Publicado no Jornal do Brasil em
14/08/2001
Entrevista CESAR MAIA
O prefeito Cesar Maia (PFL) partiu para a
briga com o governo estadual, a quem acusa de só combater
a violência quando a imprensa estraga um pacto formado
entre autoridades e traficantes da cidade. Cesar considera que o
papel da polícia está reduzido ao de uma agência
reguladora que acredita na lei do mercado e interfere apenas
para evitar desequilíbrios no comércio varejista
de drogas
''Quando surge uma disputa de boca-de-fumo
entre grupos rivais, a polícia recebe orientação
para entrar contra um comando que é minoritário na
área'', denuncia o prefeito. ''Foi o que ocorreu em Santa
Teresa. Quando o Terceiro Comando (TC) entrou para disputar as
bocas-de-fumo, a polícia foi orientada para reprimir os
invasores e deixar que o Comando Vermelho (CV) estabilizasse o
seu controle na área.''
- Em artigo na Folha de S. Paulo, o sr.
criticou duramente a política de segurança pública
do Rio. Qual é o problema?
- O crime oculto está liberado no
Rio. Só o crime perceptível é reprimido. A
polícia no Rio é reativa. Quando aparece alguma
coisa, a ordem é atuar. Caso contrário é
deixar correr. Se são os comandos que controlam os presídios,
tanto faz. Se o ponto de drogas virou feira, tanto faz. Até
o momento em que aparece na imprensa. Aí a polícia
entra.
- No passado a polícia carioca foi
acusada de fazer vista grossa ao jogo do bicho. O sr. acha que
isso está acontecendo hoje com o tráfico de
drogas?
- É mais grave. O que a gente viu
pela TV é possível ver em todas as áreas
onde não há disputa das bocas-de-fumo. Um exemplo
existe no Morro do Turano, ao lado da escola Frei Cassiano, onde
você tem uma venda desse tipo. Por que na Mangueira o tráfico
ocorre em frente à escola? Por que a escola é a
proteção que o traficante tem. A polícia não
pode entrar atirando, porque os bandidos correm para a escola. Aí
seria uma catástrofe. Os traficantes usam as escolas como
escudos. E você vê esse tipo de feira de drogas
perto de várias escolas do Rio. Mas existe uma coisa
ainda mais grave. Quando surge uma disputa de boca-de-fumo entre
grupos rivais, a polícia recebe orientação
para entrar contra um comando que é minoritário na
área. Foi o que ocorreu em Santa Teresa. Quando o TC
entrou para disputar as bocas-de-fumo, a polícia foi
orientada para reprimir o invasor e deixar o CV estabilizar seu
controle na área. Outro caso foi a Favela do Sapo, em
Bangu, há algumas semanas. Houve uma disputa que acabou
com a intervenção da polícia, por orientação,
na defesa do CV e expelindo o TC. Isso estabilizou a situação
ali.
- Por analogia, seria como se a polícia
estivesse atuando como agência reguladora, não?
- É exatamente isso. É uma
agência reguladora. Você me pergunta se alguém
dá ordem a alguém para combater o CV e ajudar o
TC, ou vice-versa. Não é preciso voz de comando
direta. É só constatar que, naquela área, a
situação estava calma e mudou com a chegada do
pessoal que está entrando. Então, a lógica
deles é impedir esse grupo para acabar com tiroteios,
reduzir o uso de armas... Há uma experiência, muito
saudada pela academia, no Pavão-Pavãozinho-Cantagalo.
Cada vez que há tiroteio nessa área, no coração
da Zona Sul, a repercussão é de longo alcance.
Rapidamente, câmeras, rádios e jornais chegam ali.
Então, foi decidido estabilizar a área. Mas como
estabilizar uma área em que não há prevalência
permanente de um certo comando? A solução foi
colocar a polícia permanentemente lá dentro. A polícia
entrou e o tráfico não foi interrompido. Apenas se
pediu que o uso ostensivo de armas terminasse. O varejo de
drogas continua, mas a polícia interrompeu a disputa por
pontos de venda. Ela está controlando a região em
nome de quem?
