Medo do fim do mundo aumenta com desinformação e crendices
Ismael Furtado e Plínio Bortolotti

Publicado no Jornal O Povo em 11/08/1999

Misturam-se profecias, crendices e fenômenos naturais. Do caldeirão de desinformações, surgem boatos e o medo de que o mundo acabe hoje.

A escuridão cobrirá parte da Terra. Mais de dois bilhões de pessoas poderão observar o fenômeno. A sombra da Lua será projetada na superfície terrestre e percorrerá 14 mil quilômetros em três horas. São informações como essa, sobre o eclipse que poderá ser observado hoje na Europa, Oriente Médio e Ásia, divulgadas muitas vezes propositalmente de forma confusa ou truncada pelos meios de comunicação, mais a previsão do vidente Nostradamus (que viveu no século XVI) de que o mundo terminaria hoje, e completa-se o quadro que está provocando pânico em muitas pessoas.

Eclipses, um fenômeno da natureza, provocam temor na humanidade desde tempos imemoriais. E as profecias de Nostradamus, cada um interpreta a seu gosto. Como todo bom profeta, ele escrevia abusando dos códigos e metáforas. Os ``sinais do fim dos tempos'' sempre surgem quando a humanidade está em crise ou passando por grandes transformações que, até hoje, não significaram o seu fim.

Para as crianças ou pessoas mais crédulas, é difícil pensar friamente sobre isso. As televisões, em busca do audiência fácil, açulam a imaginação, ilustrando as matérias sobre o suposto fim do mundo com imagens aterrorizantes do mar engolindo as cidades e o fogo consumindo a Terra. Difícil separar fantasia e realidade na voragem das imagens.

Na igreja de Nossa Senhora de Loreto, na Aerolândia, paróquia do padre José Cheregato, ele diz que aumentou o número de confissões e a quantidade de pessoas que levam velas para serem benzidas. ``Muita gente está preocupada. A maioria é de pessoas desinformadas. Eu benzo as velas, porque tenho que respeitar as pessoas, mas em meus sermões contesto a idéia do fim do mundo'', diz padre Cheregato.

O benzimento das velas faz parte da crença de que no final dos tempos a terra ficaria por três dias imersa na escuridão, e que somente se salvará quem acender uma vela benta. ``O mundo só acaba para quem perde o amor, a esperança'', apregoa o religioso.

Joana Simplício de Lima, zeladora na Assembléia Legislativa, levou um pacote de velas para benzimento. Meio constrangida em admitir que acredita no fim do mundo, ela confessa que fica ``com um pouco de medo'' e que seus três filhos também ficaram assustados depois que viram programas de TV sobre o assunto.

Uma fiel que pediu para não ser identificada disse que levou as velas para benzer a pedido da mãe, que ``está temerosa''. Ela diz também que sua mãe foi influenciada pela televisão: ``Infelizmente, a TV é um meio de transmitir medo''.

Espíritas esperam renovação

O mundo não vai acabar hoje nem ficar pior na virada do milênio. Ao contrário, iniciará a passagem de mundo de expiações e provas, no qual prevalece o mal, para se transformar num mundo de regeneração, sob o predomínio do bem. Esta é a visão da doutrina codificada por Alan Kardec, segundo o médico e palestrante espírita Francisco Cajazeiras.

``O mundo evolui junto com a humanidade e a doutrina espírita ensina que neste final de milênio nós teremos uma transformação deste mundo, mas não uma transformação abrupta. Ela já vem acontecendo paulatinamente'', diz Francisco Cajazeiras.

O médico espírita lembra, porém, que o homem dispõe do livre arbítrio e que pode, por exemplo, iniciar uma guerra nuclear. Dessa forma, o fim seria uma obra do homem e não de Deus. A crença kardecista de que Deus não destruiria o mundo é compartilhada pelo padre José Cheregato. ``Deus não destruiria a sua própria criação'', acredita.

Para Cajazeiras, muitas tragédias vêm acontecendo como parte das transformações, como grandes acidentes e mortes coletivas. ``Mas são coisas circunscritas, não são acontecimentos que envolvam todo o planeta. Não temos o porquê do ponto de vista espiritual ou científico criar uma situação de pânico. Os céus não vão desabar sobre a terra'', afirma.

