Publicado no Jornal Folha de São
Paulo em 31/10/95
Cena de Von Helder chutando a imagem de
Nossa Senhora é um emblema claro das loucuras nacionais
de hoje
Von Helder chuta e dá socos em
Nossa Senhora. Mais que um sacrilégio, a imagem é
de um infinito poder de síntese. Parece uma bandeira do
Brasil. Tem um fundo azul de nitidez insuportável. O
enquadramento é bom cinema, parece Godard: frontal, de
corpo inteiro, de modo que vemos a santa pequena à altura
dos joelhos do bispo que chuta e dá murros. E a cena tem
um detalhe genial. A cada chute do bispo a câmera conta
para close do rosto da Virgem, como se ela sofresse na madeira
escura, como se uma lágrima rolasse. E estão
congeladas ali muitas contradições dos tempos que
correm.
Von Helder é atualíssimo. É
um mix de guarda de segurança com TFP, tem o rosto idiota
dos "serial killers". Seu gesto foi um incesto
invertido: um matricídio. Tocou no intocável.
Ataca a mãe e, por decorrência, a "pátria
amada". Ele ataca o misticismo brasileiro "inútil"
da Nossa Senhora preta do fundo do rio. Quis ser "moderno"
e gritava: "Ela não funciona!". É uma
luta pelo mercado. Parece guerra de anunciantes em que uma marca
de carro destitui a outra de valor: "Não funciona!
Ela é feia, preta, ela não tem valor de mercado.
Ela só serve para atrapalhar os negócios com
antigas superstições".
É impressionante a quantidade de
crimes que esta cena gráfica condensa. Ele fez a metáfora
que mostra a verdade da sua seita de charlatães. Ele
denunciou a si próprio. Ele foi um ato falho. A imagem é
uma mulher. Ele um homem. Ele é grande, ela é
pequena. Ela é preta, ele é branco. Ele bate nela
porque ela, com o charme desorientador de sua santidade, afasta
os fiéis da sua igreja e, mais que isso, ela promete um
mundo de paraísos abstratos, longe de uma "igreja de
mercado". Ela tem dois mil anos. Ele é neoliberal.
Ela foi feita de séculos de loucuras por uma felicidade
sonhada. Daí sua aura. Ele não. Ele é um
despachante da fé. Edir e Helder são a religião
populista contra as religiões populares. São
contra as místicas do milênio, contra a beleza da
loucura. Só lhes interessa o comércio da loucura.
A Igreja Universal é contra o
misticismo como poética do nosso desamparo. Querem acabar
com a luz e sombra dos templos, querem acender a luz de neon dos
supermercados. Toda a beleza das religiões é
exterminada. Odeiam as religiões afro-brasileiras Nossa
Senhora da Aparecida é Oxum no candomblé. Edir e
Helder odeiam o candomblé porque ele condensa o amor
negro do povo e celebra o infinito em lindos rituais de
cachoeiras e florestas.
A Igreja Universal é contra o
Inconsciente. Diferentemente dos babalaôs, dos bonzos, dos
monges, os bispos da Universal odeiam os mistérios. É
estranho, uma religião que busca exterminar o sonho: "Não
funciona! É mentira! Não há Oxum, não
há santos, não há anjos!". Só
toleram o Diabo, porque ele é útil nos rituais. O
Diabo é o símbolo dos concorrentes. Se pudessem,
os bispos da Universal acabariam também com a idéia
de Deus, por ser muito abstrata. Ficariam só com Edir
Macedo.
Papas Ateus
Ao contrário dos chefes religiosos
que acreditam nos mistérios que propagam, Edir e os
cardeais da Igreja Universal não acreditam em Deus. Isto é
visível nos rituais de exorcismo da TV. Milhares
acreditando e só os pastores de cabeça fria. O
mistério não é comercial. É uma
religião de resultados. Não promete nada no Além,
como os católicos. Trata-se de pagar para não
sofrer mais aqui. Promete o quê? Promete um paraíso
de classe média, de terno e gravata. "Se você,
desgraçado, aleijado, pagar o dízimo, você
deixará de ser um excluído!"
