PM é agência reguladora do tráfico
Jorge Bispo

Publicado no Jornal do Brasil em 14/08/2001

Entrevista CESAR MAIA

O prefeito Cesar Maia (PFL) partiu para a briga com o governo estadual, a quem acusa de só combater a violência quando a imprensa estraga um pacto formado entre autoridades e traficantes da cidade. Cesar considera que o papel da polícia está reduzido ao de uma agência reguladora que acredita na lei do mercado e interfere apenas para evitar desequilíbrios no comércio varejista de drogas

''Quando surge uma disputa de boca-de-fumo entre grupos rivais, a polícia recebe orientação para entrar contra um comando que é minoritário na área'', denuncia o prefeito. ''Foi o que ocorreu em Santa Teresa. Quando o Terceiro Comando (TC) entrou para disputar as bocas-de-fumo, a polícia foi orientada para reprimir os invasores e deixar que o Comando Vermelho (CV) estabilizasse o seu controle na área.''

- Em artigo na Folha de S. Paulo, o sr. criticou duramente a política de segurança pública do Rio. Qual é o problema?

- O crime oculto está liberado no Rio. Só o crime perceptível é reprimido. A polícia no Rio é reativa. Quando aparece alguma coisa, a ordem é atuar. Caso contrário é deixar correr. Se são os comandos que controlam os presídios, tanto faz. Se o ponto de drogas virou feira, tanto faz. Até o momento em que aparece na imprensa. Aí a polícia entra.

- No passado a polícia carioca foi acusada de fazer vista grossa ao jogo do bicho. O sr. acha que isso está acontecendo hoje com o tráfico de drogas?

- É mais grave. O que a gente viu pela TV é possível ver em todas as áreas onde não há disputa das bocas-de-fumo. Um exemplo existe no Morro do Turano, ao lado da escola Frei Cassiano, onde você tem uma venda desse tipo. Por que na Mangueira o tráfico ocorre em frente à escola? Por que a escola é a proteção que o traficante tem. A polícia não pode entrar atirando, porque os bandidos correm para a escola. Aí seria uma catástrofe. Os traficantes usam as escolas como escudos. E você vê esse tipo de feira de drogas perto de várias escolas do Rio. Mas existe uma coisa ainda mais grave. Quando surge uma disputa de boca-de-fumo entre grupos rivais, a polícia recebe orientação para entrar contra um comando que é minoritário na área. Foi o que ocorreu em Santa Teresa. Quando o TC entrou para disputar as bocas-de-fumo, a polícia foi orientada para reprimir o invasor e deixar o CV estabilizar seu controle na área. Outro caso foi a Favela do Sapo, em Bangu, há algumas semanas. Houve uma disputa que acabou com a intervenção da polícia, por orientação, na defesa do CV e expelindo o TC. Isso estabilizou a situação ali.

- Por analogia, seria como se a polícia estivesse atuando como agência reguladora, não?

- É exatamente isso. É uma agência reguladora. Você me pergunta se alguém dá ordem a alguém para combater o CV e ajudar o TC, ou vice-versa. Não é preciso voz de comando direta. É só constatar que, naquela área, a situação estava calma e mudou com a chegada do pessoal que está entrando. Então, a lógica deles é impedir esse grupo para acabar com tiroteios, reduzir o uso de armas... Há uma experiência, muito saudada pela academia, no Pavão-Pavãozinho-Cantagalo. Cada vez que há tiroteio nessa área, no coração da Zona Sul, a repercussão é de longo alcance. Rapidamente, câmeras, rádios e jornais chegam ali. Então, foi decidido estabilizar a área. Mas como estabilizar uma área em que não há prevalência permanente de um certo comando? A solução foi colocar a polícia permanentemente lá dentro. A polícia entrou e o tráfico não foi interrompido. Apenas se pediu que o uso ostensivo de armas terminasse. O varejo de drogas continua, mas a polícia interrompeu a disputa por pontos de venda. Ela está controlando a região em nome de quem?

-O sr. está dizendo que a polícia funciona como uma espécie de leão-de-chácara do tráfico?

- Objetivamente é isso mesmo. Funcionam como leão-de-chácara, independentemente da vontade da própria polícia, ou do que pensa o major da área.Eu quero saber se na Visconde de Pirajá a população estaria satisfeita com a ação da polícia, se tivesse um ponto de tráfico aberto. A classe média está satisfeita com a ação da polícia lá em cima porque aqui em baixo não existe tráfico de drogas aberto e porque não há tiroteio. Vai ver os seus filhos estão subindo para consumir a droga na boca-de-fumo que está liberada no Pavão-Pavãozinho-Cantagalo.A situação é muito grave. Os bandidos usam essas armas militares pesadas, AR-15, AK-47, para defesa e disputa de território. Essas armas não são usadas para um furto na rua. Imaginar que as armas são causa e as drogas são um simples efeito secundário é uma inversão da relação. A droga é a matriz e as armas são derivadas desse processo. Estão tratando dos efeitos e deixando de combater as causas.

- E o que isso pode acarretar?

- Primeiramente, o agravamento da corrupção da polícia. O policial está substituindo a mineira, que era uma ação pontual, de grupos de policiais e não da corporação, pela cobrança de pedágio de áreas. Hoje, você encontra pedágio cobrado por batalhões. A PM nunca viveu situações desse tipo. A PM tinha policiais corruptos, como qualquer categoria, que faziam a mineira deles. O próprio batalhão fazer o cerco da área e cobrar pedágio para abrir esse cerco, é um sinal do apodrecimento da instituição.

- A quem o sr. responsabiliza por isso?

