Publicado no Jornal Folha de São
Paulo em 13/04/98
"Ligue djá, não espere,
ligue djá", repete na TV o adamato Ualter Mercado,
alardeando (com seu nome-mercância) que é o
megachefe dos "melhores videntes do mundo".
"Ligue djá!"
Em todo canal de TV deparamos com um
profeta de plantão. A função precípua
do vidente consiste em prever o futuro.
O sociólogo Max Weber errou em seu
célebre diagnóstico: a racionalidade científica
não engendra o desencantamento do mundo, nem tampouco a
privatização bourgeoise da religião provoca
o ocaso dos profetas.
"Ligue djá!"
Nosso inesquecível Luís da Câmara
Cascudo é quem estava certo: astronauta pisa na Lua com
pata de coelho no bolso. Talismã da sorte.
Bobagem dos apressadinhos da sociologia
estabelecerem de modo mecânico a antinomia do folclore com
o universo urbano.
A indústria não elimina a
superstição, que é a essência da
cultura popular. Olho gordo, passar debaixo da escada, número
13, etc. E, como dizia o escritor Gilberto Amado, só o
jumento não tem superstição.
You and your's superstitions.
O vidente Ualter Mercado o vídeo-sincretismo
plástico (lembra personagens histéricos nos filmes
de Fellini), através da necessidade eletrônica de
prever o dia de amanhã.
Por outro lado, brinco na orelha,
pulseirinha do Senhor do Bonfim, amuletos de popstars, cada
telespectador é tido por um devoto em potencial, ou seja
cada telespectador com a sua macumba _macumba que já foi
candomblé e agora é umbanda. De resto, existem
muitos traços umbandistas no cenário gestual da
Igreja Universal do Reino de Deus.
O empresário brasileiro que terá
maior fama nos anos 2000, Edir Macedo é tão
internacional e cosmopolita quanto os Rolling Stones, porém
ele não deixa de bicar na cor local da umbanda: o exu, o
transe, a possessão, os irmãos do espaço.
Foi Martinho Lutero o autor do famoso
racha midiático: ou se é evangélico, ou católico.
Deus e o diabo. Dizem até que o capiroto um dia, em
Eislenben, 1546, mostrou a bunda ao venerando Lutero, a fim de
exasperar o reformador protestante.
Antes de ser mensagem, a religião é
medium. Jesus Cristo, o primeiro mass media da história.
Resulta daí a seguinte conclusão: o pastor Edir
Macedo se deu bem com a conexão efetiva entre dinheiro e
transe místico.
Eis o segredo: Cristo-moeda.
A mídia, a moeda, a mediação.
O complexo sócio-místico da sociedade brasileira:
a religião no povo. A unidade religiosa contemporânea
dos ex-descendentes de escravos. Antes de existir Karl Marx,
filho prodígio de pregador alemão, o padre mulato
Antônio Vieira alegorizava a pecúnia católica
na Colônia do século 17: servir-se do dinheiro para
servir a Deus ou servir-se de Deus para servir ao dinheiro?
O crédito do Além, o
dinheiro do espírito, posto que a palavra crédito
vem do latim credere, que dá no acreditar. Believe it or
not.
Traduzindo para o léxico da TV autóctone:
"acredite. se quiser". Ou senão esta pérola
da anacolutia: "Fala que eu te escuto".
A grana, o pobre crente a pegará
depois no outro mundo, justificando assim o dízimo pago
com júbilo à empresa privada.
Aleluya!
Roger Bastide, o babalorixá das ciências
sociais da USP, compreendeu como nenhum outro a infra-estrutura
econômica da fé e do milagre na sociedade
brasileira depois de 1945: o dólar made in transe.
O espírito do capitalismo das
igrejas pentecostais é o fac-símile da ética
do protestantismo anglo-saxônico videofinanceiro.
A peleja fáustica do pastor Edir
Macedo é travada simultaneamente contra a Igreja Católica
e a rede Globo.
Midiologicamente falando, é inegável
que ele goza de enorme vantagem em dispor de um canal de TV para
reforçar suas seitas na sociedade civil.
É o mesmo esquema do antigo
cristianismo primitivo. A organização em seitas
foi a primeira forma histórica de organização
de massas.
Assim, do ponto de vista institucional, o
medium do pastor detém o controle dos sovietes religiosos
espalhados em grupos civis por todo o Brasil, interferindo na
arquitetura das cidades e nos negócios imobiliários.
Destarte, não há incômodo
maior do que, de repente, tornar-se vizinho de uma banda funk
pentecostal, em cujas ruidosas assembléias Deus é
surdo, a julgar pela oblação aos berros dos beatos
acompanhados de guitarra elétrica e bateria.
Em Edir Macedo não há paidéia
(educação, Ciepschool), mas sim comunicação
ágrafa-popgospel. Não é senão por
isso que aí faz muito sucesso a sonoridade de direita do
rei Roberto Carlos.
O espanhol Cervantes dizia que a morte é
surda. No capitalismo popular hodierno a TV faz o governo.
Moral da história: a batalha pela
audiência (telenovela versus Ratinho) poderá
determinar o resultado eleitoral de 1998. Enfim, estamos sem
mato e com cachorro!