Por isso, o mercado-alvo da Universal é
o "lúmpen", o sub-cão, o pó-de-mico.
Não propõem nem o paraíso, nem o
sexualizado mundo da floresta africana; prometem o "shopping
center". Daí seu sucesso. Mais que tudo, o mundo de
hoje odeia a transcendência. Não há nada além
do visível. É isso que Helder chuta.
Há igrejas evangélicas que são
legais. Muitos convertidos até melhoram. Param de beber e
bater nas mulheres. Muitos evangélicos têm amor aos
rebanhos. No caso de Edir, não. Não há
carinho, nem desejo de ajudar ninguém. Tudo é
mentira. Não há nem a caridade do pastor que
acredita na própria fé. Isto é que choca: a
crueza do extremo egoísmo no uso da miséria.
Quem não viu os rituais de
exorcismo na TV não sabe o que está perdendo. É
uma visão do inferno que virá. É uma visão
dos futuros e inevitáveis extermínios em massa.
Centenas de miseráveis que não têm mais
nada, sendo espoliados por outros miseráveis, os
obreiros, que podem subir para "pastores" e talvez a "bispos",
numa pirâmide invertida de horrores, como pilhas de frutas
podres no lixo da rua. O demônio se apossa em massa dos
desgraçados que são, então, "expurgados"
de si mesmos. Isso. Os pobres vão ali para serem
exorcizados da própria miséria. Eles são
lavados de si mesmos como num campo de concentração.
Os pastores gritam: "Queima! Queima!", como se
estivessem queimando o diabo. Mas, são os pobres diabos
que querem se extirpar da miséria deste mundo. O miserável
dá dinheiro em público em grandes sacos e se sente
menos miserável. Quem dá, é porque tem.
Logo, o pobre se sente menos pobre, dando. O rico é que
pede esmola ao miserável. Quem pede a esmola é o
dono da TV, dos rádios. Quem paga, é quem não
tem, grande metáfora concentrada de nossa pirâmide
social perversa. Como o Brasil.
O diabo é o povo
Não é verdade que a Igreja
Universal não tenha imagens. Tem. A cena da TV foi de uma
imagem viva batendo na outra. Uma imagem atacando a outra. Ou
melhor, Von Helder é uma imagem da imagem. Reparem que o
bispo Macedo é uma espécie de Deus-Pai, e que
todos os outros pastores foram criados à sua imagem e
semelhança. Todos copiam o "style" Macedo:
terno, gravata, raspadinhos, limpinhos. É isto que eles
prometem aos miseráveis: "Se vocês pagarem,
serão transformados em nós. Limpinhos, poderão
ir ao paraíso da burguesia". Mas, Edir também
é a imagem de uma imagem. De quem? Ele é o Deus de
gravata, ele é um Papa-executivo, tem algo que Billy
Graham, de Chirac, algo de Collor, de Quércia, até
mesmo de um Lair Ribeiro. São os ídolos da
caretice impecável. Edir cópia a imagem do "clean
wasp" americano. O modelo de Edir é o ideal
americano de gente limpa, assim se vestem os diretores saxões
das corporações, com a indefectível
canetinha no bolso. Assim, temos tudo. Deus e o diabo na terra
virtual. Deus usa gravata. Deus é o executivo. É o
diabo é quem? O diabo é o povo.
Antonio Conselheiro era louco. O bispo
Macedo não é louco. Edir é um profeta do
futuro mercadológico. Este imenso mundo de excluídos
também será um "emerging market", o "lúmpen
market". O que vender a eles? O nada. Eles pagam com seus últimos
centavos. Edir prova que a exploração não
tem fundo; dá para roubar mais sempre, dá para
extrair até o sangue dos cadáveres. O pobre paga
por si mesmo. Ele é a própria mercadoria. Zero de
custo operacional. Será que os americanos já
calcularam isso? De tostão em tostão, se faz um
milhão. "Good business", vender o nada para o
Zaire, para o Sudão, para o Piauí. Vender o quê?
