Publicado no Jornal do Brasil em
13/07/2001
Gravações envolvem
governador e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado em
suposta operação de suborno em 95
O governador do Rio, Anthony Garotinho
(PSB), saberia da proposta de suborno do fiscal da Receita
Federal para obter autorização para fazer sorteios
de carros e uma casa em seu programa de rádio e TV em
1995, segundo gravações clandestinas obtidas pelo
Jornal do Brasil.
Em conversa com seu à época
sócio na empresa Garotinho Editora Gráfica, Jonas
Lopes de Carvalho, hoje conselheiro do Tribunal de Contas do
Estado, ele discutiria o suposto pagamento de propina:
"E o que você pensou em falar
com o cara amanhã de manhã?", pergunta. "Não
sei", responde Jonas. "Não pensou em número,
não?", replica o hoje governador. "(O contador)
Waldemar (Duarte) falou em 500 pratas", diz o sócio.
"Cada número, né?", exclama Garotinho.
Há uma discrepância entre a
fita obtida pelo JB e a que foi levada ao ar pela rádio
CBN, anteontem, no começo da noite.
Pedido - No grampo, há conversas do
contador com Jonas,-na qual, relata que a fiscalização
da Receita poderia ser subornada para liberar as autorizações
dos sorteios. "O homem quer grana", afirma Waldemar a
Jonas. O contador afirma como abordou o fiscal: "Eu falei:
Marcos, vem cá, vamos conversar, vamos falar em números
agora, vamos conversar. Tem como evitar esse procedimento que
você chama de procedimento de acordo com a sua consciência?"
Uma conversa de Waldemar com o próprio fiscal,
supostamente acertando o pagamento, também foi gravada. "Aprovou
o negócio?", pergunta Marcos. Waldemar confirma que
sim.
Operação - Em diálogo
com Jonas Lopes, Garotinho narra a operação
financeira que deveria ser feita na sua empresa para
possivelmente justificar o aumento do capital social (de R$ 10
mil para R$ 190 mil), o que permitiria a obtenção
da licença para a realização de sorteio. Além
disso, mostra-se preocupado sobre como se defender do fiscal da
Receita. "Em termos de precaução, para me calçar
contra esse cara, eu, desses 28 que você vai trocar amanhã,
20 eu vou depositar na conta da editora, como se fosse venda de
livro avulso. Vinte eu vou sacar da Garotinho e vou meter lá,
como se fosse aquele primeiro repasse da Terceiro Mundo de venda
de livros para cá. Eu tô devolvendo à
editora. E aí o dinheiro que for entrando, eu vou botando
lá, tá certo. E a gente vai integralizando o
capital dela rapidinho. Tá bom, para gente ir se calçando
lá."
Em outro telefonema para o advogado e
ex-deputado federal Alexandre Farah, o governador diz que não
é "uma boa" comprar briga com a Receita
Federal, porque "esses caras são bandidos".
Memória - Há um ano, o
empresário Guilherme Freire, dono da empreiteira Tucum,
de Campos, tentou entregar à Justiça gravações
que mostrariam o envolvimento do governador no suposto episódio
de corrupção ocorrido em 1995, três anos
antes de sua eleição para o governo do estado. O
empreiteiro relatou à promotora de Justiça
Margaret Motta Ramos, do Ministério Público
Estadual, que o governador aparecia nas fitas "corrompendo
alguém com a finalidade de agilizar documentação
junto aos órgãos federais", além de
abrir "contas fantasmas para esquentar dinheiro, entre
outros fatos". A promotora registrou o depoimento realizado
no dia 5 de julho de 2000, mas não o encaminhou para o
procurador-geral da Repúblico, Geraldo Brindeiro, o único
com competência para investigar governadores. "Não
havia provas", justificou ela, que afirmou ter devolvido o
envelope pardo com as fitas sem abri-lo.
Investigação - A Receita está,
desde segunda-feira, investigando o aumento de capital da
Garotinho Editora Gráfica ocorrido em 1995. Os sócios
aumentaram o capital social da empresa para que ela pudesse
fazer sorteios de dez carros e de uma casa, conforme determina a
lei. Só que o aumento de capital não foi
justificado informado nas declarações de Imposto
de Renda nem dos sócios nem da empresa. Três dos
sorteios foram feitos antes de a empresa receber a devida
autorização da Receita. Garotinho responsabilizou
seu contador, Waldemar Linhares Duarte - hoje diretor
administrativo da Ceasa -, pelo o que chamou de "erro".
O auditor fiscal Marcos de Azevedo negou
ter sido subornado, mas declarou que "recebeu pressão
de superiores" para dar a autorização dos
sorteios. O primeiro relato sobre as fitas com a suposta propina
foi publicado na terça-feira pelo jornal "O Globo".
