Fé cega
Rovênia Amorim e Tarciano Ricarto

Publicado no Jornal Correio Braziliense em 11/03/2001

Nas mãos de Deus

Pesquisa de sociólogos da Universidade de Brasília estabelece ligação entre devoção à chamada ''religiosidade mágica'' e a intolerância a adeptos de outras crenças. Essa tendência atingiria ainda a atuação política e seria mais expressiva entre os fiéis assíduos aos cultos e com menos escolaridade

O terreno é movediço. Os políticos pisam com receio e os pesquisadores estudam com cuidado. Mas uma pesquisa da Universidade de Brasília (UnB) promete reaquecer o controverso tema da fé popular. O estudo aponta, em números, a tendência de que a religiosidade mágica (crença nos milagres, nas curas e na conquista imediata de bens materiais) limita seus adeptos ao exercício de uma democracia plena. Quanto mais o religioso é assíduo a uma crença e acredita num ser supremo (Deus, espíritos ou entidades) como condutor absoluto de sua vida, menos admite diferenças.

Essa tendência é mais visível, de acordo com a pesquisa, entre os religiosos que vão com maior freqüência a cultos. É justamente entre eles que os traços de intolerância são marcantes. Por exemplo, dos entrevistados que declararam ir diariamente à igreja ou a qualquer outro espaço religioso, 93,75% afirmaram ser errado uma pessoa freqüentar mais de uma religião. ''Deus é um só. É preciso se decidir. Tem de ser quente ou frio, não dá para ser morno'', diz a estudante de Geografia, Carla de Souza, 23, moradora da Asa Norte e evangélica convicta.

O católico praticante Ricardo Valente, 25 anos, não passa na porta de uma igreja sem fazer o sinal da cruz. Para ele, sem Deus a vida não teria significado. ''A vida é um presente de Deus'', define.

''É Deus que dá sentido à minha vida. Eu tentava resolver meus problemas e não conse-guia'', afirma o comerciário Cláudio César da Silva, 29 anos, morador da 309 Sul e fiel assíduo dos cultos da Igreja Batista Central de Brasília. Segundo a pesquisa, 87,5% das pessoas, que todo dia estão no seu meio religioso, têm a mesma opinião. Ou seja, acreditam numa força superior interferindo em seu dia-a-dia.

Em outro extremo, estão as pessoas que nunca visitam igrejas. Quase 64% acham que não há nada errado em freqüentar mais de uma religião. Esses entrevistados são os mais tolerantes, segundo a pesquisa Política e Magia no Distrito Federal, do Departamento de Sociologia da UnB, que ouviu 400 pessoas, com mais de 16 anos, de diferentes classe sociais e escolaridade, em todas as cidades do Distrito Federal. Até acreditam em Deus, mas são os que menos crêem numa força superior conduzindo, de forma incondicional, suas vidas.

PRECONCEITOS

A visão de que um deus direciona os passos do homem é também condicionada pela escolaridade. Quanto menos estudo tem a pessoa, mais ela atribui o sentido da própria vida a um deus. A totalidade dos analfabetos e a maioria das pessoas com 1º grau (87,79%) e 2º grau (82,27%) acreditam que um ser supremo conduz a vida deles. Apenas 46,5% dos entrevistados com curso superior deram a mesma resposta.

''É na passagem do 2º grau para a universidade que a religiosidade mágica e os preconceitos desaparecem'', afirma o sociólogo Eurico Santos, professor de sociologia política na UnB e um dos autores da pesquisa, que faz parte do livro Política e Valores, publicado ano passado pela Editora Universidade de Brasília. ''Pessoas com nível superior e sem religião têm discurso parecido ao dos religiosos que passaram pela universidade. O fiel escolarizado tem mais consciência'', confirma o outro autor da pesquisa, o sociólogo Caetano Pereira de Araújo.

Os pesquisadores observaram que a religiosidade mágica tende a criar um ambiente nada propício à convivência democrática e ao exercício da cidadania. ''Se alguém concebe que sua vida é regida pelo humor dos deuses, a noção de responsabilidade fica diluída. Isso reflete de maneira semelhante na percepção dos problemas da sociedade. O homem vira um joguete nas mãos de forças que determinam sua vida'', avalia Eurico.

A partir disso, a intolerância com as diferenças alheias surge como um mecanismo de auto-defesa. ''Quanto mais mágica é minha crença, mais ameaçadora se tornam as outras'', diz o sociólogo. A explicação do especialista: por não ter embasamento doutrinário, a religiosidade mágica é frágil e, portanto, tudo o que é diferente passa a ser visto como ameaça. Essa seria a raiz da intolerância, segundo os pesquisadores.

O arcebispo de Brasília, Dom José Freire Falcão, diz que é preciso separar fé de fanatismo para entender a relação da intolerância religiosa com o conceito de democracia. ''Uma coisa é estar convicto de sua crença. Outra é não respeitar a dos outros. O fanático não aceita a religião do outro e é o que impede a convivência democrática.''

Metodologia

A pesquisa da UnB tem a mesma metodologia empregada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de amostragem domiciliar. Foram ouvidas 400 pessoas em todo o Distrito Federal, respeitando as proporcionalidades de gênero, idade, escolaridade e população de acordo com a localidade. A margem de erro é de 5%.

Intolerância e Insegurança

A socióloga Júlia Miranda, que está iniciando pós-doutorado no Centro de Estudos Interdisciplinares dos Fatos Religiosos, na Escola Prática de Auto-Estudos em Ciências Sociais, na França, acredita nos resultados da pesquisa. Júlia investiga, há 20 anos, a articulação entre religião e política na sociedade. Lançou no final do ano passado o livro Carisma, Sociedade e Política - resultado de uma pesquisa de três anos e meio sobre o movimento Carismático, da Igreja Católica.

