De férias da história, mundo islâmico não avança
Pepe Escobar

Publicado no Jornal O Estado de São Paulo no Domingo, 26 de dezembro de 1999

Oriente Médio muçulmano, outrora parte do poderoso Império Otomano, permanece estático como as Pirâmides

DAMASCO - Uma afluente empresa high tech cotada no índice de empresas e tecnologia Nasdaq, de Nova York, poderia comprar a Síria com tudo dentro. Não teria muito o que aproveitar. Não admira: este é um país onde, em um hotel cinco-estrelas, a gerência admite nunca ter encontrado um hóspede atormentado pela impossibilidade de conectar um laptop. A Internet é proibida. Foi liberada há pouco em conta-gotas: o provedor é o Estado e a vigilância é absoluta. A Síria não tem celular, bancos privados ou Bolsa: em suma, não tem investimento estrangeiro.

O mantra em todo o Oriente Médio, no momento, é o processo de paz em duas trilhas - palestina e síria -, que excita os think tanks de Washington, mas evoca um ceticismo abissal nas populações locais. Já céticos ocidentais comentam que o recluso presidente sírio, Hafez Assad, não está exatamente sonhando com a Internet, legiões de turistas israelenses ou um Nobel da Paz: seu imaginário ainda está fixado no tempo em que o território da Grande Síria também englobava o sul da Turquia, Líbano, Israel e Jordânia: Damasco, Aleppo, Beirute e Jerusalém eram jóias da coroa da parte árabe do Império Otomano.

Uma questão muito mais ampla, no entanto, preocupa as elites intelectuais do mundo árabe e do Islã às vésperas do ano 2000 - como pôde comprovar este correspondente em um recente tour pela Síria, Líbano, Jordânia, territórios palestinos, Turquia e Irã: como o Islã perdeu a corrida tecnológica para o Ocidente e as causas e conseqüências disso.

O slogan oficial para promover o turismo no Egito é "Bem-vindo ao nosso sétimo milênio." Comenta um diplomata em Jerusalém: "Só espero que não seja um sétimo milênio sob o Rei Disney."

"Islã" significa, literalmente, "submissão" a Deus. O eminente historiador David Landes, de Harvard, observa que "a explosão de paixão e dedicação" durante o avanço do Islã "foi a mais importante da história da Eurásia nos mil anos entre a queda do Império Romano do Ocidente (476) e a expansão marítima da Europa cristã". Mas, se os muçulmanos conquistaram boa parte do planeta a cavalo, convencidos de que Deus e a História estavam do seu lado, a Europa conquistou todo o planeta com poder de fogo e movida a lucro. As implicações vigoram até hoje.

Landes declara que desde 1187, quando o curdo Saladino retomou Jerusalém dos cruzados, o Islã está mergulhado em uma interminável decadência. A derrocada final vem desde a queda de Constantinopla - ou Istambul, que significa "A Cidade". Landes e inúmeros historiadores concordam que esse é um dos eventos mais significativos de todos os tempos: "Mudou a História de um modo que ainda está sendo avaliado 500 anos depois."

A inferioridade do Islã ficou patente quando suas relações comerciais com a Europa se inverteram. E foi selada de vez quando o Islã vetou o uso da impressão gráfica, dirimida como potencial instrumento de sacrilégio e heresia. A partir daí, o mundo muçulmano isolou-se de vez da vanguarda do conhecimento.

Historiadores concordam: segregação intelectual, perda da corrida tecnológica e dependência industrial fizeram com que o centro do mundo se deslocasse para a Europa, em prejuízo do Império Otomano, que, por séculos, carregou a bandeira do Islã. O prego no caixão do Império Otomano, que levou 300 anos para apodrecer, foi a Revolução Industrial. Partes significativas do mundo árabe nem chegaram à Revolução Industrial.

Hoje, os contrastes são ainda mais brutais. A Síria ainda está em um mundo das Mil e Uma Noites, enquanto a Jordânia atravessa um lento processo de californização desde que o falecido rei Hussein fez a paz com Israel e foi contemplado com amplo interesse e investimentos dos EUA. Estatísticas do Banco Mundial contam uma parte da história. No início dos anos 60, as sete principais economias do mundo árabe tinham uma renda per capita média pouco acima de US$ 1.500, enquanto as sete principais do leste da Ásia (ainda nem sonhando em tornar-se tigres) ficavam pouco acima de US$ 1.400. No início dos anos 90, os árabes estavam com pouco mais de US$ 3 mil e os tigres, mais de US$ 8 mil. O Oriente Médio árabe atrai apenas 3% do investimento estrangeiro direto global. O leste da Ásia, pré-crise, atraía quase 60%, porcentual que deve voltar a alcançar no ano 2000.

O xis da questão é que o Oriente Médio árabe não desenvolveu uma economia avançada e comportou-se como a Espanha dos séculos 17 e 18: comprou especializações e serviços alheios ao invés de aprender a fazer as coisas por si. A explicação é, acima de tudo, cultural. A cultura do Islã não é propícia à formação de uma força de trabalho competente e bem informada. E continua a desconfiar e mesmo rejeitar novas técnicas e idéias que vêm do Ocidente inimigo - e cristão.