Os principais trechos do grampo
1) Garotinho e a Receita
Anthony Garotinho telefona para o
ex-deputado Alexandre Farah e diz que não é "uma
boa" comprar briga com a Receita Federal, porque "esses
caras são bandidos"
Garotinho - Oi, Farah. O homem não
me deu retorno... Farah - Vou ligar para ele agora. Você
está na agência?
Garotinho - Estou na agência.
Farah - Te ligo já, já. Sabe
o que eu estive pensando no caminho...Se não resolvermos
politicamente isso até segunda-feira, é entrar com
mandado de segurança.
Garotinho - É verdade.
Farah - E conseguir a liminar na hora. Mas
eu vou ligar para ele e te ligo em cinco minutos.
Garotinho - Não é boa.
Comprar briga com a Receita Federal não é boa.
entendeu?
Farah - Certo...
Garotinho - É, sabe que esses caras
são bandidos.
Farah - É, mas eu tenho um trunfo lá.
O Osiris que é ligado a pessoas muito f.. ligadas a mim e
é um cara seríssimo. Vou ligar para ele já,
saber o que houve e te ligo em cinco minutos.
Garotinho - tá legal
2) O relato sobre a fiscalização
O contador de Garotinho, Waldemar Linhares
Duarte, conta Jonas Lopes de Carvalho, como foi a negociação
com o auditor da Receita Federal Marcos de Azevedo
Waldemar - Dr.
Jonas?
Jonas - Fala,
Waldemar
Waldemar - Meu telefone acabou a bateria,
eu não tomei o cuidado de mandar recarregar, apesar de
ser uma bateria potente e eu estou aqui no escritório
(inaudível). Eu passei lá no cara...
Jonas - E aí?
Waldemar - Nada.
Jonas - O que é que ele quer
Waldemar - Nada. O homem quer grana.
Jonas - Que é isso...
Waldemar - Ele não quer nada. Ele
vai pegar. Está pronto com o processo e quinta-feira fica
pronto. Eu falei que é isso doutor, o senhor mata a
gente. Com essa autorização na mão, é
possível a Bandeirantes liberar a veiculação
da promoção (inaudível) Pra outra, que é
só dia 8, ainda tem muito tempo.
Jonas - Ahn
Waldemar - Ele vai passar aqui amanhã..
perguntei se ele queria almoçar e ele disse que não
depende nada. Só das moças aí. Pra mim não
depende de nada, depende só de quanto eu posso dar. (...)
Depende só daquele doc para o formulário da malha
fina do Imposto de Renda, isso é rendimento compatível
com o aumento de capital, tal, tal, tal. (...) Quando ele me
mostrou o memorando, doutor, eu tremi na base. Ai eu falei,
Marcos, eu acho que a gente podia arrumar outra opção
aí e tal, acho que a gente podia, porque senão ia
prejudicar os sócios, a firma está começando
agora... Aí ele disse: "Isso eu não posso
fazer. Posso mandar fazer na quarta-feira, mas deixar de mandar
fiscalizar eu não posso de jeito nenhum". Aí
ele ficou meio assim e tal e eu perguntei: posso voltar aqui
amanhã para conversar com o senhor? Me dá o seu
telefone direto para a gente conversar. Eu quero falar
pessoalmente com o senhor". Aí ele entendeu... Aí
saímos da porta ali e fomos para o corredor. Eu falei
para o Marcos, você não vai fazer isso. Ele me
disse: "Eu vou fazer, vou fazer, porque isso é
fiscal e eu tenho que fazer antes o que a minha consciência
manda" . Não vai fazer isso, (...) fica ligado, se
você fizer o negócio agora, eu acho, sinceramente,
Dr.(...) é sensacional, ele é contador inclusive
da Garotinho editora (...) eu posso (...) ou aproximar dessa
linguagem, ao verbo do quintal, eu acho que o senhor vai estar
cometendo uma tremenda sacanagem com o pessoal.. Aí ele
falou: "Não, mas eu...". Aí eu falei:
Marcos, vem cá, vamos conversar, vamos falar em números
agora, vamos conversar. Tem como evitar esse procedimento que
você chama de procedimento de acordo com a sua consciência?
Aí, ele respondeu: "Aí, quem fala é
você, não sou eu". Aí, eu disse: nós
vamos precisar do senhor até durante esses meses, o fim
do ano, vamos pedir uma autorização por mês.
Vamos ter um relacionamento no mínimo até o fim do
ano. Garotinho vai ter outras promoções que deverão
entrar pelo ano seguinte. Ele vai começar na rádio
e na televisão, o moço está vindo com
dificuldade, luta muito, fez uma campanha e perdeu a eleição.
