Publicado na Folha de S.Paulo 12/06/01
Índios nunca foram alvo da minha
atenção. Conheci cedo gente interessada em
defender os interesses deles. Nos tempos da faculdade, ha 20
anos, conhecidos meus, todos ricos, já fundavam associações
em defesa dos indígenas, ONGs em São Paulo com o
intuito de apoia-los na Amazônia, em Mato-Grosso, Brasil
afora. Dai eu ter desenvolvido essa percepção
equivocada de que os índios já tinham quem se
interessasse por eles - a gente rica e os órgãos
oficiais como a FUNAI (Fundação Nacional do Índio).
Nem eu me sentia ligada a uma Amazônia distante, perigosa,
alagada e quente, onde eu nunca tinha pisado. Minhas terras eram
outras - as da seca nordestina, dos retirantes, da fome. Por
isso a minha surpresa com os indígenas que acompanharam
nossa pequena comitiva de brancos na semana passada, numa região
de fronteira do Brasil com o Peru.
Eram quatro mulheres indígenas e
umas dez crianças de idades variadas. Mal descemos do avião
- que só aterrissa naquelas bandas uma vez por mês-
puseram-se a caminhar conosco ate a sede da comunidade de
brancos naquele recanto da Amazônia.
Uma das mulheres perguntou algo, numa língua
que não compreendi. Alguém me explicou que ela
perguntara por um cachorro que lhe fora prometido. soube que
eram índios matses, ou mayorunas, que ainda falavam em
sua língua original e conheciam muito mal o português.
Adoravam cachorros, porque eles ajudam os homens da tribo no
trabalho na selva, e faziam qualquer coisa para conseguir um
filhote. As quatro indígenas e suas crianças
estavam vestidas, mas era como se não estivessem, tamanha
a distancia que parecia separa-los de nos, os de raça
branca. Por causa da divergência de línguas, do
sorriso doce na cara delas, da delicadeza meio subserviente com
que perguntaram pelo cachorro e do interesse genuíno que
demonstravam por nos, novos forasteiros, eu fui me dando conta
pela primeira vez, com atraso de séculos, da
imbecilidadeda colonização branca.
Pouco depois, em visita a comunidade dos
matses, a 20 minutos de barco, essa convicção se
confirmou. soube que ali se fixara ha quatro anos um grupo de 30
famílias dessa etnia, cuja aldeia ficava a seis horas de
barco rio acima. Teriam saído brigadas da tribo, "por
roubo de mulher, roubo de objetos" ou coisa que o valha.
A informação foi passada a
mim por um pastor batista que se instalara na comunidade e
falava a língua matse. perguntei qual o objetivo de sua
permanência ali. Ele me disse que pertencia a uma missão
evangélica chamada Novas Tribos do Brasil, cujo objetivo
principal seria "esclarecer aos índios que existe um
Deus criador e que eles podem ter essa escolha",
providenciar a alfabetização dos mesmos em português
e na língua materna deles, alem de oferecer apoio nas
questões de saúde.
Perguntei como eram os deuses dos matses. "Deuses?",
ele indagou. "Por acaso eles não tem deuses?",
insisti. "Não estou ainda muito inteirado sobre a
espiritualidade deles", o pastor respondeu. E completou: "O
que eu sei eh que são um povo muito assustado por espíritos
de todo tipo."
Pela primeira vez a minha ignorância
me pareceu muito maior que a vastidão daquela Amazônia
- vista de cima, a Amazônia eh uma selva só selva,
um rio só rio. O poder que o pastor tinha sobre aqueles índios
era assustador. nunca me senti tão analfabeta por não
falar uma língua, nunca tão irresponsável
por desconhecer uma cultura.
Sufoquei minha necessidade de trocar idéias
com aquelas mulheres dóceis sobre deuses, o
deus-cachorro, o deus-aviao, o deus-sabonete, qualquer coisa que
elas venerem em universos distantes da prepotente catequese da
colonização branca - desses 500 anos de espantosa
e persistente prepotência.