As fitas polêmicas de Garotinho

Publicado no Jornal do Brasil em 13/07/2001

Gravações envolvem governador e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado em suposta operação de suborno em 95

O governador do Rio, Anthony Garotinho (PSB), saberia da proposta de suborno do fiscal da Receita Federal para obter autorização para fazer sorteios de carros e uma casa em seu programa de rádio e TV em 1995, segundo gravações clandestinas obtidas pelo Jornal do Brasil.

Em conversa com seu à época sócio na empresa Garotinho Editora Gráfica, Jonas Lopes de Carvalho, hoje conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, ele discutiria o suposto pagamento de propina:

"E o que você pensou em falar com o cara amanhã de manhã?", pergunta. "Não sei", responde Jonas. "Não pensou em número, não?", replica o hoje governador. "(O contador) Waldemar (Duarte) falou em 500 pratas", diz o sócio. "Cada número, né?", exclama Garotinho.

Há uma discrepância entre a fita obtida pelo JB e a que foi levada ao ar pela rádio CBN, anteontem, no começo da noite.

Pedido - No grampo, há conversas do contador com Jonas,-na qual, relata que a fiscalização da Receita poderia ser subornada para liberar as autorizações dos sorteios. "O homem quer grana", afirma Waldemar a Jonas. O contador afirma como abordou o fiscal: "Eu falei: Marcos, vem cá, vamos conversar, vamos falar em números agora, vamos conversar. Tem como evitar esse procedimento que você chama de procedimento de acordo com a sua consciência?" Uma conversa de Waldemar com o próprio fiscal, supostamente acertando o pagamento, também foi gravada. "Aprovou o negócio?", pergunta Marcos. Waldemar confirma que sim.

Operação - Em diálogo com Jonas Lopes, Garotinho narra a operação financeira que deveria ser feita na sua empresa para possivelmente justificar o aumento do capital social (de R$ 10 mil para R$ 190 mil), o que permitiria a obtenção da licença para a realização de sorteio. Além disso, mostra-se preocupado sobre como se defender do fiscal da Receita. "Em termos de precaução, para me calçar contra esse cara, eu, desses 28 que você vai trocar amanhã, 20 eu vou depositar na conta da editora, como se fosse venda de livro avulso. Vinte eu vou sacar da Garotinho e vou meter lá, como se fosse aquele primeiro repasse da Terceiro Mundo de venda de livros para cá. Eu tô devolvendo à editora. E aí o dinheiro que for entrando, eu vou botando lá, tá certo. E a gente vai integralizando o capital dela rapidinho. Tá bom, para gente ir se calçando lá."

Em outro telefonema para o advogado e ex-deputado federal Alexandre Farah, o governador diz que não é "uma boa" comprar briga com a Receita Federal, porque "esses caras são bandidos".

Memória - Há um ano, o empresário Guilherme Freire, dono da empreiteira Tucum, de Campos, tentou entregar à Justiça gravações que mostrariam o envolvimento do governador no suposto episódio de corrupção ocorrido em 1995, três anos antes de sua eleição para o governo do estado. O empreiteiro relatou à promotora de Justiça Margaret Motta Ramos, do Ministério Público Estadual, que o governador aparecia nas fitas "corrompendo alguém com a finalidade de agilizar documentação junto aos órgãos federais", além de abrir "contas fantasmas para esquentar dinheiro, entre outros fatos". A promotora registrou o depoimento realizado no dia 5 de julho de 2000, mas não o encaminhou para o procurador-geral da Repúblico, Geraldo Brindeiro, o único com competência para investigar governadores. "Não havia provas", justificou ela, que afirmou ter devolvido o envelope pardo com as fitas sem abri-lo.

Investigação - A Receita está, desde segunda-feira, investigando o aumento de capital da Garotinho Editora Gráfica ocorrido em 1995. Os sócios aumentaram o capital social da empresa para que ela pudesse fazer sorteios de dez carros e de uma casa, conforme determina a lei. Só que o aumento de capital não foi justificado informado nas declarações de Imposto de Renda nem dos sócios nem da empresa. Três dos sorteios foram feitos antes de a empresa receber a devida autorização da Receita. Garotinho responsabilizou seu contador, Waldemar Linhares Duarte - hoje diretor administrativo da Ceasa -, pelo o que chamou de "erro".

O auditor fiscal Marcos de Azevedo negou ter sido subornado, mas declarou que "recebeu pressão de superiores" para dar a autorização dos sorteios. O primeiro relato sobre as fitas com a suposta propina foi publicado na terça-feira pelo jornal "O Globo".