-O sr. está dizendo que a polícia
funciona como uma espécie de leão-de-chácara
do tráfico?
- Objetivamente é isso mesmo.
Funcionam como leão-de-chácara, independentemente
da vontade da própria polícia, ou do que pensa o
major da área.Eu quero saber se na Visconde de Pirajá
a população estaria satisfeita com a ação
da polícia, se tivesse um ponto de tráfico aberto.
A classe média está satisfeita com a ação
da polícia lá em cima porque aqui em baixo não
existe tráfico de drogas aberto e porque não há
tiroteio. Vai ver os seus filhos estão subindo para
consumir a droga na boca-de-fumo que está liberada no Pavão-Pavãozinho-Cantagalo.A
situação é muito grave. Os bandidos usam
essas armas militares pesadas, AR-15, AK-47, para defesa e
disputa de território. Essas armas não são
usadas para um furto na rua. Imaginar que as armas são
causa e as drogas são um simples efeito secundário
é uma inversão da relação. A droga é
a matriz e as armas são derivadas desse processo. Estão
tratando dos efeitos e deixando de combater as causas.
- E o que isso pode acarretar?
- Primeiramente, o agravamento da corrupção
da polícia. O policial está substituindo a
mineira, que era uma ação pontual, de grupos de
policiais e não da corporação, pela cobrança
de pedágio de áreas. Hoje, você encontra pedágio
cobrado por batalhões. A PM nunca viveu situações
desse tipo. A PM tinha policiais corruptos, como qualquer
categoria, que faziam a mineira deles. O próprio batalhão
fazer o cerco da área e cobrar pedágio para abrir
esse cerco, é um sinal do apodrecimento da instituição.
- A quem o sr. responsabiliza por isso?
- Quem implantou isso foi o sr. Luiz
Eduardo Soares, com todas as letras. Evidentemente, nenhuma política
como essa pode ser implantada com, no mínimo, um silêncio
obsequioso da autoridade maior (o governador Garotinho).Essa política
foi implementada e se teve, não uma, nem duas, nem três,
mas várias vezes, autoridades discutindo diretamente com
traficantes. O caso do Jacarezinho é um caso desses.
Sempre que há um desequilíbrio nessa política,
quando há uma disputa por boca-de-fumo, a polícia
entra para reprimir duramente, para ocupar, como castigo. É
uma política de governo que mistura, simultaneamente, a
repressão com a permissividade.
-A mineira está sendo substituída?
-Como é que você pode
interpretar a decisão do secretário de Segurança
Pública em relação ao Batalhão de
Bangu (afastamento de 500 policiais)? Você já viu
quadrilha de 500 pessoas? Por que aconteceu aquilo no batalhão?
É exatamente a mesma lógica do que aconteceu em
outros batalhões. Porque, no de São Cristóvão,
usaram o batalhão como cativeiro? Quem comandava aquele
batalhão não era o coronel, que tinha vindo por
amizade com dirigentes da área de segurança por
ser afável e tocar bem violão. Quem comandava o
batalhão era um cabo.
- Como ocorre a negociação
de autoridades com traficantes?
-Antes havia uma política
repressiva, do general Nilton Cerqueira, que era muito criticada
em função do respeito, que todos nós temos
que ter, aos direitos humanos. Houve um impacto inicial com a
suspensão dessa política, com o aumento do crime
no asfalto. Em seguida começa a implementação
dessa política. Isso ocorre com a orientação
que, havendo tiroteio, há castigo. Onde as coisas não
se acomodam com facilidade, como no Jacarezinho, há
negociação.
-E quem negocia pelas autoridades?
-Cada caso é um caso. Não é
difícil saber de que maneira foi negociado. E esse tipo
de negociação ocorreu em várias comunidades
do Rio.
