Publicado no Jornal Folha de São
Paulo em 22/10/95
ENTREVISTA - SOCIÓLOGO
Novas igrejas trocam a ética pela mágica
Folha - Intelectuais tendem a achar, por
sua formação, que essas pessoas estão sendo
ludibriadas. Mas não estará a igreja melhorando a
vida delas?
Pierucci - Santo Agostinho tem uma idéia
muito interessante. Eu sou tão pecador, mas tão
pecador, que, se Deus me salva, é porque ele me ama.
Folha - É o velho clichê do
papel opiáceo da religião, de alívio.
Pierucci - Ela cria condições
de autoconfiança que mudam a pessoa, que reencontra uma
dignidade. Talvez suas pulsões serão mais
reprimidas. Religião é ópio e é
repressão. Reprimem-se forças, desejos perigosos. É
um controle que se passa a ter sobre si mesmo. Por que eles
criticam tanto o alcoolismo? Porque ele tira da consciência,
do autocontrole.
Folha - A Igreja Católica morre de
medo da expansão dos pentecostais, e a impressão
que se tem é que o céu é o limite.
Pierucci - Morre mesmo. Mas não é
bem assim. O preço para se ter um crescimento total é
se estruturar de forma que vai haver uma clientela passiva. Não
se pode transformar todas as donas de casa em militantes
protestantes.
Muito do discurso mobilizador advém
do fato de se considerarem minoritários. É aquela
famosa idéia sociológica das minorias ativas:
enquanto você é minoria, você tem gás.
Quando se vira maioria, essa energia desaparece, você se
acomoda, como os católicos de tradição, que
não são militantes.
Para crescer, é preciso também
se submeter a uma pluralização política
interna. Há os católicos de direita, de esquerda,
de extrema-direita, de extrema-esquerda. É impossível
imaginar que os neopentecostais, que são
super-conservadores, cresçam a ponto de abarcar toda a
população.
Por outro lado, como o historiador Paul
Veyne mostrou em um artigo na Folha, não se sabe porque o
Império Romano virou cristão. De repente, por uma
síndrome aleatória de difusão, pode
acontecer que eles se expandam.
Folha - Mas eles não são um
espectro interno variado, formado de gente que chuta e de gente
que não chuta santa?
Pierucci - Se uma pluralização
acontecer, é porque houve uma mudança grande.
Pastores protestantes de esquerda são muito minoritários.
Benedita da Silva é da Assembléia
de Deus e é um bom exemplo. Ela é toda uma exceção
_negra e senadora, evangélica pentecostal e de esquerda. É
o emblema do que é uma minoria.
Folha - O episódio do chute pode
prejudicar a Universal?
Pierucci - Essa Igreja Universal é
tão moderna, que tudo que for para o sucesso dela vai ser
valorizado. Aquilo que a colocar em um caminho ruim, vai ser
descartado.
A cúpula acha que isso pode criar
uma imagem ruim, de que não são eles os
perseguidos, e sim os que perseguem. Pode ser bem ruim. E também
cria-se o terreno para lembrar ao católico que ele é
católico. Isso eles não previram. Católicos
adormecidos acordaram. Isso pode ser um fator de conflito.
Folha - Por isso eles já decidiram
exilar o bispo responsável.
Pierucci - Eles são muito ágeis,
não há dúvida. É uma agilidade
empresarial. Uma das bandeiras do neopentecostalismo, de Edir
Macedo inclusive, é a de que não existe liberdade
religiosa no Brasil. Temos que conquistar a liberdade religiosa.
Esse episódio de agressão a uma imagem de Nossa
Senhora Aparecida dentro do templo é reivindicado como um
direito de liberdade religiosa.
Se você acha Nossa Senhora o demônio,
porque não poderia agredi-la? Em um país com
liberdade religiosa, você deveria poder. Se você é
muçulmano e quer matar um bode na sua banheira, ou se eu
quero expulsar o demônio da minha casa e quebro a imagem
da Nossa Senhora Aparecida _isso é um direito meu.
Folha - Mas a imagem foi chutada em um
programa de televisão. Nesse caso, atinge todos os
outros.
Pierucci - Por isso essa confusão
toda. Os outros não obrigados a gostar.
Folha - Por que o nome neopentecostalismo?
Pierucci - Ainda não está
sacramentado como neo. Eles são muito diferentes,
deixaram de transformar os pentecostais em pessoas estranhas.
Passando na rua antigamente, você
podia dizer: "Aquela mulher é crente, aquele cara é
crente", porque se vestiam como crentes. Hoje vai-se numa
igreja neopentecostal e as mulheres estão de minissaia,
usam batom, decote.
Deixaram de achar que o corpo é uma
coisa que se tem que reprimir e esconder. Estão bem mais
adaptados a uma sociedade de consumo que os antigos
pentecostais.
Mas isso não é o mais
importante. Isso significa que eles se dessectarizam, que eles não
querem mais se sentir separados da sociedade. Querem se sentir
integrados. Por isso a ênfase na questão da
liberdade religiosa no Brasil, e que eles podem conseguir agora.
Sem querer, eles incitam os católicos
a os perseguirem novamente, e fica aquela "self-fulfiling
prophecy" (profecia que se auto-realiza): "eu não
disse que não havia liberdade?".