Ele quer recuperar. Aí ele falou: "Olha, eu tenho
medo... e me pediu: "Me dá um cartãozinho teu",
e eu dei o cartãozinho. (...) Você escolhe o
caminho. Eu preferi conversar com o seu Paulo Nei porque as
pessoas entendem a nossa linguagem. Eu tenho medo de conversar
com um empresário, ainda mais um empresário como
ele, dos meios de comunicação, e, amanhã ou
depois, ele fala isso no rádio, no jornal e na televisão
e bota isso tudo por água abaixo. Eu vou me desmoralizar
e ele vai ser prejudicado. Aí eu disse: Olha, seu Marcos,
não vai acontecer nada. Toda a palavra que nós
dermos daqui por diante está entre mim e o senhor. O
senhor não será prejudicado em absolutamente nada,
porque ele não vai falar absolutamente nada com ninguém
e nós somos parte disso e da necessidade de termos esse
documento (...) Aí faz o seguinte: conversa lá com
o pessoal e me telefona mais tarde e vê quanto eles podem
liberar para você lá e vamos trabalhar juntos daqui
para a frente.. abriu a porta.
Jonas - Beleza. Eu tô indo para aí
então. Eu vim aqui porque eu tinha que fazer o negócio
da Rosinha. Eu cheguei agora estou na casa de Carlinhos. Eu
pensei em ir para aí para a gente caçar eles e ver
o que que faz. Você vai voltar para a cidade?
Waldemar - Eu tenho que voltar. Eu vim
porque aquele meu amigo não apareceu, furou e eu com o
telefone...Falei eu vou lá no cara. Fui lá e
cheguei para conversar e ele disse que foi bom. Com a sua presença
ele iria...
Jonas - Inibiria, né?
Waldemar - Claro, (..) ele me perguntou:
você não é contador exclusivo da empresa né?
Eu falei que não...
Jonas - Entendi
Waldemar - Matreiro prá caramba
Jonas - Então estou indo para aí.
agora.
Waldemar - Então vamos (...) junto.
3) O acerto
O contador Waldemar Linhares Duarte
conversa com o auditor da Receita Marcos de Azevedo, confirmando
o pagamento
Waldemar - Alô, oi
Marcos, tudo bem?
Marcos - Tudo.
Waldemar - Fui lá e o homem
definiu. Uma coisa não impede a outra. Ele vai dar uma
coisa hoje, mas não quer mensalidade não. É
um número definitivo, entendeu?
Marcos - Hannn? Que coisa hem?
Waldemar - Pois é, a gente precisa
sentar para conversar sobre isso.
Marcos - Mas ele vai dar né?
Waldemar - Vai dar. Uma coisa não
impede a outra, nem esse mês, nem mês que vem,
entendeu?
Marcos - Pode ser mais na frente.
Waldemar - Eu acho que a gente devia
sentar para ver o que faz. Cê vai vir mais tarde aqui, né?
Marcos - Eu estou chegando aqui agora
Waldemar - Então vou esperar você
aqui.
Marcos - Mas você não vai lá
antes não?
Waldemar - Não, eu vou... Ele pediu
que eu ligasse para ele hoje nesse horário, cinco
horas...
Marcos - Então, ele não vai
dar o negócio hoje...
Waldemar - Ué, ele disse que é
nesse horário tá pronto
Marcos - Tá. Cê me diz se não
é mais hoje?
Waldemar - Tá tudo bem
Marcos - Cê liga ás quatro
para me dá esse ...
Waldemar - Tudo bem
Marcos - Aprovou o negócio?
Waldemar - Estou esperando aqui. O pessoal
vai trazer aqui pode ser uma quantia maior?
Marcos - Pra quanto?
Waldemar - 87.
Marcos - Mesma coisa?
Waldemar - Deixa ver, está anotado
ali
Marcos - Tá barato.
Waldemar - 24.795
Marcos - É
Waldemar - Tão tá bom.
4) O caminho do dinheiro
Garotinho discute o pagamento da propina e
fala de operações financeiras da sua empresa com
Jonas Lopes de Carvalho
Garotinho - Joninho? O que houve com você,
tá ruim?
Jonas - Acho que é uma virose, sei
lá...
Garotinho - Vem cá, eu quero fazer
uma consulta a você. Com a documentação que
a gente já tem da Garotinho Editora Gráfica, a
gente pode abrir uma conta dela?
Jonas - Pode. Tem CGC.
Garotinho - Pode, então amanhã
você providencia a abertura da conta dela. Pode fazer no
Itaú. Faz com o Bento que ele faz na hora. Aí o
que eu vou fazer. Em termos de precaução para me
calçar contra esse cara. Eu desses 28 que você vai
trocar amanhã, 20 eu vou depositar na conta da editora,
como se fosse venda de livro avulso. 20 eu vou sacar da
Garotinho e vou meter lá, como se fosse aquele primeiro
repasse da Terceiro Mundo de venda de livros para cá. Eu
tô devolvendo à editora. E aí o dinheiro que
for entrando, eu vou botando lá, tá certo. E a
gente vai integralizando o capital dela rapidinho. Tá
bom, para gente ir se calçando lá. E o que você
pensou em falar com o cara amanhã de manhã?