Segundo o espírita, as pessoas têm dificuldade de compreender as profecias, como as de João Evangelista. ``O profeta ou o vidente, especialmente quando esse futuro está muito à frente, é natural que tenha dificuldade de `traduzir' essas visões e teria que explicar por símbolos, por analogias. Por isso, há tantas interpretações'', afirma.

"O dia do juízo final somente Deus conhece"

"Estamos ouvindo o trotar dos cavaleiros do apocalipse, mas o dia do juízo final somente Deus conhece. Ninguém pode dizer em que dia o mundo vai acabar, se hoje, amanhã ou depois" , afirma o pastor da igreja evangélica Betesda Marcos César, que há 12 anos se dedica ao estudo do apocalipse, ou à escatologia, como prefere se referir. De acordo com ele, a Bíblia registra mais de 2,5 mil referências ao final dos tempos e ao retorno de Jesus Cristo.

Segundo o pastor, a história está repleta de profecias sobre o fim do mundo que nunca se concretizaram. Para Marcos César, hoje é o dia de mais uma delas ``caírem por terra''. Ele cita como exemplos as profecias de Miranda Leal, da igreja ``Só o Senhor é Deus'', de Guilherme Miller, fundador do movimento do Adventismo, das Testemunhas de Jeová, dos Meninos de Deus e do Tabernáculo da Fé, entre outras igrejas.

``Não há respaldo bíblico para afirmar em que Cristo vem em tal data. Jesus disse aos seus discípulos: `Não vos pertence saber os tempos ou as estações que o Pai estabeleceu pelo seu próprio poder'', diz o pastor, que classifica como especulação para atemorizar as pessoas a previsão de que o mundo se acabaria hoje. Marcos César vê um comércio em torno do pânico criado pelas falsas profecias.

O pastor não crê que o mundo se acabe hoje, mas acredita que já estamos vivendo sobre as premissas do apocalipse, com a propagação da fome, guerras e doenças. " A Bíblia aponta o que a ciência está constatando", afirma. (IF)

Notícias na televisão assustam crianças

O menino Clailton da Silva Araújo, de 9 anos, mora em uma casa simples no bairro de Padre Andrade. Ele lembra que ``passou na televisão'' que o mundo iria acabar. ``Disseram que as águas iriam derrubar os prédios''. Desde então, o pai, José Maria Araújo, diz que ele anda apavorado. Fica com medo de dormir e chora constantemente.

O menino diz que está assim ``porque não gosta de tragédia''. A mãe, que trabalha como zeladora em um hospital, chegou a levá-lo ao médico. Não adiantou muito. ``Na escola tem muita gente falando que o mundo vai acabar'', observa Clailton.

Mas o comportamento de Clailton não é comum a todas as crianças da idade dele. Um de seus amigos, Paulo Roberto Pinheiro, de 9 anos, diz que também viu na TV ``que o mundo estava acabando'', mas garante que não acreditou. ``A televisão fala muita besteira'', diz ele.

Regiane Pereira da Silva, de 10 anos, diz que viu no SBT Repórter que ``o mundo vai acabar em trovão'' e que ``acreditou mais ou menos'', mas ficou ``assombrada'', e fica com medo na hora de dormir. ``Eu cochilo e acordo assustada'', diz. (PB)

Pensamento: "Eu era ortodoxo na época em que estive a bordo do Beagle. Lembro-me de provocar gargalhadas em vários oficiais por citar a Bíblia como uma autoridade incontestável (...). Nesse período, entretanto, percebi pouco a pouco que o Velho Testamento (...) não merecia mais confiança do que os livros sagrados dos hindus ou as crenças de qualquer bárbaro. (...) Eu não estava disposto a desistir de minha crença com facilidade, lembro-me das inúmeras vezes em que inventei devaneios com a descoberta de antigas cartas entre romanos ilustres e de antigos manuscritos em Pompéia, ou em algum outro lugar, que confirmassem de maneira admirável tudo o que estava escrito nos Evangelhos. Mas eu tinha uma dificu1dade cada vez maior, soltando as rédeas de minha imaginação, de inventar provas suficientes para me convencer Fui tomado lentamente pela descrença, que acabou sendo completa. A lentidão foi tamanha que não senti nenhuma aflição, e desde então nunca duvidei de que minha conclusão foi correta. Aliás, mal comigo entender como alguém possa desejar que o cristianismo seja verdadeiro." Do livro: Autobiografia 1809 - 1882. Charles Darwin



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