Entre os carismáticos, existem práticas que se aproximam do que os autores da pesquisa no DF chamam de ''religiosidade mágica'' (curas, profetizações, manifestações do Espírito Santo). Durante suas observações entre os carismáticos, Júlia afirma ter detectado traços claros de intolerância.

Ela lembra o caso de um jovem em dúvida sobre o futuro acadêmico. ''Ele foi aconselhado a evitar cursos como Ciências Sociais e Filosofia porque incitavam a dúvida e eram incompatíveis com a fé'', conta. Ela também notou a tendência dos jovens carismáticos de só andar na companhia de outros carismáticos. ''Isso é não aceitar o diferente.''

O bispo Pedro Casaldáliga, um dos ideólogos da Teologia da Libertação na América Latina, vê de forma positiva a vertente carismática. É categórico ao afirmar que, quando o ser humano não sabe exercitar a democracia em um aspecto, também ''não saberá em outros''. Ele rebate a postura intolerante com outras crenças, afirmando que ''qualquer insegurança psicológica é contrária à fé madura''.

O que o bispo chama de ''fé madura'' se encaixa na definição dos pesquisadores da UnB sobre o que seria a religião transcendente. ''É o oposto da religião mágica. Prega uma visão totalizante do ser humano. É aquela que tenta colocar o homem em contato com o significado da vida.'' Os religiosos que têm essa visão, garantem os autores da pesquisa, não se sentiriam ameaçados por outras crenças e estariam mais abertos a diferenças. (RA e TR)

A tolerância à diferença e à capacidade do indivíduo em gerenciar de forma autônoma sua vida (auto-representação) foram condicionantes empregadas na pesquisa para medir a cidadania do brasiliense. A conclusão não foi animadora.

''Quanto mais religiosidade, mais moralista e intolerante é a pessoa'', compara o sociólogo Eurico Gonzalez, da Universidade de Brasília (UnB). ''As crenças religiosas atribuem grande poder sobre a vida das pessoas a alguns iluminados que, em tese, são capazes de resolver os problemas delas'', explica.

Um exemplo dessa tendência pode ser verificada no campo da política. ''Está se criando um enorme contingente de pessoas que precisam ouvir de alguém o que fazer, como agir. Isso tem pouca afinidade com a sociedade moderna, que quer resolver os problemas por meio de uma democracia pluralista'', diz o sociólogo Eurico Santos. Quanto mais uma pessoa freqüenta cultos religiosos, menos ela enxerga a política como processo de busca do bem social. Ela entende a política muito mais como um palco para disputas.

Por exemplo, 63,8% dos entrevistados que nunca freqüentam rituais religiosos, vêem a política como processo de bem social. Entre os que não faltam a nenhum durante a semana, 53,8% tendem a entender a política como um campo de luta entre interesses antagônicos.

Essa visão de mundo mais individualista é acentuada entre os entrevistados com menos escolaridade. ''O ensino de 1º grau dá as luzes necessárias para as pessoas saberem que suas vidas vão mal, mas elas vêem a política apenas como competição'', analisa o pesquisador Caetano de Araújo, professor de Sociologia Política da UnB.

A pesquisa traça o perfil de qual grupo religioso no Distrito Federal estaria mais consciente com relação à própria cidadania. Os espíritas (incluindo os kardecistas e as religiões de origem afro, como o candomblé) e os entrevistados que declararam não ter religião são os que têm visão mais ampla de política.

''Considerando a política de forma mais ampla, no sentido de que todo homem é político, posso dizer que os espíritas têm uma sensibilidade apurada para os problemas da comunidade. Não temos a visão determinista da vontade de Deus. Procuramos, com os meios que estão ao nosso alcance, minimizar os problemas da sociedade'', explica Carlos Lambach, presidente da Comunhão Espírita de Brasília.

O engenheiro Orlando Prado, 53 anos, também pensa assim. É nas palestras no templo da Seicho-No-Ie, na 403/4 Sul, que ele encontra a sabedoria para as dificuldades do dia-a-dia. ''Tudo o que acontece na nossa vida é conseqüência do que somos ou do que criamos. Se há problemas, eles precisam ser resolvidos agora. Deus apenas nos dá força para enfrentar as dificuldades'', afirma.

Outro cruzamento de dados, feito pelos pesquisadores, confirma essa tendência. Os espíritas e as pessoas sem religião são os que mais se envolvem em grupos para buscar soluções para problemas, como associações, sindicatos e movimentos políticos - 21,2% dos católicos e 29,2% dos evangélicos se envolvem nesse processo, contra 33,3% dos espíritas e 46,3% dos sem-religião.

O deputado distrital Jorge Cauhy (PMDB), que se auto-define como espírita (kardecista) convicto, faz questão de afirmar que religião e política não se misturam. ''Uma coisa é o meu trabalho como deputado, outra coisa é minha função como presidente de uma casa espírita'', separa. Em cada papel assumido, Cauhy diz ter uma função específica. ''Como espírita, tenho uma grande obra social que ajuda crianças e idosos.'' (RA e TR)

Pensamento: "Aparentemente os cristãos requerem uma constante afirmação de suas crenças, senão eles começam a reverter ao estado natural da descrença. Esse deve ser um mecanismo de defesa dos memes cristãos, evoluídos por 2000 anos de ignorar a realidade." Paul J. Koeck



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