Jonas - Não sei
Garotinho - Não pensou em número
não?
Jonas - Valdemar falou em 500 pratas.
Garotinho - Cada número né?
Jonas - é
Garotinho - Tá bom, lance mão.
Eu tô (...) tive um problema aí, tá muita
confusão. Não teve divulgação
direito.
Jonas - Deixa comigo
Garotinho - Cê acha que está
resolvido, né...Eu preciso disso para fazer a promoção,
rapaz. Só levei um Ranger agora...
Jonas - Pois é
Garotinho - (..) Mas você não
esquece de abrir a conta não ?
Jonas - Não
Garotinho - Chega logo, manda aberto,
porque aí, dessa grana aí, eu já vou
depositar uma parte.
A versão levada ao ar pela CBN
Garotinho - E o que você pensou em
falar com o cara amanhã?
Jonas - Eu falei com o Waldemar (o
contador) de manhã.
Garotinho - E o Fernando não pensou
em número não?
Jonas - Ah, o Waldemar falou em 500
pratas.
Garotinho - O cara é bom mesmo, não
é?
Jonas - É.
Garotinho - Está bom, não é?
Jonas - Bom. Tudo bom.
Garotinho - Quer dizer, uma vez a gente
teve problema aí, certa confusão, ... pela divulgação
que deu etc...
Jonas - Deixa comigo.
Deputados querem que Garotinho seja
investigado
O Dia 11/07/01
RIO - Os deputados Chico Alencar (PT),
Paulo Pinheiro (PT), e Paulo Ramos (PDT) acabaram de entrar com
duas representações junto à Procuradoria
Geral da República pedindo investigação das
denúncias de fraude e suborno feitas ao governador
Anthony Garotinho.
Segundo Paulo Ramos, os fatos apresentados
na mídia podem caracterizar crimes como formação
de quadrilha, corrupção ativa, estelionato e indução
à especulação.
O deputado Chico Alencar sugeriu ainda a
apreensão das fitas gravadas com conversas do governador
e de seu contador, Waldemar Linhares Duarte, para averiguar a
autenticidade do material.
RUMO A 2002 O MICROFONE DE DEUS
Com ajuda de empresário da era
Collor, Garotinho monta rede nacional de rádios evangélicas
para tentar chegar ao Planalto
POR GIANCARLO SUMMA, DO RIO DE JANEIRO
O segredo para administrar um Estado e,
quem sabe, um dia, o Brasil inteiro, é simples: "Joelho
no chão e oração", diz o governador
dos 14 milhões de habitantes do Rio de Janeiro, Anthony
Garotinho. Explica o homem eleito para governar o Estado com o
terceiro maior PIB e o segundo pior índice de homicídios
do País: "Orar, pedir a Deus, de joelhos, para que
abençoe o governo".
A singela receita é repetida com
freqüência a centenas de milhares de irmãos
evangélicos sintonizados numa das dezenas de estações
que, em todo o País, retransmitem o programa diário
A Paz do Senhor Governador, gerado pela Rádio Melodia, do
Rio. Um programa que, nos últimos meses, transformou-se
num dos principais trunfos de Garotinho para alavancar sua
anunciada candidatura ao Planalto em 2002.
PESO DE OURO.
Oficialmente, a Melodia controla somente
sete rádios FM: no Rio (onde é líder de
audiência entre as rádios evangélicas), em São
Paulo, Brasília, Teresina, Curitiba, Mandaguari (PR) e
Cataguases (MG). Na realidade, o alcance de sua programação
é muito maior.
Segundo um levantamento preliminar do
Planalto, as palavras de Garotinho são retransmitidas por
pelo menos 34 rádios, em 11 diferentes Estados. O Ministério
Público do Rio, que está investigando possíveis
crimes eleitorais, trabalha com números ainda maiores: 58
rádios, em 16 Estados.
Segundo revelou a CartaCapital um
conhecido radialista do Nordeste, desde novembro do ano passado,
emissários da Rádio Melodia vêm comprando
espaço "a peso de ouro" na programação
das estações de rádio, para retransmitir o
programa de Garotinho até as eleições
presidenciais.
"Tem muita gente topando, porque,
para os donos das rádios, esse é um negócio
da China: a Melodia os deixa livres para continuar vendendo os
espaços publicitários; se quiser, ela passa a
programação inteira a custo zero, e ainda dá
uma bela grana em cima", explica o radialista, que pediu
para não ser identificado. "De fato, a única
obrigação das rádios que entram no esquema é
transmitir todo dia a tal Paz do Governador."