Edir neste ponto é um grande empresário: descobriu
o reciclamento do lixo humano. Manda para o mundo inteiro um
belo produto de nossa exportação. Este o grande
milagre de Edir: transforma merda em ouro. Ele próspera
na miséria. Ele é a favor da injustiça
social.
Mulher sofre acidente em
culto religioso
Publicado no Jornal Folha de São
Paulo em 30/10/95
Autor: ARI CIPOLA Da Agência Folha,
em Maceió
Davina Pinto Costa, 51, entrou em coma após
sessão de exorcismo na Igreja Universal do Reino de Deus,
em São Luís (MA). Está internada em estado
grave na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Português
de São Luís.
Ela foi à igreja tentar curar um
reumatismo nas pernas e acabou sofrendo traumatismo craniano após
uma queda durante o culto.
O pastor acusado de praticar o exorcismo,
Márcio Roberto Barros Pinheiro, 25, vai responder a inquérito
e será acusado por crime de charlatanismo.
De acordo com a polícia, durante o
culto de sexta-feira, o pastor Pinheiro afirmou que as dores de
Davina eram culpa do demônio e realizou uma sessão
de exorcismo.
Para mostrar aos fiéis que Davina
tinha sido curada, ele tentou fazer com que ela andasse sozinha.
Davina não resistiu às dores: caiu, bateu com a
cabeça e desmaiou.
A Igreja Universal decidiu arcar com os
custos do tratamento. A advogada do pastor Pinheiro, Maria do
Carmo Pinto Lima, disse que a mullher se acidentou por acidente.
"Não foi nada proposital". Segundo ela, o
pastor não é responsável: "A cura
depende da fé de cada um. Quem cura não é o
pastor. É a própria fé."
Bispo da Universal é
indiciado
Publicado no Jornal Folha de São
Paulo em 26/10/95
O delegado do 27º Distrito Policial
de São Paulo, João Batista Araújo, deve
indiciar hoje o bispo Sérgio Von Helder, da Igreja
Universal, sob acusação de agressão a
objeto de culto religioso. A pena para o crime varia de um mês
a um ano de reclusão.
O pastor Ronaldo Dinini, da Universal, é
acusado no mesmo inquérito de apologia a crime. Ele se
declarou solidário à atitude de Von Helder. Ao
contrário do previsto, ele não deve comparecer ao
distrito policial.
O delegado disse que não poderá
atender o pedido da Prefeitura de Aparecida de entregar a imagem
agredida por Von Helder para um ato de desagravo. Segundo Araújo,
a imagem não foi apreendida pela polícia.
O deputado estadual Afanasio Jazadji (PFL)
encaminhou ao Ministério Público de São
Paulo representação em que pede a prisão
preventiva de Von Helder, Didini e do bispo Edir Macedo, líder
da Universal.
Jazadji pede que os três sejam
submetidos a exame de sanidade mental.
Costureira recupera máquina
Publicado no Jornal Folha de São
Paulo em 24/10/95
A Universal de Franca (401 km a norte de São
Paulo) devolveu ontem a máquina de costura que gerou uma
acusação de estelionato contra dois pastores da
entidade.
A máquina está no 4º DP
da cidade e seria devolvida ontem pela polícia à
proprietária, a costureira Eliomar Batista de Lima, 41.
Segundo a costureira, um pastor a
convenceu de que, se ela fizesse doações à
igreja, ela teria uma "vida de rica" e conseguiria "solução
para todos os seus problemas". Ela ofereceu a máquina.
Depois de seis meses, Eliomar disse ter se
sentido enganada pelo pastor porque nada mudara em sua vida. Seu
marido perdera o emprego, e ela não conseguia trabalho.
Ela pediu a máquina de volta, mas a
igreja lhe informou que não seria possível porque
o produto já havia sido vendido. Por causa disso, a
costureira registrou o boletim de estelionato contra os
pastores.
Ontem, o delegado Jairo Antônio dos
Santos, 41, ouviu dois pastores da Universal, que disseram que a
doação foi espontânea.
De acordo com o delegado, a máquina
estava em poder do pedreiro Paulo da Silva Pontes, que a havia
comprado da Universal.