E neo, também, porque eles têm
uma vontade muito positiva de sucesso nesta vida. As promessas
da religião não estão jogadas para o outro
mundo, estão voltadas para o tempo presente: "Você
vai arranjar o emprego. Você quer uma Brasília
amarela, você vai conseguir uma Brasília amarela.
Basta que você confie totalmente em Deus. Você que
tinha medo, amanhã você não tem mais medo. Não
é preciso esperar o céu, é agora".
Isso é muito contemporâneo.
Folha - No que isso difere da ética
protestante clássica, segundo Max Weber?
Pierucci - Weber diz que o calvinismo não
dizia: "Procure o dinheiro, vá atrás do
dinheiro", e sim dizia: "Discipline-se, trabalhe".
Era uma ética dos primórdios
do capitalismo, do capitalismo empreendedor, do pequeno empresário
que tem que levantar cedo e dormir tarde. Se ele ficasse rico,
isso seria um efeito não esperado. Não há
nenhum texto de Calvino dizendo que o dinheiro é uma
coisa boa. Ele vem como consequência da sua disciplina, do
seu auto-controle.
Folha - Quando o sujeito pede o dízimo
na Igreja Universal, ele diz que é o demônio que
impede que a mão do fiel entregue o dinheiro.
Pierucci - Ou seja, o antigo
protestantismo analisado por Weber era ético mesmo.
Tinha-se que mudar a conduta. Esse agora é mágico,
ou seja, você dá todo o dinheiro que tem para Deus,
o dinheiro da feira, do ônibus, porque amanhã o teu
bolso estará cheio de dinheiro novamente.
Há uma vontade de manipular as forças
divinas. Se você der dinheiro para Deus, Deus fica
comprometido a te ajudar. É um desafio a Deus. Isso não
é weberiano. Você se disciplina, mas não
desafia Deus.
Folha - O ritual mudou? Algo muito
associado aos neopentencostais são os cultos com gritos,
como um exorcismo coletivo.
Pierucci - O pentecostalismo sempre foi um
ramo do protestantismo muito emotivo, a experiência do Espírito
Santo é um pouco a de sair de si, entrar em transe, em êxtase.
É aquela coisa dos negros americanos, da música
gospel. São técnicas. Com todos eles gritando ao
mesmo tempo na igreja, cria-se uma condição
racional para se passar a um estado irracional. Daí a
grande força de penetração: ela não
oferece apenas uma cerimônia que se assiste, ela oferece
uma experiência pessoal, física.
Folha - Não é surpreendente
que na África do Sul um pastor da Universal reuniu metade
das pessoas que o papa reuniu?
Pierucci - Nesse sentido há uma
mudança de dimensão do culto. Antes eram em
pequenos templos. Agora são cinemas, grandes salões
e estádios. E isso tem um efeito mediático de
demonstração imediato: "Nós somos
muitos". A partir desse momento, há o passo para a
politização: "vamos eleger deputados".
Antigamente os pentecostais tinham até um mandamento: "Não
participarás".
Frequentar igrejas de
diferentes religiões é comum entre favelados
Publicado no Jornal Folha de São
Paulo em 22/10/95
Autor: ELVIRA LOBATO Da Reportagem Local
Aos 23 anos, Marileide Carlos Santos é
mãe de cinco filhos e mora em um barraco de dois cômodos
na favela Santa Inês, na zona leste de São Paulo.
Seu lazer é frequentar igrejas. No
momento, ela é membro da Igreja Cristã do Brasil,
mas já participou de várias outras.
A baiana Josefa de Jesus, 65, diz que é
católica, mas também frequenta a Igreja Universal
do Reino de Deus.
"Eu amo a Igreja Universal, me sinto
muito bem lá e me emociono com as coisas que os pastores
falam", afirma.
Josefa é viúva, cria dois
netos e sobrevive com o dinheiro dado pelo filho.
Ela diz que também frequenta a
Igreja Católica e que ficou chateada com as agressões
à imagem de Nossa Senhora Aparecida.
Mesmo assim, continuará indo aos
cultos da Igreja Universal: "Não posso mandar no meu
coração", conclui.
Na favela Guacuri (zona sul), há
pelo menos uma igreja e um centro de umbanda por quarteirão.
Na rua Alexandre Quipins, que tem três
quarteirões, por exemplo, há duas igrejas da
Assembléia de Deus, outra da Igreja Universal dos Dons de
Deus e o centro de umbanda de Zilei.
O pernambucano Antonio Santos diz que
todos os domingos vai à missa na Igreja São
Francisco de Assis, na favela.
No final do dia, vai ao centro de umbanda
ou assiste à pregação do pastor da Assembléia
de Deus e encerra seu final de semana bebendo cachaça no
bar com os amigos.
"Esses tipos, que frequentam várias
igrejas, são chamados por nós de livres
pensadores. Eles vão aos cultos por falta do que fazer ou
para espionar os evangélicos e falar mal dos crentes",
afirma o também pernambucano Edmilson Alves de Souza, que
há cinco anos se prepara para se tornar pastor da Assembléia
de Deus.
Edmilson, 29, é porteiro e só
estudou até a 6ª série primária. Já
leu e releu tantas vezes a Bíblia que sabe quase todo o
texto de cor.
Para ele, os pastores da Igreja Universal
do Reino de Deus são os "falsos profetas"
previstos por Matheus, que provocarão a discórdia
e farão com que "nações se voltem
contra nações e reinos contra reinos".