ele abriria a conta e não apareceria a origem do dinheiro. Paulo Rosa, para quem o dinheiro tinha sido remetido, assinou um recibo na Vigo, dizendo que a grana foi sacada através de um cheque nominal ao Bank of America.

Ferraz conseguiu os documentos?

BARROS: Ele não conseguiu nada. Deu um golpe. É um bandidinho. O Ferraz saiu fugido do Brasil, para não responder a inquéritos. Havia processos contra ele, muitos por cheques sem fundos. A idéia era só se aproveitar da ingenuidade do Caio Fábio e de seus amigos.

Caio Fábio afirma jamais ter visto os papéis. Mas eles chegaram a ser negociados ou pelo menos oferecidos aos ex-governadores Leonel Brizola, Orestes Quércia, Paulo Maluf. O que, afinal, foi oferecido?

BARROS: Assim que pegou os US$ 500 mil do Caio Fábio, o Ferraz procurou um velho amigo, o brasileiro Jamil Degan, que se naturalizou americano com o nome de James Deegan, e montou a operação. Marcou uma reunião com o Caio Fábio e apresentou o Jamil dizendo que ele era um inglês que tinha acesso a segredos de empresas no Caribe e poderia conseguir os documentos do presidente.

Era tudo uma farsa?

BARROS: Claro (rindo). O objetivo era arrancar mais dinheiro. Só que aí o Jamil, vendo que podia haver mais dinheiro na parada, resolveu fazer um negócio por fora. Ele também não tinha papel algum, mas ofereceu o dossiê ao Brizola. O Paulo Rosa tentou vender o mesmo pacote ao Collor. E o Ferraz me disse que o Quércia também estava interessado.

Ferraz lhe pediu ajuda para obter o registro da empresa que se dizia pertencer ao presidente, aos ministros Serra e Sérgio Motta e ao governador Covas?

BARROS: O Ferraz me perguntou como poderia obter os papéis no Caribe, se eles existissem. E eu lhe disse que o sigilo é a alma do negócio no setor offshore. Por isso, o que poderia obter seria uma certidão oficial confirmando a existência de determinada empresa, desde que soubesse seu nome. Isso poderia ser obtido no escritório da firma especializada que tivesse feito o registro e cuidasse da manutenção dessa empresa de gaveta. A única maneira de saber quanto dinheiro havia numa empresa e seus acionistas seria comprar a firma responsável pela abertura de empresas.

Ele se interessou por isso?

BARROS: A pedido do Ferraz fiz um levantamento para saber quando custaria a firma que registrara a empresa que pertenceria o presidente. Soube que seria pelo menos US$ 40 millhões. O Ferraz ficou espantado, mas depois disse que o Quércia poderia bancar. Compraria a firma de registros, obteria os documentos e, depois, revenderia a empresa.

O senhor sabe se houve uma tentativa de negociação?

BARROS: A ponte do Ferraz com o Quércia seria um deputado de Araraquara (SP), Marcelo Barbieri, que ele chamava de primo. Aparentemente foi quem disse que Quércia poderia fazer o investimento. Mas já conversei com o Quércia sobre negócios e ele nunca me falou sobre o dossiê.

Ferraz diz que está escrevendo um livro com o título "Um dossiê chamado Cayman", em que contaria os detalhes.

BARROS: Ele queria que eu o ajudasse. Queria escrevê-lo a quatro mãos. Esse livro não existe. É golpe. Ele não conhece nada sobre o dossiê que foi para as ruas. Está pedindo US$ 300 mil e quer US$ 100 mil de adiantamento. A Editora Três mandou um sujeito aqui negociar. Presenciei isso.

Quem, afinal, é o responsável pelo dossiê?

BARROS: São quatro brasileiros de Miami. Quem comandou a operação foi o Luiz Cláudio Ferraz Silva, que recebeu uma remessa para começar. Ele próprio me confirmou.

Que documentos conseguiu?

BARROS: Basicamente uma certidão, legítima, registrada em Nassau, nas Bahamas. A certidão comprova a existência da firma CH,J&T Inc., e diz que seus responsáveis são o ex-ministro Sérgio Motta e um tal Ray Terrence. O papel foi obtido na Trident (Corporate Services Ltd.), que registrou a empresa.

E onde entrariam Fernando Henrique, Serra e Covas?

BARROS: O papel só diz quem é o responsável pela empresa, mas não quem são os donos das ações, que ficam com ações ao portador, pelo sigilo. É para isso que existem paraísos fiscais. A empresa existe e Serjão aparece como responsável. Todo mundo dizia que o presidente é sócio, porque ele era grande amigo do Serjão.

E o resto da papelada?

BARROS: Com base na certidão, armaram um pacote falso. Criaram um fluxograma, com supostos depósitos na tal empresa. E utilizaram um papel timbrado da minha empresa, para dar ar de veracidade. Um deles foi para o Hotel Pavillon de la Reine, em Paris, e mandou cartas e bilhetes ameaçadores, por fax, às pessoas no Brasil que supostamente seriam donas da empresa. A idéia era complicar a reeleição de Fernando Henrique e especular no mercado financeiro.

Como assim?

BARROS: Quem estava bancando a operação sabia que, ao mandar trechos do dossiê a políticos, provocaria rumores. E a publicação da notícia sobre o dossiê comprometendo o presidente abalaria o mercado por algumas horas. Mandaram cópia para a "Folha de S. Paulo". Fizeram operações com dólar, sabendo que os doleiros parariam de vender por horas, e essas pessoas entrariam no mercado vendendo com ágio. Além disso, a cotação dos títulos da dívida externa do Brasil despencaria e elas comprariam papéis na baixa, para vender mais tarde. O cálculo era que, com o que tinham para investir, poderiam ganhar US$ 200 milhões.

Quem eram essas pessoas?

BARROS: Um político e um empresário brasileiros, mais um empresário americano. Um é o (ex) senador Gilberto Miranda. Ele me procurou, depois, para fazer negócios. Queria aplicar dinheiro, porque precisava matar uma dívida com o Imposto de Renda no Brasil. Mas não quis negócios com ele.

Onde o senhor obteve essa informação?

BARROS: Tenho um documento a respeito disso. É uma declaração formal feita pelo Luiz Cláudio Ferraz Silva ao seu advogado, Jack Rubino. Ele ganhou US$ 1 milhão para obter o documento e fez esse depoimento quando a coisa tomou um vulto inesperado no Brasil. O objetivo era ter uma justificativa, caso o assunto fosse investigado por autoridades americanas. Ali, ele declara tudo, dizendo que lhe pediram para buscar o documento, que o encontrou e o entregou, por certo preço. É uma declaração privada, que fica com o advogado.

Por que só agora o senhor decidiu falar a respeito?

BARROS: Não quero que continuem me colocando no mesmo barco que essa gente.

Pensamento: "Obediência: Religião dos escravos. Religião de morte intelectual. Gosto dela. Não faça perguntas, não pense, obedeça a Palavra do Senhor - que foi convenientemente trazida à você por um cara num Rolls Royce com um Rolex pesado no seu pulso. Eu gosto desse trabalho! Onde eu me inscrevo?" Oleg Kiselev


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