Publicado no Jornal Folha de São
Paulo em 21/01/96
Acusações de irracionalismo
aos fiéis da Igreja Universal menosprezam motivos da
religiosidade
Enquanto nossa cultura pública e
privada dissolve-se em corrupção, cocaína,
apatia política e consumo, Macedo fatura em cima do vazio
moral
No último dia 8 de janeiro, um
jornal brasileiro noticiava: "Quem acompanha os movimentos
do bispo Macedo no mercado financeiro garante: com a ajuda de
Deus e do 13º dos fiéis, o homem triplicou sua
movimentação financeira no final do ano, apesar
dos escândalos. Distribuindo religiosamente a dádiva
em aplicações nos benditos mercados de futuros, de
ouro e Bolsa de Valores".
Qual o encanto do bispo Macedo? Por que,
malgrado vídeos, chutes em estátuas religiosas e a
confessa ganância dos pastores, a Igreja Universal não
pára de crescer? À primeira vista, a fórmula
do sucesso é fácil. Hannah Arendt, entre outros,
parece tê-la decifrado. O caldo de cultura do fanatismo
faz-se do cinismo dos líderes e da credulidade das
massas, em meio à miséria, falta de expectativas
econômico-sociais e descrença em valores críticos.
Não foi assim com o nazismo? O raciocínio,
certamente, aplica-se bastante bem aos fanatismos leigos. Mas o
que dizer do fenômeno religioso?
A meu ver, neste caso, algo se acrescenta.
Falar de religião é falar de fé, mistério,
sentido da vida e da morte etc. O homem religioso, fanático
ou moderado não é um homem irracional.
Simplesmente utiliza uma racionalidade, para lidar com o mundo,
que não é a racionalidade científico-filosófica.
Caso seguisse os princípios lógicos e
argumentativos desta racionalidade, a religião não
seria "religião".
Raramente pensamos, como Georges Bataille
ou Denis de Rougemont, que a religião não é
topo ou base irracional de outras práticas culturais, mas
um modo particular de ordenação do sentido da
existência e finalidades do sujeito. Fazendo da religião
uma ignorância, uma ilusão, um artifício de
evasão, uma alienação, uma sublimação,
uma contrafação etc., postos no lugar de outras
crenças ou realidades, podemos ser vítimas de
nossos próprios preconceitos. O científico não
é o avesso do religioso ou vice-versa. Há muito
tempo, Wittgenstein observou isto, criticando os trabalhos
antropológicos de Frazer.
Desse ângulo, podemos procurar
entender como a religião articula-se com outras crenças
culturais, em contextos específicos, sem pretender explicá-la
a partir de suas supostas origens ou causas extra-religiosas.
No caso da Igreja Universal, penso que um
tópico, em especial, chama a atenção: o uso
do dinheiro e sua relação com a atração
exercida pelo credo sobre os fiéis. Perguntamos como as
pessoas não percebem que estão sendo manipuladas!
Mas, se é verdade que para os chefões da igreja o
dízimo dos crentes é um negócio, não
estou certo de que para os praticantes o mesmo ato signifique a
mesma coisa. Os pastores vendem a salvação no céu
e o enriquecimento na Terra, mas os crentes não estão
necessariamente "comprando" uma mercadoria, como a lógica
do mercado nos leva a interpretar.
Estão "dando" qualquer
coisa; estão participando com dinheiro para uma "causa".
Isto é diferente e muda tudo. É bem possível
e provável que os contribuintes também tenham um
olho voltado para o conforto material terreno acenado pelo bispo
e seus auxiliares. Mas isto não invalida a hipótese.
Entre os praticantes do catolicismo, do
protestantismo, do kardecismo, das religiões
afro-brasileiras etc., interesses do mesmo gênero não
negam a primazia dos valores sagrados sobre os profanos. O
fundamental, acredito, é que dar, em vez de comprar, é
um gesto de "desperdício", um "luxo",
um "dispêndio", numa cultura de acumulação
em que só é permitido esbanjar, imaginando que se
está "consumindo".
Ora, nesse caráter de excesso e
imprevidência, frontalmente oposto à moral
utilitarista, está talvez um dos mais fortes atrativos da
Igreja Universal. Além do fascínio do maniqueísmo
e do moralismo pequeno-burguês da seita , o fiel sente-se
superior aos infiéis porque professa um estilo de vida no
qual a dádiva e o desprendimento criam uma imagem narcísica
de grandeza moral que o dinheiro não compra. O sujeito,
com boas razões, quer manter essa imagem, mesmo que tenha
de pagar ao bispo. Só ela parece estar à altura de
pretensões espirituais maiores.