Os principais trechos do grampo

1) Garotinho e a Receita

Anthony Garotinho telefona para o ex-deputado Alexandre Farah e diz que não é "uma boa" comprar briga com a Receita Federal, porque "esses caras são bandidos"

Garotinho - Oi, Farah. O homem não me deu retorno... Farah - Vou ligar para ele agora. Você está na agência?

Garotinho - Estou na agência.

Farah - Te ligo já, já. Sabe o que eu estive pensando no caminho...Se não resolvermos politicamente isso até segunda-feira, é entrar com mandado de segurança.

Garotinho - É verdade.

Farah - E conseguir a liminar na hora. Mas eu vou ligar para ele e te ligo em cinco minutos.

Garotinho - Não é boa. Comprar briga com a Receita Federal não é boa. entendeu?

Farah - Certo...

Garotinho - É, sabe que esses caras são bandidos.

Farah - É, mas eu tenho um trunfo lá. O Osiris que é ligado a pessoas muito f.. ligadas a mim e é um cara seríssimo. Vou ligar para ele já, saber o que houve e te ligo em cinco minutos.

Garotinho - tá legal

2) O relato sobre a fiscalização

O contador de Garotinho, Waldemar Linhares Duarte, conta Jonas Lopes de Carvalho, como foi a negociação com o auditor da Receita Federal Marcos de Azevedo

Waldemar - Dr.

Jonas?

Jonas - Fala,

Waldemar

Waldemar - Meu telefone acabou a bateria, eu não tomei o cuidado de mandar recarregar, apesar de ser uma bateria potente e eu estou aqui no escritório (inaudível). Eu passei lá no cara...

Jonas - E aí?

Waldemar - Nada.

Jonas - O que é que ele quer

Waldemar - Nada. O homem quer grana.

Jonas - Que é isso...

Waldemar - Ele não quer nada. Ele vai pegar. Está pronto com o processo e quinta-feira fica pronto. Eu falei que é isso doutor, o senhor mata a gente. Com essa autorização na mão, é possível a Bandeirantes liberar a veiculação da promoção (inaudível) Pra outra, que é só dia 8, ainda tem muito tempo.

Jonas - Ahn

Waldemar - Ele vai passar aqui amanhã.. perguntei se ele queria almoçar e ele disse que não depende nada. Só das moças aí. Pra mim não depende de nada, depende só de quanto eu posso dar. (...) Depende só daquele doc para o formulário da malha fina do Imposto de Renda, isso é rendimento compatível com o aumento de capital, tal, tal, tal. (...) Quando ele me mostrou o memorando, doutor, eu tremi na base. Ai eu falei, Marcos, eu acho que a gente podia arrumar outra opção aí e tal, acho que a gente podia, porque senão ia prejudicar os sócios, a firma está começando agora... Aí ele disse: "Isso eu não posso fazer. Posso mandar fazer na quarta-feira, mas deixar de mandar fiscalizar eu não posso de jeito nenhum". Aí ele ficou meio assim e tal e eu perguntei: posso voltar aqui amanhã para conversar com o senhor? Me dá o seu telefone direto para a gente conversar. Eu quero falar pessoalmente com o senhor". Aí ele entendeu... Aí saímos da porta ali e fomos para o corredor. Eu falei para o Marcos, você não vai fazer isso. Ele me disse: "Eu vou fazer, vou fazer, porque isso é fiscal e eu tenho que fazer antes o que a minha consciência manda" . Não vai fazer isso, (...) fica ligado, se você fizer o negócio agora, eu acho, sinceramente, Dr.(...) é sensacional, ele é contador inclusive da Garotinho editora (...) eu posso (...) ou aproximar dessa linguagem, ao verbo do quintal, eu acho que o senhor vai estar cometendo uma tremenda sacanagem com o pessoal.. Aí ele falou: "Não, mas eu...". Aí eu falei: Marcos, vem cá, vamos conversar, vamos falar em números agora, vamos conversar. Tem como evitar esse procedimento que você chama de procedimento de acordo com a sua consciência? Aí, ele respondeu: "Aí, quem fala é você, não sou eu". Aí, eu disse: nós vamos precisar do senhor até durante esses meses, o fim do ano, vamos pedir uma autorização por mês. Vamos ter um relacionamento no mínimo até o fim do ano. Garotinho vai ter outras promoções que deverão entrar pelo ano seguinte. Ele vai começar na rádio e na televisão, o moço está vindo com dificuldade, luta muito, fez uma campanha e perdeu a eleição. Ele quer recuperar. Aí ele falou: "Olha, eu tenho medo... e me pediu: "Me dá um cartãozinho teu", e eu dei o cartãozinho. (...) Você escolhe o caminho. Eu preferi conversar com o seu Paulo Nei porque as pessoas entendem a nossa linguagem. Eu tenho medo de conversar com um empresário, ainda mais um empresário como ele, dos meios de comunicação, e, amanhã ou depois, ele fala isso no rádio, no jornal e na televisão e bota isso tudo por água abaixo. Eu vou me desmoralizar e ele vai ser prejudicado. Aí eu disse: Olha, seu Marcos, não vai acontecer nada. Toda a palavra que nós dermos daqui por diante está entre mim e o senhor. O senhor não será prejudicado em absolutamente nada, porque ele não vai falar absolutamente nada com ninguém e nós somos parte disso e da necessidade de termos esse documento (...) Aí faz o seguinte: conversa lá com o pessoal e me telefona mais tarde e vê quanto eles podem liberar para você lá e vamos trabalhar juntos daqui para a frente.. abriu a porta.