Há um medo quase obsessivo de inovar, tanto em pensamento quanto em tecnologia. Para piorar, as taxas de analfabetismo são altíssimas e ainda mais insuportáveis entre as mulheres. Com ocasionais exceções, no Islã do mundo árabe a mulher é um ser absolutamente inferior. Um dos melhores indicadores de crescimento e potencial de desenvolvimento de uma nação é o status da mulher. No Islã do mundo árabe, sua humilhação já começa no berço. A própria existência é uma negação e seu corpo, puro pecado.

Não é raro o deprimente espetáculo de uma mulher insultada em público sem uma só voz erguida em protesto. Os mais ricos regimes do Oriente Médio têm muito petróleo e pouca gente, como Arábia Saudita e Kuwait. Os mais pobres têm pouco pétróleo e muita gente, como o Egito. No meio estão os que têm petróleo, mas gente demais, como Irã e Iraque. Há ainda pobres como o Paquistão, no sul da Ásia, mas em conexão direta com o Oriente Médio: o país exporta crianças, que funcionam como servos para trabalho manual ou fonte de prazer.

Petróleo e demografia explicam desdobramentos políticos. O petróleo intoxicou dirigentes, seus lacaios e aproveitadores em geral, que gastaram montanhas de dinheiro em projetos inúteis - ou hotéis e resorts - ao invés de melhorar as condições de vida das populações locais. O processo só serviu para enfurecer ainda mais as massas deserdadas. A válvula de escape para seu ultraje é a adesão maciça a todo tipo de fundamentalismo.

A combinação de um Islã calcificado com uma sociedade de extremo machismo só poderia dar em violência indiscriminada, cujo mais sinistro exemplo é o regime de Saddam Hussein, ainda ereto mesmo após todos os golpes e infiltrações da CIA. A vida é um inferno para quem está no Oriente Médio. Na Síria, a oposição religiosa foi massacrada. No Irã, a Revolução Islâmica transcorreu sob profunda intolerância. No Iraque, o regime aspergiu gás venenoso sobre a população curda. Assassinatos são moeda corrente no Paquistão e no Egito.

O juízo de Daryush Shayegan, ex-professor de filosofia comparada da Universidade de Teerã e ex-diretor do Instituto de Estudos Ismailis, em Paris, não é exagerado: "Nós, os herdeiros das civilizações da Ásia e da África, estamos `de férias' da História há mais de 300 anos." O professor Shayegan identifica a história das relações entre o Islã e o cristianismo como uma simultânea fascinação e repulsão - até o mundo islâmico rejeitar o Ocidente e cair na rigidez.

As reservas, a princípio, eram teológicas: na mente muçulmana, o Ocidente sempre foi associado à religião cristã. Muçulmanos têm a convicção messiânica de que o Islã é a última revelação: portanto, o cristianismo só poderia ser uma religião obsoleta. Mas a expansão militar do Ocidente virou a mesa: e o Islã, representado pelo império otomano, vergou-se à dura realidade da superioridade tecnológica e militar do Ocidente.

Os souqs podem ser a essência do fascínio do Oriente Médio. Mas é percorrendo souqs, sob o caos da economia de bazar, que melhor se percebe como o mundo islâmico ficou alienado do trio dourado da história da Europa: a expansão das rotas marítimas, o Renascimento e a Reforma. Assim foi forjada a modernidade e a exclusão do Islã.

Hoje, ao menos, ouve-se de empresários influentes no mundo árabe que, ao invés de rejeitar o Ocidente, o Islã deveria seguir o exemplo dos asiáticos e se submeter a um humilde aprendizado que o habilitaria a assimilar e eventualmente superar Europa e EUA. Mas isso pressupõe mais democracia. E, para se chegar à democracia, é necessária a secularização de mentes e de instituições, como a promovida, à força, mas com sucesso, por Ataturk na Turquia. Não por acaso a Turquia é uma sociedade bem mais avançada que suas ex-possessões imperiais no Oriente Médio e até contempla a possibilidade de aceder à União Européia na primeira década do novo século 21.

O professor Shayegan considera que "o problema do mundo islâmico reside em seus pesados atavismos, reflexos defensivos, blocagens intelectuais e acima de tudo na pretensão ilusória de possuir respostas prontas para todas as questões do mundo". Este é um mundo "estático como as Pirâmides", "pré-Galileu". Um mundo não afetado pelos três grandes choques - cosmológico, biológico e psicológico - que forjaram, como demonstrou Freud, a consciência do homem moderno. Mas é sempre possível que a paz entre israelenses e palestinos e israelenses e sírios, o fim de Saddam Hussein e a volta do Irã ao capitalismo possam conformar-se como três choques capazes de acordar o Islã de suas "férias da História".

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