Entre as emissoras que nas últimas
semanas começaram a retransmitir a programação
da Melodia no Nordeste está a Rádio Cruzeiro 92,7,
de Salvador, uma das cinco estações FM mais
ouvidas da capital baiana.
"O Grupo Melodia nos procurou, e para
nós foi interessante fechar o negócio",
contou a CartaCapital o dono da rádio, Paulo Motta. "Antes,
tínhamos uma programação comercial normal,
e a partir de 5 de junho começamos a transmitir os
programas da Melodia." Eles estão pagando? "Claro,
é um assunto comercial." Quanto pagam? O boato no
mercado diz que são R$ 40 mil ao mês. "Isso não
comento, é sigilo do cliente", responde Motta.
INTERESSE.
A versão da Rádio Melodia é
algo diferente. "O satélite da Melodia é
aberto. Eventualmente, alguém pode captar a programação
e reproduzir. Nós não sabemos se alguém está
fazendo isso", afirma o deputado estadual Eduardo Cunha
(PPB-RJ), diretor da rádio e personagem célebre na
política carioca desde o governo Collor. E qual seria o
interesse de uma rádio de Caxias, interior do Maranhão,
ou de uma emissora de Porto Velho, em reproduzir de graça
a programação da Melodia?
"A Melodia está em primeiro
lugar no Rio, é um trabalho bom, e assim desperta o
interesse de outras pessoas", é a resposta de Cunha
a CartaCapital. "Se você tem uma programação
redonda, sem custo, e tem breaks (intervalos comerciais) para
vender, qualquer um quer retransmitir"
VIRADAS.
Na opinião dos analistas, a
retransmissão de A Paz do Senhor Governador Brasil afora
contribui para explicar o repentino crescimento em todas as
pesquisas eleitorais do jovem - e relativamente pouco conhecido
- governador fluminense.
Aos 41 anos, ocupando seu primeiro cargo
importante, Garotinho saltou, nos últimos meses, de 8%
para 12% nas intenções de voto (as porcentagens
variam um pouco, dependendo do instituto de pesquisa) e está
praticamente empatado no segundo lugar com Ciro Gomes e Itamar
Franco, políticos bem mais experientes e já há
longo tempo em plena campanha eleitoral - Lula, em sua quarta
candidatura, continua liderando, com folga, na casa dos 30%.
"O rádio é o veículo
mais segmentado que há e, ao mesmo tempo, o mais
discreto: permite atingir exatamente o público-alvo que
interessa, e não é algo tão visível
assim", diz João Francisco Meira, diretor-presidente
do Vox Populi. "Dessa forma, Garotinho vem criando
formadores de opinião entre os evangélicos de todo
o País, e isso está se refletindo nas pesquisas."
O governador fluminense entende de
comunicação - como inúmeros outros políticos,
ingressou na vida pública pelos microfones de uma rádio:
no caso, na cidade de Campos - e, embora há menos tempo,
também entende de Bíblia. A conversão
religiosa se deu após um acidente de carro durante a
campanha eleitoral para governador, em 1994: perdeu as eleições
para Marcelo Alencar, mas ganhou uma nova fé, como ele próprio
conta num livro autobiográfico recém-lançado
- Virou Meu Carro, Virou Minha Vida -, que se transformou em
best seller na comunidade evangélica.
Pessoalmente, Garotinho se professa
presbiteriano, mas adota uma espécie de discurso ecumênico
que lhe garante trânsito livre em praticamente todas as
principais igrejas e seitas evangélicas. Da mesma forma,
a Rádio Melodia não é ligada a nenhuma facção
específica. É uma emissora gospel, que veicula uma
programação bem aceita por todos os evangélicos.
No Brasil - segundo projeções
do Instituto de Estudos da Religião (Iser), baseadas em
dados preliminares do censo do IBGE de 2000 -, os evangélicos
representam, hoje, de 16% a 18% da população
adulta brasileira, diante de 9% registrados em 1991. É
algo próximo de 30 milhões de eleitores.
A pletora de bispos e pastores que se
apinha pelos quatros cantos do País, há tempo
percebeu o potencial eleitoral de seu rebanho, tanto que, de
1990 a 1998, a bancada evangélica na Câmara dos
Deputados passou de 23 para 49 deputados. Uma das maiores
entidades evangélicas - a Igreja Universal do Reino de
Deus, de Edir Macedo - é dona da terceira maior rede de
televisão do País, a Record, e controla sozinha
uma bancada de 15 deputados, liderados pelo Bispo Rodrigues
(PL-RJ). Macedo, no entanto, sempre se limitou a usar seu peso
político para pleitear benesses e favores ao governo
federal, sem ousar vôos mais altos.
PRIMEIRA VEZ.