Jonas - Beleza. Eu tô indo para aí então. Eu vim aqui porque eu tinha que fazer o negócio da Rosinha. Eu cheguei agora estou na casa de Carlinhos. Eu pensei em ir para aí para a gente caçar eles e ver o que que faz. Você vai voltar para a cidade?

Waldemar - Eu tenho que voltar. Eu vim porque aquele meu amigo não apareceu, furou e eu com o telefone...Falei eu vou lá no cara. Fui lá e cheguei para conversar e ele disse que foi bom. Com a sua presença ele iria...

Jonas - Inibiria, né?

Waldemar - Claro, (..) ele me perguntou: você não é contador exclusivo da empresa né? Eu falei que não...

Jonas - Entendi

Waldemar - Matreiro prá caramba

Jonas - Então estou indo para aí. agora.

Waldemar - Então vamos (...) junto.

3) O acerto

O contador Waldemar Linhares Duarte conversa com o auditor da Receita Marcos de Azevedo, confirmando o pagamento

Waldemar - Alô, oi

Marcos, tudo bem?

Marcos - Tudo.

Waldemar - Fui lá e o homem definiu. Uma coisa não impede a outra. Ele vai dar uma coisa hoje, mas não quer mensalidade não. É um número definitivo, entendeu?

Marcos - Hannn? Que coisa hem?

Waldemar - Pois é, a gente precisa sentar para conversar sobre isso.

Marcos - Mas ele vai dar né?

Waldemar - Vai dar. Uma coisa não impede a outra, nem esse mês, nem mês que vem, entendeu?

Marcos - Pode ser mais na frente.

Waldemar - Eu acho que a gente devia sentar para ver o que faz. Cê vai vir mais tarde aqui, né?

Marcos - Eu estou chegando aqui agora

Waldemar - Então vou esperar você aqui.

Marcos - Mas você não vai lá antes não?

Waldemar - Não, eu vou... Ele pediu que eu ligasse para ele hoje nesse horário, cinco horas...

Marcos - Então, ele não vai dar o negócio hoje...

Waldemar - Ué, ele disse que é nesse horário tá pronto

Marcos - Tá. Cê me diz se não é mais hoje?

Waldemar - Tá tudo bem

Marcos - Cê liga ás quatro para me dá esse ...

Waldemar - Tudo bem

Marcos - Aprovou o negócio?

Waldemar - Estou esperando aqui. O pessoal vai trazer aqui pode ser uma quantia maior?

Marcos - Pra quanto?

Waldemar - 87.

Marcos - Mesma coisa?

Waldemar - Deixa ver, está anotado ali

Marcos - Tá barato.

Waldemar - 24.795

Marcos - É

Waldemar - Tão tá bom.

4) O caminho do dinheiro

Garotinho discute o pagamento da propina e fala de operações financeiras da sua empresa com Jonas Lopes de Carvalho

Garotinho - Joninho? O que houve com você, tá ruim?

Jonas - Acho que é uma virose, sei lá...

Garotinho - Vem cá, eu quero fazer uma consulta a você. Com a documentação que a gente já tem da Garotinho Editora Gráfica, a gente pode abrir uma conta dela?

Jonas - Pode. Tem CGC.

Garotinho - Pode, então amanhã você providencia a abertura da conta dela. Pode fazer no Itaú. Faz com o Bento que ele faz na hora. Aí o que eu vou fazer. Em termos de precaução para me calçar contra esse cara. Eu desses 28 que você vai trocar amanhã, 20 eu vou depositar na conta da editora, como se fosse venda de livro avulso. 20 eu vou sacar da Garotinho e vou meter lá, como se fosse aquele primeiro repasse da Terceiro Mundo de venda de livros para cá. Eu tô devolvendo à editora. E aí o dinheiro que for entrando, eu vou botando lá, tá certo. E a gente vai integralizando o capital dela rapidinho. Tá bom, para gente ir se calçando lá. E o que você pensou em falar com o cara amanhã de manhã?