Em depoimento à polícia,
Marivaldo afirmou que a igreja vai ressarcir o pedreiro pela
devolução da máquina.
Projeto agrava punição
a agressão religiosa
Publicado no Jornal Folha de São
Paulo em 03/11/95
Autor: EMANUEL NERI Da Reportagem Local
A partir do próximo ano, intolerância
e agressão religiosa devem passar a ser considerados
crimes contra os direitos humanos. É o caso dos chutes
que o pastor Sérgio von Helder deu na imagem de Nossa
Senhora Aparecida.
A intolerância religiosa será
um dos crimes previstos no PNDH (Plano Nacional de Direitos
Humanos) que está sendo elaborado pelo governo federal.
Deve ficar pronto em abril do próximo ano.
A defesa dos direitos humanos é a
nova bandeira do governo de Fernando Henrique Cardoso. O PNDH
abrange várias áreas.
O PNDH está sendo elaborado por José
Gregori, chefe de gabinete do Ministério da Justiça.
"Sexto dedo"
Segundo Gregori, a defesa dos direitos
humanos passa a ser "prioridade absoluta" do governo.
"Vai ser o sexto dedo da campanha
eleitoral", diz Gregori. Na campanha para presidente, FHC
usou como símbolo uma mão aberta. Cada dedo
significava uma prioridade de governo.
Os cinco "dedos" do governo de
FHC eram agricultura, saúde, educação,
segurança e emprego. Agora os direitos humanos passarão
a ser o sexto "dedo".
FHC quer que o tema "mobilize e
conscientize" a sociedade. "É preciso dar a
essa questão a mesma prioridade que têm hoje a
dengue e a poliomielite", diz Gregori. 'Em direitos
humanos, ainda estamos muito aquém do desejável.
Precisamos sair do Quarto Mundo nessa questão."
No ensino, o tema direitos humanos deve
virar disciplina das escolas de primeiro e segundo graus.
Até ser implantado, o PNDH terá
várias fases. Uma delas será a tipificação
dos crimes contra os direitos humanos. São os casos de
intolerância religiosa e tortura.
Também serão previstos como
crimes dessa natureza a discriminação racial e os
chamados "crimes massivos" _como o massacre do
Carandiru, em 92, em São Paulo, que matou 111 presos, e a
chacina de Corumbiara (RO), há quase três meses,
com 12 mortes.
Há outros casos de transgressão
aos direitos humanos que serão tipificados como crimes. O
PNDH também determinará penas para cada um deles.
No caso da tortura, será considerado crime hediondo .
Isso quer dizer que os responsáveis
por tortura não se beneficiarão de benefícios
previstos para outros crimes, como pagamento de fiança,
atenuação e suspensão da pena. Hoje os
crimes de torturas são julgados como lesão
corporal.
O PNDH também vai determinar que
todos os crimes contra os direitos humanos deixem de ser
apurados pelas polícias militares e passem para a
responsabilidade da Polícia Federal. O fórum para
julgamento desses crimes deixa de ser as Justiças
estaduais e passa para a Justiça Federal.
A maioria dessas alterações
será estabelecida por intermédio de projetos que
serão enviados ao Congresso a partir do próximo
ano. Outras serão por decreto.
No caso dos crimes de tortura, o governo já
decidiu que pedirá urgência urgentíssima
para sua tramitação no Congresso. Isso quer dizer
que ela será aprovada sem passar por comissões
especializadas. Entra em vigor ainda em 96.
Outro ponto previsto no PNDH é a
limitação dos poderes da Justiça Militar.
Os crimes praticados por policiais militares contra civis, como
o Carandiru, passarão a ser julgados pela Justiça
comum.
Nesse caso, o governo vai apoiar projeto
de autoria do deputado Hélio Bicudo (PT-SP) que já
está tramitando no Congresso. Segundo Gregori, apenas
crimes de indisciplina militar serão de responsabilidade
da Justiça Militar.
A pedido de FHC, a primeira versão
do PNDH deverá estar concluída no final deste ano.
Será enviada a órgãos de defesa dos
direitos humanos do país e do exterior. O governo quer o
aval dessas entidades para a texto final do PNDH.