-E qual a participação do
governador Garotinho ou do secretário Josias Quintal
nessa política?
-No mínimo eles estão
equivocados. O capitão Rodrigo Pimentel perguntou no
Jornal do Brasil da semana passada por que a TV Globo pode usar
uma micro-câmera e identificar a feira de drogas e a polícia
não pode fazer o mesmo. E olha que a polícia nem
precisa da câmera oculta. Se aquela área estivesse
minimamente sob atenção da polícia, ela
teria obtido essa informação antes da TV Globo.
Mas a polícia não está interessada nessas áreas
porque elas estão pacificadas. Será que, para a
polícia entrar na Rocinha ou na Mangueira, é
preciso que a investigação seja feita pela
imprensa? É porque, onde não tiver ruído, não
há problema. Provavelmente, agora, estão pedindo
para alguém fazer esse comércio de forma mais
discreta.
-Mas esse problema não é
novo...
-Feira é novidade. Isso passou a
acontecer do final de 99 para cá. Eles sabem que têm
liberdade absoluta, que o pedágio foi pago e que a polícia
não entra porque a área está estabilizada.
O resultado é esse. Ninguém grita ''cocaína
a R$ 10'' se não tiver absoluta certeza de que não
há o mínimo risco de alguém chegar.
-O sr. acusa o governo de estar preocupado
apenas com a imagem do crime, não com o crime em si.
-Exatamente. O problema é de que
maneira todo o crime é percebido. Tanto o sr. Rubem César
Fernandes quanto o sr. Luiz Eduardo Soares consideram a ação
sobre a percepção tão importante quanto a ação
sobre o crime. Eles dizem isso e escrevem isso. Nós
estamos em um processo de ocultação. Estamos
ocultando esse cadáver trágico que é a
criminalidade. E a criminalidade está crescendo.
-Essas duas pessoas que o sr. critica são
identificadas com a política de direitos humanos. O sr. não
está criticando, de forma indireta, essa política?
-Você já viu alguma passeata
pela paz no retão da João XXIII, em Santa Cruz,
onde estão os grupos de delinqüentes e traficantes
de drogas mais violentos da cidade do Rio? Nunca, não é?
Você já viu alguma passeata pela paz comandada pelo
Viva Rio no calçadão de Bangu para a classe média
de Bangu ver? A gente só vê passeata pela paz na
Praia de Copacabana ou na de Ipanema para gerar percepção
da classe média. O que significa defesa dos direitos
humanos? O direito apenas à vida física? Não.
É o direito à vida física e à saúde
mental. Quando um policial mata um bandido a sangue frio, eu
estou de acordo que é um crime hediondo. Mas também
é um crime hediondo alguém viciar um jovem e o
poder público ficar omisso. Eu sou a favor da política
de direitos humanos. Sou contra armamentos. Não quero
armar a Guarda Municipal. Mas imaginar que desarmamento é
franquear o tráfico de drogas... não é!
-O sr. acha que o problema da
criminalidade tem solução? Já houve quem
prometesse resolver isso em seis meses.
-É preciso passar a segurança
pública, de política de governo para política
de estado. Não há política para isso que dê
resultado se não for a médio ou a longo prazo. É
preciso mais do que um período de quatro anos. E, se os
governos fracassam nessa matéria, os outros entram
criticando e mudando tudo.
Em artigo publicado ontem na Folha de S.
Paulo, Cesar criticou duramente a estratégia escolhida
pelo governo do estado, que segundo ele, faz vista grossa ao tráfico
de drogas e só se preocupa com a violência que é
veiculada pela mídia. Ao Jornal do Brasil, ele explicou
suas críticas. ''Imaginar que as armas são causa e
as drogas são um simples efeito secundário é
uma inversão da relação. A droga é a
matriz e as armas são derivadas desse processo. Estão
tratando dos efeitos e deixando de combater as causas.''
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