Jonas - Não sei

Garotinho - Não pensou em número não?

Jonas - Valdemar falou em 500 pratas.

Garotinho - Cada número né?

Jonas - é

Garotinho - Tá bom, lance mão. Eu tô (...) tive um problema aí, tá muita confusão. Não teve divulgação direito.

Jonas - Deixa comigo

Garotinho - Cê acha que está resolvido, né...Eu preciso disso para fazer a promoção, rapaz. Só levei um Ranger agora...

Jonas - Pois é

Garotinho - (..) Mas você não esquece de abrir a conta não ?

Jonas - Não

Garotinho - Chega logo, manda aberto, porque aí, dessa grana aí, eu já vou depositar uma parte.

A versão levada ao ar pela CBN

Garotinho - E o que você pensou em falar com o cara amanhã?

Jonas - Eu falei com o Waldemar (o contador) de manhã.

Garotinho - E o Fernando não pensou em número não?

Jonas - Ah, o Waldemar falou em 500 pratas.

Garotinho - O cara é bom mesmo, não é?

Jonas - É.

Garotinho - Está bom, não é?

Jonas - Bom. Tudo bom.

Garotinho - Quer dizer, uma vez a gente teve problema aí, certa confusão, ... pela divulgação que deu etc...

Jonas - Deixa comigo.

Deputados querem que Garotinho seja investigado

O Dia 11/07/01

RIO - Os deputados Chico Alencar (PT), Paulo Pinheiro (PT), e Paulo Ramos (PDT) acabaram de entrar com duas representações junto à Procuradoria Geral da República pedindo investigação das denúncias de fraude e suborno feitas ao governador Anthony Garotinho.

Segundo Paulo Ramos, os fatos apresentados na mídia podem caracterizar crimes como formação de quadrilha, corrupção ativa, estelionato e indução à especulação.

O deputado Chico Alencar sugeriu ainda a apreensão das fitas gravadas com conversas do governador e de seu contador, Waldemar Linhares Duarte, para averiguar a autenticidade do material.

RUMO A 2002 O MICROFONE DE DEUS

Com ajuda de empresário da era Collor, Garotinho monta rede nacional de rádios evangélicas para tentar chegar ao Planalto

POR GIANCARLO SUMMA, DO RIO DE JANEIRO

O segredo para administrar um Estado e, quem sabe, um dia, o Brasil inteiro, é simples: "Joelho no chão e oração", diz o governador dos 14 milhões de habitantes do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho. Explica o homem eleito para governar o Estado com o terceiro maior PIB e o segundo pior índice de homicídios do País: "Orar, pedir a Deus, de joelhos, para que abençoe o governo".

A singela receita é repetida com freqüência a centenas de milhares de irmãos evangélicos sintonizados numa das dezenas de estações que, em todo o País, retransmitem o programa diário A Paz do Senhor Governador, gerado pela Rádio Melodia, do Rio. Um programa que, nos últimos meses, transformou-se num dos principais trunfos de Garotinho para alavancar sua anunciada candidatura ao Planalto em 2002.

PESO DE OURO.

Oficialmente, a Melodia controla somente sete rádios FM: no Rio (onde é líder de audiência entre as rádios evangélicas), em São Paulo, Brasília, Teresina, Curitiba, Mandaguari (PR) e Cataguases (MG). Na realidade, o alcance de sua programação é muito maior.

Segundo um levantamento preliminar do Planalto, as palavras de Garotinho são retransmitidas por pelo menos 34 rádios, em 11 diferentes Estados. O Ministério Público do Rio, que está investigando possíveis crimes eleitorais, trabalha com números ainda maiores: 58 rádios, em 16 Estados.

Segundo revelou a CartaCapital um conhecido radialista do Nordeste, desde novembro do ano passado, emissários da Rádio Melodia vêm comprando espaço "a peso de ouro" na programação das estações de rádio, para retransmitir o programa de Garotinho até as eleições presidenciais.

"Tem muita gente topando, porque, para os donos das rádios, esse é um negócio da China: a Melodia os deixa livres para continuar vendendo os espaços publicitários; se quiser, ela passa a programação inteira a custo zero, e ainda dá uma bela grana em cima", explica o radialista, que pediu para não ser identificado. "De fato, a única obrigação das rádios que entram no esquema é transmitir todo dia a tal Paz do Governador."