Enquanto nossa cultura pública e
privada, sobretudo a das elites, dissolve-se em corrupção,
cocaína, apatia política, consumo e filosofias de
''boudoir'', Edir Macedo fatura em cima do vazio moral. Afinal,
o que se oferece em troca das promessas da Igreja Universal? Uma
cervejinha no sábado à tarde, um grito de gol a
cada dois anos, três dias de desfile nas avenidas? O culto
ao próprio umbigo, às lágrimas e suspiros
românticos, à obsessiva pergunta, "quem pode
ter orgasmo com o quê e com quem", ou, finalmente, ao
sonho da semana de compras em Miami?
Podemos ver o fenômeno da Igreja
Universal como uma caricatura dos exércitos de salvação
das peças de Brecht ou dos filmes de G.W. Pabst. Mas
podemos vê-lo, talvez com mais proveito, como sinal de que
nossa cultura não tem uma só regra do jogo; tem várias.
E, numa delas, termos como honra, altivez, dignidade, lealdade,
fidelidade, vergonha etc. ainda fazem sentido e dão
sentido à vida e à morte.
Se na cultura dominante deste Brasil "fin-de-siècle",
grande parte do pensamento criativo aceita espremer-se no
apertado "tecnologês" econômico ou informático,
desprezando a reflexão política ou moral, nem
todos são obrigados a se converter a este credo. Existe
uma "desrazão" que, mesmo fanática,
prosaica e rude, pode querer dizer o que não podemos
ouvir. Tomara que possamos escutá-la a tempo. A loucura, às
vezes, tem método.
JURANDIR FREIRE COSTA é
psicanalista e professor de medicina social na Universidade
Estadual do Rio de Janeiro, autor, entre outros, de ''Inocência
e Vício - Estudos sobre o Homoerotismo'' e ''A Face e o
Verso - Estudos Sobre o Homoerotismo 2". Ele escreve sempre
no terceiro domingo do mês no Mais!
Parisienses protestam
contra Igreja Universal
Publicado em 20/02/2000 no Jornal Folha de
São Paulo
Compra de prédio que abrigava
antigo teatro causa polêmica
Apesar da chuva em Paris, entre 300 e 400
pessoas aderiram ontem a um protesto contra a compra do prédio
que abrigou o tradicional cabaré La Scala, situado no número
13 do Bulevar de Strasbourg, pela Igreja Universal do Reino de
Deus, organizada pelo subprefeito Tony Dreyfus, do 10º
distrito da cidade.
O prédio no qual funcionou La Scala
_um dos locais preferidos dos artistas europeus no final do século
19 e nas primeiras décadas do século 20_
ultimamente era um decadente cinema pornô. Ele foi
comprado pela Igreja Universal do Reino de Deus em julho de
1999, por cerca de US$ 2,5 milhões (15 milhões de
francos).
O subprefeito Dreyfus lamentou o fato de não
ter sido comunicado, pela Prefeitura de Paris, da negociação
do prédio. Administrativamente, Paris é dividida
em 20 distritos, que possuem subprefeituras próprias. O
prédio do La Scala localiza-se na região dos
grandes bulevares, situada no 10º distrito.
"Mesmo com a venda consumada, nós
queremos manter essa sala de espetáculos. E não
queremos uma nova seita no nosso bairro", afirmou o
subprefeito.
Vincent Reina, adjunto da Prefeitura de
Paris, afirmou durante a manifestação que a compra
do prédio foi realizada por um terceiro, não em
nome da Igreja Universal do Reino de Deus.
"Agora, eles têm direito de
entrar e reformar o prédio. Somente um parecer negativo
do Ministério do Interior, que tem poder para impedir a
negociação de prédios de interesse cultural
na capital francesa, por exemplo, pode alterar essa situação",
disse Reina.
Preocupação com as seitas
"Nós somos contra a venda do
prédio do La Scala para uma seita . Nós queremos
que o moradores, as crianças, os velhos, os estudantes,
possam passear pelos bulevares com um comércio sadio, de
qualidade", afirmou Elisabeth Bonvallet, vice-presidente da
Associação dos Moradores dos Bulevares, presente à
manifestação.
Maurice Tinchant, da Associação
dos Comerciantes do 10º Bairro, afirmou que fez um proposta
de compra do prédio, em janeiro do 1999, por 10 milhões
de francos. "O espaço é único na região,
além de um cinema poderia permitir a instalação
de uma sala de debates, um centro cultural. Mas eles cobriram a
proposta", afirmou.
A Igreja Universal do Reino de Deus foi
classificada como seita no relatório, de 1995, preparado
pela Comissão de Inquérito sobre Seitas da Assembléia
Nacional. O relator foi o deputado Jacques Guyard. A Igreja
Universal existe na França desde 1993, e possui um templo
no mesmo 10º distrito.
No dia 7 passado, a Missão
Interministerial de Luta Contra as Seitas entregou ao
primeiro-ministro Lionel Jospin um relatório no qual
recomendava a dissolução de "certos
movimentos considerados perigosos". Nesse caso, foram
citadas a Cientologia e a Ordem do Templo Solar.