Rituais mataram 6 e feriram mais de 60
Rubens Valente

Publicado em 30/11/98 no Jornal Folha de São Paulo

A Onda de violência em seringal do Acre começou com alegada 'mensagem de Deus', durou 8 dias e atingiu até animais

O fanatismo religioso que dominou por oito dias o seringal Lavras, a 120 quilômetros de Tarauacá (AC), começou com uma "mensagem enviada por Deus".

Essa é a justificativa que os autoproclamados líderes do grupo religioso deram para que seis pessoas fossem assassinadas e mais de 60 feridas com chibatadas e pauladas em supostos rituais.

Seis pessoas estão presas em Tarauacá, que fica a 466 quilômetros de Rio Branco, na divisa com o Amazonas, no meio da floresta _onde só se chega de avião.

Os depoimentos de testemunhas indicam que o agricultor Francisco Bezerra de Morais, 35, o Totó, e sua mulher, Raimunda Bernardo Gomes, 35, a Doca, estabeleceram uma liderança religiosa sobre um grupo de 70 agricultores analfabetos e miseráveis.

Tudo ocorreu a partir do dia 11 deste mês, quando Doca teria recebido as tais mensagens divinas. Ela e o companheiro começaram então a determinar castigos e assassinatos como forma de "purificação", preparando o grupo para ser "arrebatado" (levado para o céu). A violência só foi contida no dia 18, quando chegou a notícia de que um dos espancados, que fugiu, estava voltando com um grupo para dominar o seringal.

Morais disse à Agência Folha que, por "ordem de Deus", matou uma agricultora, Maria Luiza Pinheiro, 27, autorizou a morte de dois homens e determinou espancamentos em mais de 60 pessoas.

"A ordem veio para matar três pessoas. Os que morreram não eram gente, eram o Satanás", disse Morais, que também matou cachorros e galinhas nos quais dizia ver "o demônio". O agricultor não admite que pretendia matar todos no seringal, mas, logo em seguida, afirma que "quase tudo estava endemoninhado".

Mortes anunciadas

A agricultora Francisca Bernarda de Sá, 31, que foi espancada com uma correia de motor, declarou à polícia que a intenção de Morais era matar mais pessoas no seringal e que as próximas, já anunciadas, seriam ela, sua filha e sua cunhada.

Os pais das três crianças mortas (de 3, 5 e 13 anos) disseram que as mortes foram ordenadas por Morais. "Era pra matar quem estava endemoninhado. O pastor falou que Deus mandou", afirmou Adalberto Ferreira de Souza, 37.

Morais disse que não teve participação nessas mortes, mas concordou com a atitude dos pais.

Líder dava perdão e se dizia Deus

da Agência Folha, em Tarauacá (AC)

O agricultor Francisco Bezerra de Morais alegou ter recebido uma mensagem divina para assumir o cargo de pastor da Igreja Pentecostal Unidos do Brasil no último dia 11_sem o conhecimento da direção da igreja, que fica em Manaus (AM); a igreja negou qualquer relação com os fanáticos.

A mensagem teria sido recebida pela sua mulher, que afirmava ouvir vozes de Deus.

Uma das primeiras atitudes do casal foi ordenar o espancamento do auxiliar da igreja Francisco Oliveira de França, 32, que recebeu pauladas, chutes e socos.

Para escapar, ele teve de se fingir de morto, nadar, caminhar na mata e pegar carona durante três dias até chegar a Tarauacá. Seu irmão, José Lima de França, 37, foi morto degolado com um facão. A violência chocou 17 moradores, que deixaram o seringal.

Por três dias, Morais e sua mulher, Raimunda, foram adorados, carregados pelos fiéis e beijados. Raimunda era levada em procissão e, por três vezes, foi colocada contra um barraco simulando uma crucificação. Morais se dizia Deus, abençoava e perdoava "os pecadores".

Um grupo de 13 pessoas queimou suas roupas e, nu, esperou ser "arrebatado". Em lugar da esperada salvação, chegou a notícia de que o auxiliar da igreja trazia homens dos seringais vizinhos.

Totó, sua mulher e mais quatro agricultores foram presos pela Polícia Civil, que procura outros dois suspeitos.

Agricultor abençoava e dava perdão a 'pecadores'; sua mulher disse ter visões e foi adorada pelos seguidores

Líder diz que matou 'por ordem de Deus'

O agricultor Francisco Bezerra de Morais, 35, apelidado de Totó, disse à Agência Folha que, por "ordem de Deus", matou uma agricultora, Maria Luiza Pinheiro, 27, autorizou a morte de dois homens e determinou os espancamentos em mais de 60 pessoas.

"A ordem veio para matar três pessoas. Os que morreram não eram gente, eram o Satanás", disse Morais. O agricultor não admite que pretendia matar todos no seringal, mas, logo em seguida, afirma que "quase tudo estava endemoninhado".

A onda de violência começou com a alegada "mensagem enviada por Deus", recebida pela mulher de Morais, Raimunda Bernardo Gomes, 35, a Doca.

Seu relato sobre as vozes divinas que ouvia impressionou cerca de 70 agricultores, quase todos analfabetos e miseráveis, vivendo longe das cidades _o seringal fica a 120 quilômetros de Tarauacá (AC) e a 466 quilômetros de Rio Branco, na divisa com o Amazonas.

Raimunda e o companheiro começaram então a determinar castigos e assassinatos como forma de "purificação", preparando o grupo para ser "arrebatado".

Morais se auto-intitulou pastor da Igreja Pentecostal Unidos do Brasil _sem o conhecimento da direção da igreja, que existe de fato, fica em Manaus (AM) e nega qualquer relação com os fanáticos.