Entre as emissoras que nas últimas semanas começaram a retransmitir a programação da Melodia no Nordeste está a Rádio Cruzeiro 92,7, de Salvador, uma das cinco estações FM mais ouvidas da capital baiana.

"O Grupo Melodia nos procurou, e para nós foi interessante fechar o negócio", contou a CartaCapital o dono da rádio, Paulo Motta. "Antes, tínhamos uma programação comercial normal, e a partir de 5 de junho começamos a transmitir os programas da Melodia." Eles estão pagando? "Claro, é um assunto comercial." Quanto pagam? O boato no mercado diz que são R$ 40 mil ao mês. "Isso não comento, é sigilo do cliente", responde Motta.

INTERESSE.

A versão da Rádio Melodia é algo diferente. "O satélite da Melodia é aberto. Eventualmente, alguém pode captar a programação e reproduzir. Nós não sabemos se alguém está fazendo isso", afirma o deputado estadual Eduardo Cunha (PPB-RJ), diretor da rádio e personagem célebre na política carioca desde o governo Collor. E qual seria o interesse de uma rádio de Caxias, interior do Maranhão, ou de uma emissora de Porto Velho, em reproduzir de graça a programação da Melodia?

"A Melodia está em primeiro lugar no Rio, é um trabalho bom, e assim desperta o interesse de outras pessoas", é a resposta de Cunha a CartaCapital. "Se você tem uma programação redonda, sem custo, e tem breaks (intervalos comerciais) para vender, qualquer um quer retransmitir"

VIRADAS.

Na opinião dos analistas, a retransmissão de A Paz do Senhor Governador Brasil afora contribui para explicar o repentino crescimento em todas as pesquisas eleitorais do jovem - e relativamente pouco conhecido - governador fluminense.

Aos 41 anos, ocupando seu primeiro cargo importante, Garotinho saltou, nos últimos meses, de 8% para 12% nas intenções de voto (as porcentagens variam um pouco, dependendo do instituto de pesquisa) e está praticamente empatado no segundo lugar com Ciro Gomes e Itamar Franco, políticos bem mais experientes e já há longo tempo em plena campanha eleitoral - Lula, em sua quarta candidatura, continua liderando, com folga, na casa dos 30%.

"O rádio é o veículo mais segmentado que há e, ao mesmo tempo, o mais discreto: permite atingir exatamente o público-alvo que interessa, e não é algo tão visível assim", diz João Francisco Meira, diretor-presidente do Vox Populi. "Dessa forma, Garotinho vem criando formadores de opinião entre os evangélicos de todo o País, e isso está se refletindo nas pesquisas."

O governador fluminense entende de comunicação - como inúmeros outros políticos, ingressou na vida pública pelos microfones de uma rádio: no caso, na cidade de Campos - e, embora há menos tempo, também entende de Bíblia. A conversão religiosa se deu após um acidente de carro durante a campanha eleitoral para governador, em 1994: perdeu as eleições para Marcelo Alencar, mas ganhou uma nova fé, como ele próprio conta num livro autobiográfico recém-lançado - Virou Meu Carro, Virou Minha Vida -, que se transformou em best seller na comunidade evangélica.

Pessoalmente, Garotinho se professa presbiteriano, mas adota uma espécie de discurso ecumênico que lhe garante trânsito livre em praticamente todas as principais igrejas e seitas evangélicas. Da mesma forma, a Rádio Melodia não é ligada a nenhuma facção específica. É uma emissora gospel, que veicula uma programação bem aceita por todos os evangélicos.

No Brasil - segundo projeções do Instituto de Estudos da Religião (Iser), baseadas em dados preliminares do censo do IBGE de 2000 -, os evangélicos representam, hoje, de 16% a 18% da população adulta brasileira, diante de 9% registrados em 1991. É algo próximo de 30 milhões de eleitores.

A pletora de bispos e pastores que se apinha pelos quatros cantos do País, há tempo percebeu o potencial eleitoral de seu rebanho, tanto que, de 1990 a 1998, a bancada evangélica na Câmara dos Deputados passou de 23 para 49 deputados. Uma das maiores entidades evangélicas - a Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo - é dona da terceira maior rede de televisão do País, a Record, e controla sozinha uma bancada de 15 deputados, liderados pelo Bispo Rodrigues (PL-RJ). Macedo, no entanto, sempre se limitou a usar seu peso político para pleitear benesses e favores ao governo federal, sem ousar vôos mais altos.

PRIMEIRA VEZ.

