Publicado no Jornal Folha de São
Paulo em 11/09/95
Quando o pastor pede a contribuição,
está dando uma ordem para um indivíduo hipnotizado
Na década de 60 chegou ao apogeu o
evangelismo televisionado nos EUA. A mente treinada de um
cientista não pode entender o fascínio exercido
sobre as enormes multidões reunidas em diversos
logradouros públicos por um Billy Graham ou um Jimmy
Swaggart.
Gravei a voz, pois, à época,
vídeo não existia. A primeira constatação
é que esses oradores estavam na extremidade oposta àquela
de um Cícero, de um Marco Antônio ou de um Lutero,
quanto à arte da oratória. Nem havia qualquer
resquício de argumentação racional ou mesmo
elementos de retórica.
Frases desconexas, repetitivas,
assinalando refrãos pouco imaginativos. Histórias
simplórias permeavam o discurso. Não havia
qualquer elemento de persuasão, por mais primitivo. E, não
obstante, a multidão se deixa subjugar. Aplaude quando
induzida, grita quando comandada. Nota-se na fala, todavia, um
ritmo acentuado, palavras que se repetem, entonações,
pausas, "crescendos", modulações. O
discurso pouco ou nada importa. É o som que é
importante, e palavras-chaves, tais como salvação,
Deus, céu, redenção.
Em seguida, observo a imagem, sem som.
Movimentos repetitivos. Gestos estudados. Um deles usa sempre
uma bíblia aberta em uma das mãos. Não a lê.
É quase um malabarista. Se movimenta continuamente
equilibrando a bíblia enorme em uma das mãos. Cai
ou não cai a bíblia? Esse é o truque. A
multidão fixa sua atenção na bíblia.
Mesmeristas do século 18 e hipnotizadores de circo de
nossos dias conhecem bem o artifício. Um pêndulo,
um objeto reluzente em rotação, enfim, qualquer
coisa que sirva para fixar a atenção.
Em 1842, James Braid, o primeiro estudioso
da hipnose, reconheceu que esse fenômeno era um estado
mental alterado, uma forma anômala de sono, induzida pela
fixação da atenção do paciente em um
objeto ou ação específica.
Charcot procurou uma conexão entre
histeria e hipnose, mas logo ficou claro que este estado era
produzido por sugestão. Criou-se, então, o
conceito de "sugestionabilidade". A este conceito
Freud, então estudando com Charcot, aderiu prontamente. A
bíblia na mão do evangelista, como o pêndulo
na do hipnotizador, serve, ao fornecer um objeto de fixação
da atenção, para reduzir a censura e mergulhar a
multidão em um estado de alta "sugestionabilidade".
Este estado de consciência para-hipnótico
é agravado por um outro fenômeno que os "behavioristas"
americanos chamaram de "mob effect" (efeito de turba),
pelo qual coletividades suprimem progressivamente a censura e se
deixam tomar por verdadeiros paroxismos, seja por influência
de um líder carismático (quem já viu um
discurso de Hitler, ou mesmo de Collor?), seja por efeito de um
ritmo primitivo, um concerto de rock metaleiro, por exemplo.
O importante é perceber que nas
condições em que ocorrem as reuniões de
algumas seitas, por exemplo, os cidadãos estão sob
ação de vários condicionantes que reduzem
sua capacidade de julgamento. Não é necessário
que o paciente perca suas reações motoras para que
esteja clinicamente hipnotizado.
As canções monotônicas,
os movimentos oscilantes dos corpos, a entonação rítmica
dos pastores, a sua expressão corporal, tudo, enfim,
concorre para uma diminuição da censura, da
capacidade de julgamento dos partícipes. Quem estende a mão
para oferecer uma esmola nessas condições está
certamente em um estado alterado de percepção.
Quando o pastor lhe pede uma contribuição,
está em realidade dando uma ordem para um indivíduo
hipnotizado. É, portanto, extorsão que está
sendo perpetrada. É um crime. E a prova é
fornecida no próprio ato pelo transe induzido nos mais
sensíveis. Quem está estrebuchando publicamente não
está de posse de suas faculdades mentais completas.
Subtrair dinheiro de uma turba neste estado de histeria não
pode deixar de ser crime numa sociedade civilizada.
Exploradores desta fraqueza humana, uma
espécie de inclinação natural para a
histeria coletiva e susceptibilidade à sugestão,
abundam na história da humanidade. Desde os xamãs
até os mesmeristas, dos hipnotizadores de circo aos
exploradores do rock. Mas o segmento mais deplorável é
aquele composto por seitas religiosas que se apóiam neste
aspecto da fragilidade do homem.
Mas é bom reconhecer que até
a mais pura das religiões fez concessões. Não
foi por acaso que Calvino restringiu o uso de música nos
ofícios religiosos. Pois até a mais sublime música
oblitera a razão. De certa forma, toda religião,
toda seita usa de artifícios que reduzem a censura,
durante suas cerimônias.
Mas nem todos usam este dispositivo com a
finalidade explícita de extorquir dinheiro. Se um
paciente é hipnotizado durante uma sessão de
psicanálise, o que ainda ocorre eventualmente, ou mesmo
pelo seu dentista, e nesta condição é
induzido a doar suas riquezas ao médico ou dentista que o
hipnotizou, um crime é caracterizado. O que ocorre em uma
reunião de uma destas denominações em que a
audiência é levada ao paroxismo histérico é
exatamente o mesmo procedimento. A diferença é que
o processo de sugestão é coletivo.
Não é de se admirar que uma
seita originária do Brasil esteja nos EUA prometendo a
cura da Aids e de mil outras doenças em troca de alguns dólares.
O que nos deixa pasmos é que a exibição
dessa histeria estrebuchante e dessa exploração da
sugestionabilidade do homem simples brasileiro seja permitida em
concessão pública de canal de TV com a finalidade
explícita de extorsão.
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE,
61, físico, é professor emérito da Unicamp
(Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho
Editorial da Folha.