Garotinho representa algo novo: a primeira
tentativa em grande estilo de utilização da fé
religiosa de uma parte da população como
instrumento para viabilizar uma candidatura a um cargo majoritário
- no caso, o mais alto do País. Na campanha eleitoral
para o governo do Rio, em 1998, Garotinho e sua vice, a senadora
petista Benedita da Silva, nunca esconderam sua fé (ela é
integrante da Assembléia de Deus), embora o aspecto
religioso não tenha sido central na disputa. Uma vez
eleito, no entanto, Garotinho passou a dar mais e mais importância
ao papel das igrejas evangélicas, às quais foi
confiada a implementação de boa parte das ações
sociais - e assistenciais - do governo fluminense.
MÃO NO COFRE.
Essas entidades, por exemplo, filtram o
repasse de boa parte dos recursos do Cheque-Cidadão, um
programa que todo mês entrega vales de R$ 100 para compras
em supermercados a 43 mil famílias carentes. Há,
ainda, o Programa Morar Feliz, para a construção
de milhares de casas populares com prestações simbólicas
de R$ 1 ao mês. E mais: o Projeto Bolsa-Escola, o Projeto
Da Rua para a Escola, o restaurante popular na Central do
Brasil, dedicado ao Betinho, que vende 3 mil refeições
por dia a R$ 1 cada. E por aí vai. De acordo com o secretário
de governo, Fernando William, mais de 60 mil famílias são
beneficiadas em todo o Estado.
Quem coordena os vários programas é
a mulher do governador, Rosinha Matheus, no comando da
Secretaria de Ação Social, um dos cargos estratégicos
do governo, com um orçamento anual de R$ 150 milhões.
Casada há 20 anos com Garotinho, com quem tem nove filhos
(quatro naturais e cinco adotados), Rosinha está longe de
cumprir o papel tradicional de primeira-dama, calada e
ornamental.
Ela tem gênio forte, faro político
aguçado e entende de comunicação tanto
quanto o marido: trabalhou 13 anos em rádio, e nestas
semanas está preparando o piloto de um programa de TV,
produzido por Marlene Mattos - a da Xuxa. Título provisório:
Simplesmente Rosinha. Pode ser o passo definitivo para sua
transformação numa espécie de Evita Perón
carioca. E evangélica.
"A postura do Garotinho é
aquela de um populista tradicional, que distribui pequenos benefícios
e vincula ao seu próprio nome tudo o que o governo faz",
critica o líder do PT na Assembléia Legislativa,
Artur Messias. "A novidade preocupante é que ele
também introduziu um elemento místico nisso, que
pode chegar a gerar algum tipo de fanatismo religioso",
avalia ele. "Garotinho não hesita em dizer que sua
candidatura é a vontade de Deus."
No sábado, 7 de julho, em almoço
para mil convidados num clube de Brasília, Garotinho
afirmou com todas as letras que "o Brasil precisa de um
presidente com valores cristãos", e que a campanha
de 2002 será marcada pela disputa religiosa. "Vou
sofrer muitos ataques", previu. "Embora neguem, há
preconceito contra os evangélicos no País."
Com CartaCapital, o governador usou tons
mais brandos. Garotinho admitiu que "o apoio dos evangélicos
será importante" na campanha eleitoral, mas emendou:
"Eu governo o Rio, e governarei, se for presidente, para
todos os brasileiros, independentemente das questões
religiosas". Populista? "O populismo manipula e engana",
costuma responder. "Eu não faço isso, faço
um governo popular."
TELINHA.
Como bom candidato ungido pela vontade
divina, Garotinho não poupa esforços na busca
incessante de contato com o povo - como, aliás, manda o
figurino do mais clássico populismo latino-americano.
Contato direto, em dezenas de manifestações
religiosas, organizadas pelos diligentes irmãos evangélicos
em todo o País. E contato eletrônico, fazendo jus
ao experiente radialista que é.
A estratégia de mídia de
Garotinho - acompanhada com atenção por todos os
principais candidatos na corrida presidencial - baseia-se numa
mistura de passos óbvios e de jogadas de legalidade
duvidosa. O governador fluminense, por exemplo, participou de
meia dúzia de programas de auditório - de Raul Gil
a Adriane Galisteu, de Ratinho a Luciana Gimenez - para falar de
seus projetos sociais. Embora os próprios nunca o admitam
publicamente, quem trabalha com publicidade e marketing político
sabe que, em geral, os apresentadores desse tipo de programa
cobram, e caro, para abrir espaço a políticos em
busca de votos.