Garotinho representa algo novo: a primeira tentativa em grande estilo de utilização da fé religiosa de uma parte da população como instrumento para viabilizar uma candidatura a um cargo majoritário - no caso, o mais alto do País. Na campanha eleitoral para o governo do Rio, em 1998, Garotinho e sua vice, a senadora petista Benedita da Silva, nunca esconderam sua fé (ela é integrante da Assembléia de Deus), embora o aspecto religioso não tenha sido central na disputa. Uma vez eleito, no entanto, Garotinho passou a dar mais e mais importância ao papel das igrejas evangélicas, às quais foi confiada a implementação de boa parte das ações sociais - e assistenciais - do governo fluminense.

MÃO NO COFRE.

Essas entidades, por exemplo, filtram o repasse de boa parte dos recursos do Cheque-Cidadão, um programa que todo mês entrega vales de R$ 100 para compras em supermercados a 43 mil famílias carentes. Há, ainda, o Programa Morar Feliz, para a construção de milhares de casas populares com prestações simbólicas de R$ 1 ao mês. E mais: o Projeto Bolsa-Escola, o Projeto Da Rua para a Escola, o restaurante popular na Central do Brasil, dedicado ao Betinho, que vende 3 mil refeições por dia a R$ 1 cada. E por aí vai. De acordo com o secretário de governo, Fernando William, mais de 60 mil famílias são beneficiadas em todo o Estado.

Quem coordena os vários programas é a mulher do governador, Rosinha Matheus, no comando da Secretaria de Ação Social, um dos cargos estratégicos do governo, com um orçamento anual de R$ 150 milhões. Casada há 20 anos com Garotinho, com quem tem nove filhos (quatro naturais e cinco adotados), Rosinha está longe de cumprir o papel tradicional de primeira-dama, calada e ornamental.

Ela tem gênio forte, faro político aguçado e entende de comunicação tanto quanto o marido: trabalhou 13 anos em rádio, e nestas semanas está preparando o piloto de um programa de TV, produzido por Marlene Mattos - a da Xuxa. Título provisório: Simplesmente Rosinha. Pode ser o passo definitivo para sua transformação numa espécie de Evita Perón carioca. E evangélica.

"A postura do Garotinho é aquela de um populista tradicional, que distribui pequenos benefícios e vincula ao seu próprio nome tudo o que o governo faz", critica o líder do PT na Assembléia Legislativa, Artur Messias. "A novidade preocupante é que ele também introduziu um elemento místico nisso, que pode chegar a gerar algum tipo de fanatismo religioso", avalia ele. "Garotinho não hesita em dizer que sua candidatura é a vontade de Deus."

No sábado, 7 de julho, em almoço para mil convidados num clube de Brasília, Garotinho afirmou com todas as letras que "o Brasil precisa de um presidente com valores cristãos", e que a campanha de 2002 será marcada pela disputa religiosa. "Vou sofrer muitos ataques", previu. "Embora neguem, há preconceito contra os evangélicos no País."

Com CartaCapital, o governador usou tons mais brandos. Garotinho admitiu que "o apoio dos evangélicos será importante" na campanha eleitoral, mas emendou: "Eu governo o Rio, e governarei, se for presidente, para todos os brasileiros, independentemente das questões religiosas". Populista? "O populismo manipula e engana", costuma responder. "Eu não faço isso, faço um governo popular."

TELINHA.

Como bom candidato ungido pela vontade divina, Garotinho não poupa esforços na busca incessante de contato com o povo - como, aliás, manda o figurino do mais clássico populismo latino-americano. Contato direto, em dezenas de manifestações religiosas, organizadas pelos diligentes irmãos evangélicos em todo o País. E contato eletrônico, fazendo jus ao experiente radialista que é.

A estratégia de mídia de Garotinho - acompanhada com atenção por todos os principais candidatos na corrida presidencial - baseia-se numa mistura de passos óbvios e de jogadas de legalidade duvidosa. O governador fluminense, por exemplo, participou de meia dúzia de programas de auditório - de Raul Gil a Adriane Galisteu, de Ratinho a Luciana Gimenez - para falar de seus projetos sociais. Embora os próprios nunca o admitam publicamente, quem trabalha com publicidade e marketing político sabe que, em geral, os apresentadores desse tipo de programa cobram, e caro, para abrir espaço a políticos em busca de votos.