Uma das primeiras atitudes do casal foi ordenar o espancamento do auxiliar da igreja Francisco Oliveira de França, 32, que recebeu pauladas, chutes e socos.

Para escapar, ele teve de se fingir de morto, nadar, caminhar na mata e pegar carona durante três dias até chegar a Tarauacá. Foi França quem levou a notícia sobre a onda de violência à cidade. Seu irmão, José Lima de França, 37, foi morto degolado com um facão.

Por três dias, Morais e sua mulher, Raimunda, foram adorados, carregados pelos fiéis e beijados. Raimunda era levada em procissão e, por três vezes, foi colocada contra um barraco simulando uma crucificação. Morais dava o perdão "aos pecadores".

A violência chocou 17 moradores, que deixaram o seringal.

A agricultora Francisca Bernarda de Sá, 31, espancada com uma correia de motor, declarou à polícia que a intenção de Morais era matar mais pessoas no seringal e que as próximas, já anunciadas, seriam ela, sua filha e sua cunhada.

Os pais das três crianças assassinadas (de 3, 5 e 13 anos) disseram que as mortes foram ordenadas por Morais. "Era pra matar quem estava endemoninhado. O 'pastor' falou que Deus mandou", afirmou Adalberto de Souza, 37.

Morais disse que não teve participação nessas mortes, mas concordou com a atitude dos pais. Ele, sua mulher e os outro quatro presos agora aguardam julgamento.

Pai agora não vê razão para ter matado filhos

Aos gritos de "mata esse Satanás", a estudante A., 9, viu os agricultores do seringal de Lavras assassinarem sua mãe e seu irmão de cinco anos.

Samuel, 5, foi morto pelo próprio pai, o agricultor Adalberto Ferreira, 37 _que anteontem disse à Agência Folha "amar muito" seus filhos. Agora, o agricultor diz não ver razão para ter cometido os crimes.

Ferreira também matou Israel, 3, enquanto A. dormia. O primeiro foi morto pisoteado e o segundo, por espancamento. Ferreira incendiou a própria casa e jogou os corpos dentro.

A garota também presenciou quando seu pai empurrou uma criança, identificada como Liardi, de oito anos, filho de um vizinho, para dentro da casa que começava a pegar fogo.

A criança teria sido espancada por Ferreira, que a acreditava morta.

Por algum motivo, a mulher de Morais, Raimunda Bernardo Gomes, resolveu poupar a criança, mandando que ela fosse salva das chamas. Liardi levantou-se, saiu da casa que pegava fogo e escapou da morte.

O assassinato de Maria Luiza Pinheiro, a mãe de A., foi o único praticado diretamente pelo líder do grupo, o 'pastor' Morais, de acordo com a versão que ele apresentou à polícia e à imprensa, após ter sido preso.

A. disse que Raimunda incentivou o assassinato aos gritos de "mata, mata esse Satanás velho".

Maria Luiza ainda teria pedido ajuda de Ferreira para interromper o espancamento que sofria, mas o marido permaneceu estático e não saiu em sua defesa.

Futuro das crianças

O destino de A. _cujos irmãos e mãe estão mortos e o pai preso_ está sendo discutido pelo Conselho Tutelar de Tarauacá. Ela deverá ser deixada com um parente do mesmo seringal, que sobreviveu à onda de violência e não aparece como diretamente envolvido na onda de violência.

A escola mais próxima do seringal fica a pelos menos três horas de barco.

Os quatro filhos menores do casal preso, Morais e Raimunda, deverão ser deixados com a mãe de Morais.

Polícia busca mortos em ritual no AC

Uma equipe da Polícia Civil do Acre seguiu ontem para o seringal Lavras (120 km de Tarauacá) para tentar resgatar os corpos dos seis agricultores mortos em supostos rituais religiosos entre os últimos dias 15 e 18.

A equipe, formada por um médico legista, um perito criminal e dois policiais, passaria três horas em burros, duas em barco e uma em avião pequeno para recolher os corpos que estão espalhados na mata. A viagem da equipe, prevista para anteontem, foi adiada por causa de um temporal.

Os agricultores _três crianças, dois homens e uma mulher_ foram mortos supostamente em rituais de exorcismo liderados por Francisco Bezerra de Morais, 35, o "Totó", que se intitulava pastor da Igreja Pentecostal Unidos do Brasil, o que é negado pela direção da igreja. Morais e outros cinco agricultores acusados pelos assassinatos estão presos na delegacia de Tarauacá.

O secretário da Segurança Pública do Acre, Samoel Martins Evangelista, 41, que esteve no local, disse ontem que os assassinos agiram "movidos por um fanatismo extremado aliado à ignorância". Os crimes teriam ocorrido durante pregações nas casas das vítimas.

Os cerca de cem moradores do seringal Lavras são "quase todos analfabetos" e a dificuldade de acesso à região deixa o Estado "sempre ausente", disse.

Depoimentos

Nos depoimentos coletados pela polícia, os agricultores revelaram que, após as últimas mortes, ocorridas no dia 18, eles foram ao ponto mais alto do seringal, rasgaram e queimaram suas roupas e, nus, aguardaram ser "arrebatados pelos anjos" (levados para o céu).

Como nada ocorreu, o grupo se dispersou e só foi preso quando a polícia investigava as denúncias do "pastor" anterior, Francisco Oliveira de França, 32. O pastor havia sido destituído por Morais e "castigado" com surras pelos fiéis. Ele procurou a Polícia Civil e denunciou que pessoas estavam sendo espancadas no seringal.

O secretário disse que não há indício de que o grupo tenha ingerido bebidas alcoólicas ou alucinógeno. Quatro dos seis acusados foram submetidos ontem a exame de corpo de delito. Os seis estão presos na delegacia de Tarauacá e deverão ter assistência jurídica do defensor público Martiniano de Siqueira.

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