Por três meses, Garotinho também
teve à sua disposição um programa semanal
de 45 minutos na afiliada carioca da TV Record do irmão
Macedo, usado para magnificar as realizações do
governo e criticar toda e qualquer oposição. A
encarregada da produção era a Blue Light, a mesma
firma que havia trabalhado na campanha de Garotinho em 1998, e
que hoje é contratada para fazer a publicidade
institucional do governo. Após uma representação
do PT, no final de junho, o Tribunal Regional Eleitoral tirou do
ar o programa da Record, junto com o Fala Governador que a Rádio
Tupi AM transmitia, por duas horas, todos os sábados.
GOLPE DURO.
Garotinho bem que tentou resistir. Na terça-feira,
19 de junho, através dos microfones da Rádio
Melodia, convidou os irmãos a rezarem juntos para evitar "a
covardia" dos "poderosos" que queriam "calar
a voz dos que falam de Deus". "A audiência do
nosso programa está crescendo", explicou o
governador. "Eles vão ficando preocupados, isso
incomoda. Eles têm receio que essas palavras do Garotinho
toquem o coração do povo."
As orações não
adiantaram. O que mais chamou a atenção no dia do
julgamento do TRE foi a presença, na bancada de advogados
do governador, do ex-secretário de Justiça, Antônio
Oliboni, afastado em abril de 2000 após renovar, sem
licitação, o contrato do governo com a Brasal, a
empresa do rei das quentinhas Jair Coelho, da qual o advogado
era sócio. No site no., está registrado o comentário
de um desembargador: "O governante deveria se assessorar de
melhor equipe".
Para as aspirações
eleitorais de Garotinho, no entanto, um golpe bem mais duro
seria uma eventual decisão da Justiça Eleitoral
proibindo a transmissão de A Paz do Senhor Governador.
Trata-se, em teoria, de um programa jornalístico,
conduzido pelo próprio dono da Rádio Melodia, o
pastor evangélico Francisco Silva, deputado federal
(antes do PST e agora do PL), empresário (fez dinheiro
com o laboratório que produzia o Atalaia Jurubeba,
popular remédio para o fígado), radialista,
ex-secretário e aliado de todas as horas do governador.
Na prática, o programa resume-se a um monólogo de
Garotinho, interrompido pelos esporádicos améns de
Silva.
AMIGO DO PC.
Eduardo Cunha trabalha na Melodia desde
1995, e hoje é apontado no Rio de Janeiro como o
encarregado de arranjar espaço nas rádios para
Garotinho. Seu currículo, no entanto, tem etapas mais
interessantes.
Ouviu-se falar pela primeira vez de Cunha
em 1989 quando foi tesoureiro no Rio da campanha presidencial de
Fernando Collor. Em fevereiro de 1991 foi nomeado presidente da
Telerj - segundo algumas fontes, por indicação de
Paulo César Farias - e ocupou o cargo até abril de
1993. No começo do governo Garotinho, o dono da Melodia,
Francisco Silva, foi nomeado secretário de Habitação,
cargo extinto em outubro de 1999, quando Silva reassumiu seu
mandato parlamentar; enquanto isso, Cunha foi indicado
presidente da Companhia Estadual de Habitação
(Cehab).
Com a chegada de Cunha, começou a
ser registrada na Cehab a presença diária de outro
integrante do esquema collorido: o argentino, naturalizado
brasileiro, Jorge La Salvia, testa-de-ferro de PC Farias em
operações de lavagem de milhões de dólares
do narcotráfico. Este nome aparece também em outra
história escabrosa, a das fitas gravadas na sede do BNDES
na véspera da privatização da Telebrás:
no inquérito, foram detectadas várias ligações
entre La Salvia e Temílson Antônio Barreto de
Resende, o Telmo, indiciado como um dos autores do grampo.
Cunha acabou sendo afastado da Cehab em
abril do ano passado, no roldão de denúncias sobre
a enxurrada de contratos sem licitação e
favorecimento a empresas amigas que varreu o governo fluminense,
levando o PT a romper a aliança com Garotinho - o único
quadro do partido que permanece no cargo é a
vice-governadora, Benedita da Silva. Junto com Cunha e Oliboni,
a degola no primeiro escalão atingiu vários
integrantes da chamada Turma do Chuvisco, um fechado grupo de
amigos e colaboradores que acompanha Garotinho desde as
primeiras experiências políticas em Campos -
chuvisco é um doce de ovo típico daquela cidade.
NÃO ROUBARÁS.
Entre eles, está Carlos Augusto
Siqueira, presidente da poderosa Empresa de Obras Públicas
do Estado, e Ranulfo Vidigal, presidente da Agência
Reguladora dos Serviços Públicos Concedidos (Asep)
e ex-prefeito de São João da Barra, cassado por
corrupção em 1996.
Além das orações,
ensina Garotinho em seu programa na Rádio Melodia, "para
bem governar, é preciso não roubar". E mais: é
preciso "agir de forma clara, limpa, sem essa safadeza que
está imperando no Brasil. Aí, sobra dinheiro para
a gente aplicar para nosso povo".