Por três meses, Garotinho também teve à sua disposição um programa semanal de 45 minutos na afiliada carioca da TV Record do irmão Macedo, usado para magnificar as realizações do governo e criticar toda e qualquer oposição. A encarregada da produção era a Blue Light, a mesma firma que havia trabalhado na campanha de Garotinho em 1998, e que hoje é contratada para fazer a publicidade institucional do governo. Após uma representação do PT, no final de junho, o Tribunal Regional Eleitoral tirou do ar o programa da Record, junto com o Fala Governador que a Rádio Tupi AM transmitia, por duas horas, todos os sábados.

GOLPE DURO.

Garotinho bem que tentou resistir. Na terça-feira, 19 de junho, através dos microfones da Rádio Melodia, convidou os irmãos a rezarem juntos para evitar "a covardia" dos "poderosos" que queriam "calar a voz dos que falam de Deus". "A audiência do nosso programa está crescendo", explicou o governador. "Eles vão ficando preocupados, isso incomoda. Eles têm receio que essas palavras do Garotinho toquem o coração do povo."

As orações não adiantaram. O que mais chamou a atenção no dia do julgamento do TRE foi a presença, na bancada de advogados do governador, do ex-secretário de Justiça, Antônio Oliboni, afastado em abril de 2000 após renovar, sem licitação, o contrato do governo com a Brasal, a empresa do rei das quentinhas Jair Coelho, da qual o advogado era sócio. No site no., está registrado o comentário de um desembargador: "O governante deveria se assessorar de melhor equipe".

Para as aspirações eleitorais de Garotinho, no entanto, um golpe bem mais duro seria uma eventual decisão da Justiça Eleitoral proibindo a transmissão de A Paz do Senhor Governador. Trata-se, em teoria, de um programa jornalístico, conduzido pelo próprio dono da Rádio Melodia, o pastor evangélico Francisco Silva, deputado federal (antes do PST e agora do PL), empresário (fez dinheiro com o laboratório que produzia o Atalaia Jurubeba, popular remédio para o fígado), radialista, ex-secretário e aliado de todas as horas do governador. Na prática, o programa resume-se a um monólogo de Garotinho, interrompido pelos esporádicos améns de Silva.

AMIGO DO PC.

Eduardo Cunha trabalha na Melodia desde 1995, e hoje é apontado no Rio de Janeiro como o encarregado de arranjar espaço nas rádios para Garotinho. Seu currículo, no entanto, tem etapas mais interessantes.

Ouviu-se falar pela primeira vez de Cunha em 1989 quando foi tesoureiro no Rio da campanha presidencial de Fernando Collor. Em fevereiro de 1991 foi nomeado presidente da Telerj - segundo algumas fontes, por indicação de Paulo César Farias - e ocupou o cargo até abril de 1993. No começo do governo Garotinho, o dono da Melodia, Francisco Silva, foi nomeado secretário de Habitação, cargo extinto em outubro de 1999, quando Silva reassumiu seu mandato parlamentar; enquanto isso, Cunha foi indicado presidente da Companhia Estadual de Habitação (Cehab).

Com a chegada de Cunha, começou a ser registrada na Cehab a presença diária de outro integrante do esquema collorido: o argentino, naturalizado brasileiro, Jorge La Salvia, testa-de-ferro de PC Farias em operações de lavagem de milhões de dólares do narcotráfico. Este nome aparece também em outra história escabrosa, a das fitas gravadas na sede do BNDES na véspera da privatização da Telebrás: no inquérito, foram detectadas várias ligações entre La Salvia e Temílson Antônio Barreto de Resende, o Telmo, indiciado como um dos autores do grampo.

Cunha acabou sendo afastado da Cehab em abril do ano passado, no roldão de denúncias sobre a enxurrada de contratos sem licitação e favorecimento a empresas amigas que varreu o governo fluminense, levando o PT a romper a aliança com Garotinho - o único quadro do partido que permanece no cargo é a vice-governadora, Benedita da Silva. Junto com Cunha e Oliboni, a degola no primeiro escalão atingiu vários integrantes da chamada Turma do Chuvisco, um fechado grupo de amigos e colaboradores que acompanha Garotinho desde as primeiras experiências políticas em Campos - chuvisco é um doce de ovo típico daquela cidade.

NÃO ROUBARÁS.

Entre eles, está Carlos Augusto Siqueira, presidente da poderosa Empresa de Obras Públicas do Estado, e Ranulfo Vidigal, presidente da Agência Reguladora dos Serviços Públicos Concedidos (Asep) e ex-prefeito de São João da Barra, cassado por corrupção em 1996.

Além das orações, ensina Garotinho em seu programa na Rádio Melodia, "para bem governar, é preciso não roubar". E mais: é preciso "agir de forma clara, limpa, sem essa safadeza que está imperando no Brasil. Aí, sobra dinheiro para a gente aplicar para nosso povo".