- Quem implantou isso foi o sr. Luiz Eduardo Soares, com todas as letras. Evidentemente, nenhuma política como essa pode ser implantada com, no mínimo, um silêncio obsequioso da autoridade maior (o governador Garotinho).Essa política foi implementada e se teve, não uma, nem duas, nem três, mas várias vezes, autoridades discutindo diretamente com traficantes. O caso do Jacarezinho é um caso desses. Sempre que há um desequilíbrio nessa política, quando há uma disputa por boca-de-fumo, a polícia entra para reprimir duramente, para ocupar, como castigo. É uma política de governo que mistura, simultaneamente, a repressão com a permissividade.

-A mineira está sendo substituída?

-Como é que você pode interpretar a decisão do secretário de Segurança Pública em relação ao Batalhão de Bangu (afastamento de 500 policiais)? Você já viu quadrilha de 500 pessoas? Por que aconteceu aquilo no batalhão? É exatamente a mesma lógica do que aconteceu em outros batalhões. Porque, no de São Cristóvão, usaram o batalhão como cativeiro? Quem comandava aquele batalhão não era o coronel, que tinha vindo por amizade com dirigentes da área de segurança por ser afável e tocar bem violão. Quem comandava o batalhão era um cabo.

- Como ocorre a negociação de autoridades com traficantes?

-Antes havia uma política repressiva, do general Nilton Cerqueira, que era muito criticada em função do respeito, que todos nós temos que ter, aos direitos humanos. Houve um impacto inicial com a suspensão dessa política, com o aumento do crime no asfalto. Em seguida começa a implementação dessa política. Isso ocorre com a orientação que, havendo tiroteio, há castigo. Onde as coisas não se acomodam com facilidade, como no Jacarezinho, há negociação.

-E quem negocia pelas autoridades?

-Cada caso é um caso. Não é difícil saber de que maneira foi negociado. E esse tipo de negociação ocorreu em várias comunidades do Rio.

-E qual a participação do governador Garotinho ou do secretário Josias Quintal nessa política?

-No mínimo eles estão equivocados. O capitão Rodrigo Pimentel perguntou no Jornal do Brasil da semana passada por que a TV Globo pode usar uma micro-câmera e identificar a feira de drogas e a polícia não pode fazer o mesmo. E olha que a polícia nem precisa da câmera oculta. Se aquela área estivesse minimamente sob atenção da polícia, ela teria obtido essa informação antes da TV Globo. Mas a polícia não está interessada nessas áreas porque elas estão pacificadas. Será que, para a polícia entrar na Rocinha ou na Mangueira, é preciso que a investigação seja feita pela imprensa? É porque, onde não tiver ruído, não há problema. Provavelmente, agora, estão pedindo para alguém fazer esse comércio de forma mais discreta.

-Mas esse problema não é novo...

-Feira é novidade. Isso passou a acontecer do final de 99 para cá. Eles sabem que têm liberdade absoluta, que o pedágio foi pago e que a polícia não entra porque a área está estabilizada. O resultado é esse. Ninguém grita ''cocaína a R$ 10'' se não tiver absoluta certeza de que não há o mínimo risco de alguém chegar.

-O sr. acusa o governo de estar preocupado apenas com a imagem do crime, não com o crime em si.

-Exatamente. O problema é de que maneira todo o crime é percebido. Tanto o sr. Rubem César Fernandes quanto o sr. Luiz Eduardo Soares consideram a ação sobre a percepção tão importante quanto a ação sobre o crime. Eles dizem isso e escrevem isso. Nós estamos em um processo de ocultação. Estamos ocultando esse cadáver trágico que é a criminalidade. E a criminalidade está crescendo.

-Essas duas pessoas que o sr. critica são identificadas com a política de direitos humanos. O sr. não está criticando, de forma indireta, essa política?

-Você já viu alguma passeata pela paz no retão da João XXIII, em Santa Cruz, onde estão os grupos de delinqüentes e traficantes de drogas mais violentos da cidade do Rio? Nunca, não é? Você já viu alguma passeata pela paz comandada pelo Viva Rio no calçadão de Bangu para a classe média de Bangu ver? A gente só vê passeata pela paz na Praia de Copacabana ou na de Ipanema para gerar percepção da classe média. O que significa defesa dos direitos humanos? O direito apenas à vida física? Não. É o direito à vida física e à saúde mental. Quando um policial mata um bandido a sangue frio, eu estou de acordo que é um crime hediondo. Mas também é um crime hediondo alguém viciar um jovem e o poder público ficar omisso. Eu sou a favor da política de direitos humanos. Sou contra armamentos. Não quero armar a Guarda Municipal. Mas imaginar que desarmamento é franquear o tráfico de drogas... não é!

-O sr. acha que o problema da criminalidade tem solução? Já houve quem prometesse resolver isso em seis meses.

-É preciso passar a segurança pública, de política de governo para política de estado. Não há política para isso que dê resultado se não for a médio ou a longo prazo. É preciso mais do que um período de quatro anos. E, se os governos fracassam nessa matéria, os outros entram criticando e mudando tudo.

Em artigo publicado ontem na Folha de S. Paulo, Cesar criticou duramente a estratégia escolhida pelo governo do estado, que segundo ele, faz vista grossa ao tráfico de drogas e só se preocupa com a violência que é veiculada pela mídia. Ao Jornal do Brasil, ele explicou suas críticas. ''Imaginar que as armas são causa e as drogas são um simples efeito secundário é uma inversão da relação. A droga é a matriz e as armas são derivadas desse processo. Estão tratando dos efeitos e deixando de combater as causas.''

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