Das palavras aos fatos, na terça-feira,
10 de julho, O Globo denunciou, na capa, os detalhes de uma
fraude fiscal e de uma tentativa de suborno a um fiscal da
Receita Federal que envolveriam Garotinho, Rosinha e um
integrante da Turma do Chuvisco, Jonas Lopes de Carvalho,
atualmente conselheiro do Tribunal de Contas do Estado. Os fatos
remontam a 1995, quando o hoje governador apresentava o Show do
Garotinho na Rádio Tupi e na TV Bandeirantes, sorteando
carros e casas entre o público que adquiria um livro de
receitas culinárias editado pela Garotinho Editora Gráfica
Ltda.
TELHADO DE VIDRO.
Trata-se, até hoje, do primeiro escândalo
sério envolvendo diretamente o governador - o que pode
ajudar a explicar o alto nível de aprovação
de sua administração, que no último ano se
mantém estável entre 60% e 62%. Ao que parece, a
enxurrada de denúncias de irregularidades nos órgãos
do governo não prejudicou a imagem pessoal de Garotinho.
Da mesma forma, as quedas no alto escalão do Palácio
Guanabara foram apenas temporárias. Enquanto os inquéritos
na Justiça continuam engatinhando, Garotinho não
descuidou dos amigos. Vidigal foi nomeado presidente da Agência
de Desenvolvimento Local (ADL), que representa o governo em
todos os municípios do Estado; Siqueira reassumiu o
antigo cargo na Empresa de Obras Públicas; e Cunha,
eleito segundo suplente de deputado estadual, graças às
articulações do governador, assumiu uma vaga na
Assembléia Legislativa - que lhe garante imunidade nas
investigações do Ministério Público.
Na história toda, há também
um episódio criminoso nunca esclarecido. Em outubro
passado, Cunha e Francisco Silva foram vítimas de uma
emboscada à bala, quando, de madrugada, deixavam a residência
oficial do governador após terem gravado mais um programa
para a Rádio Melodia. O Toyota Hilux em que viajavam foi
atingido por mais de 20 tiros, um dos quais feriu, de raspão,
o dono da Melodia; Cunha não foi atingido. Assalto?
Tentativa de assassinato? A polícia jamais encontrou os
responsáveis.
Viabilizar uma candidatura à Presidência,
com chances reais de sucesso, é algo muito mais complexo
do que governar um Estado, por mais importante e rico que seja -
Garotinho, lembre-se, pode contar com as remessas dos royalties
do petróleo pagas pela União, que, em 1999,
permitiram fechar uma renegociação vantajosa da dívida
estadual, e o deixaram com folga de caixa para investir.
O principal calcanhar-de-aquiles de
Garotinho é não ter o respaldo de uma estrutura
partidária significativa - após deixar o PDT, está
filiado ao pequeno PSB. Além disso, até agora não
conseguiu atrair apoios consideráveis fora do mundo evangélico.
Seu rebanho potencial é grande, mas não
necessariamente fiel. "Não dá para ele dar o
voto dos evangélicos como favas contadas", alerta
Regina Novaes, pesquisadora do Iser e professora de Antropologia
da Universidade Federal do Rio. "As igrejas não são
iguais, têm compromissos e lealdades diferentes, e isso
vai acabar ficando evidente na campanha eleitoral."
NOVO COLLOR?
Se a candidatura presidencial for mesmo
para valer, e não apenas um balão de ensaio para
se projetar em nível nacional ao deixar o governo,
conforme impõe a lei, em abril de 2002, Garotinho será
provavelmente sucedido pela vice-governadora petista - o que
deve tirar-lhe o apoio maciço da máquina
administrativa do Estado. Isso só não aconteceria
se Benedita se candidatasse ao Senado e não ao governo
fluminense, mas a direção nacional do partido
descarta totalmente essa possibilidade.
Ela evita polemizar abertamente com o
governador, mas deixa claro de que lado estará. "Não
deve haver confusão entre fé e política",
disse Benedita a CartaCapital. "O meu candidato a
presidente é Luiz Inácio Lula da Silva." Vale
lembrar que, apesar de todos os acordos, depois que o PT deixou
seu governo, nas eleições municipais de 2000
Garotinho apoiou Luiz Paulo Conde e não Benedita - os
dois acabaram sendo derrotados por César Maia.
Falta mais de um ano para as eleições
presidenciais. Muito pode e deve acontecer. Até onde
chegará o vôo de Garotinho, ainda é cedo
para dizer. "Ele tem um discurso voltado para as classes
baixas, mas agrada também ao eleitor médio, que
quer mudanças, sem abrir mão da estabilidade do
governo FHC. Ele é jovem, tem uma cara nova", diz
Meira, do Vox Populi. "Lembra Collor em 1998."
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