Das palavras aos fatos, na terça-feira, 10 de julho, O Globo denunciou, na capa, os detalhes de uma fraude fiscal e de uma tentativa de suborno a um fiscal da Receita Federal que envolveriam Garotinho, Rosinha e um integrante da Turma do Chuvisco, Jonas Lopes de Carvalho, atualmente conselheiro do Tribunal de Contas do Estado. Os fatos remontam a 1995, quando o hoje governador apresentava o Show do Garotinho na Rádio Tupi e na TV Bandeirantes, sorteando carros e casas entre o público que adquiria um livro de receitas culinárias editado pela Garotinho Editora Gráfica Ltda.

TELHADO DE VIDRO.

Trata-se, até hoje, do primeiro escândalo sério envolvendo diretamente o governador - o que pode ajudar a explicar o alto nível de aprovação de sua administração, que no último ano se mantém estável entre 60% e 62%. Ao que parece, a enxurrada de denúncias de irregularidades nos órgãos do governo não prejudicou a imagem pessoal de Garotinho. Da mesma forma, as quedas no alto escalão do Palácio Guanabara foram apenas temporárias. Enquanto os inquéritos na Justiça continuam engatinhando, Garotinho não descuidou dos amigos. Vidigal foi nomeado presidente da Agência de Desenvolvimento Local (ADL), que representa o governo em todos os municípios do Estado; Siqueira reassumiu o antigo cargo na Empresa de Obras Públicas; e Cunha, eleito segundo suplente de deputado estadual, graças às articulações do governador, assumiu uma vaga na Assembléia Legislativa - que lhe garante imunidade nas investigações do Ministério Público.

Na história toda, há também um episódio criminoso nunca esclarecido. Em outubro passado, Cunha e Francisco Silva foram vítimas de uma emboscada à bala, quando, de madrugada, deixavam a residência oficial do governador após terem gravado mais um programa para a Rádio Melodia. O Toyota Hilux em que viajavam foi atingido por mais de 20 tiros, um dos quais feriu, de raspão, o dono da Melodia; Cunha não foi atingido. Assalto? Tentativa de assassinato? A polícia jamais encontrou os responsáveis.

Viabilizar uma candidatura à Presidência, com chances reais de sucesso, é algo muito mais complexo do que governar um Estado, por mais importante e rico que seja - Garotinho, lembre-se, pode contar com as remessas dos royalties do petróleo pagas pela União, que, em 1999, permitiram fechar uma renegociação vantajosa da dívida estadual, e o deixaram com folga de caixa para investir.

O principal calcanhar-de-aquiles de Garotinho é não ter o respaldo de uma estrutura partidária significativa - após deixar o PDT, está filiado ao pequeno PSB. Além disso, até agora não conseguiu atrair apoios consideráveis fora do mundo evangélico. Seu rebanho potencial é grande, mas não necessariamente fiel. "Não dá para ele dar o voto dos evangélicos como favas contadas", alerta Regina Novaes, pesquisadora do Iser e professora de Antropologia da Universidade Federal do Rio. "As igrejas não são iguais, têm compromissos e lealdades diferentes, e isso vai acabar ficando evidente na campanha eleitoral."

NOVO COLLOR?

Se a candidatura presidencial for mesmo para valer, e não apenas um balão de ensaio para se projetar em nível nacional ao deixar o governo, conforme impõe a lei, em abril de 2002, Garotinho será provavelmente sucedido pela vice-governadora petista - o que deve tirar-lhe o apoio maciço da máquina administrativa do Estado. Isso só não aconteceria se Benedita se candidatasse ao Senado e não ao governo fluminense, mas a direção nacional do partido descarta totalmente essa possibilidade.

Ela evita polemizar abertamente com o governador, mas deixa claro de que lado estará. "Não deve haver confusão entre fé e política", disse Benedita a CartaCapital. "O meu candidato a presidente é Luiz Inácio Lula da Silva." Vale lembrar que, apesar de todos os acordos, depois que o PT deixou seu governo, nas eleições municipais de 2000 Garotinho apoiou Luiz Paulo Conde e não Benedita - os dois acabaram sendo derrotados por César Maia.

Falta mais de um ano para as eleições presidenciais. Muito pode e deve acontecer. Até onde chegará o vôo de Garotinho, ainda é cedo para dizer. "Ele tem um discurso voltado para as classes baixas, mas agrada também ao eleitor médio, que quer mudanças, sem abrir mão da estabilidade do governo FHC. Ele é jovem, tem uma cara nova", diz Meira, do Vox Populi. "Lembra Collor em 1998."

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