A nova elite da fé
Juliana Mariz e Sandra Boccia, de São Paulo

Publicado no Jornal Valor Economico, 22 a 24 de setembro de 2000

Empresários e profissionais liberais estão na mira das igrejas.

Culto da igreja Renascer dedicada aos empresários: os velhos temas do sermão dominical são coadjuvantes numa cerimônia em que o protagonista é o trabalho.

Procuram-se empresários e profissionais liberais, bem-sucedidos ou não, dispostos a doar boa parte dos seus rendimentos a Deus. Em troca, Ele promete devolver tudo e mais um pouco, a curto prazo, com as melhores taxas de mercado.

Um anúncio desse formato caberia à perfeição na porta de dezenas de igrejas brasileiras, que estão investindo pesado na conquista de homens de terno e gravata. Com esse intuito, são criadas associações, feiras, bolsas de negócios e parcerias com entidades de apoio ao comércio e à indústria, departamentos exclusivos e reuniões privadas. Nunca se viu ataque tão maciço à classe executiva.

Padres e pastores não admitem usar quaisquer táticas de marketing, mas é inegável que um fiel influente, seja ele um médio gerente ou político, concede prestígio à igreja em questão e multiplica a doutrina entre seus pares. Além disso, todos são conhecedores de uma regra de ouro no meio religioso: "Quanto maior o cargo, maior a influência e a doação", diz o sociólogo Ricardo Mariano, que pesquisa o pentecostalismo há dez anos.

Vide o exemplo da Associação Renascer de Empresários e Profissionais Evangélicos (Arepe), que contava com 40 adeptos há quatro anos e hoje soma mais de 440 associados. Ou o católico Santuário do Terço Bizantino, capitaneado pelo Padre Marcelo Rossi. Ambos estão investindo na capacitação de líderes e já firmaram parcerias com o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). As ações são revestidas de caráter social, mas o intuito de atrair fiéis com potencial empreendedor é patente.

Em pouco mais de dois meses, foram 5.538 capacitações de fiéis no Programa Brasil Empreendedor (PBE), que mantém um trailer fixo no galpão de Interlagos, zona sul de São Paulo. É um rebanho e tanto. Quase empata com a turma evangélica. Quatro mil fiéis da Assembléia de Deus, Presbiteriana de Presidente Prudente, União das Igrejas Evangélicas, Igreja Apostólica da Nova Aliança em Cristo, além da Renascer, já se familiarizaram com técnicas de capacitação gerencial e mercado, comportamento empreendedor, custos fixos e variáveis, margem de contribuição, ponto de equilíbrio, controle de estoque, fluxo de caixa, crédito e outros tópicos.

O Bradesco já descobriu o novo filão de endinheirados influentes com muita fé. Na divisão de cartões de afinidade da empresa, as igrejas evangélicas ocupam lugar de destaque. As logomarcas da Fundação Renascer, Assembléia de Deus, Associação Evangélica Beneficente e Comunidade Igreja Armênia do Brasil estão gravadas no cartão de crédito Bradesco Visa. O número total de clientes é mantido em sigilo, mas cerca de dez mil correntistas do banco exibem cartões com o emblema da Fundação Renascer.

É um negócio vantajoso para ambos. Uma cota aproximada de 30% da anuidade paga pelo correntista vai parar nos cofres da igreja. O valor pode ser maior ou menor, a depender do acordo firmado com a instituição. Para o banco, trata-se de uma ótima oportunidade para construir um mailing direcionado, com oferta de produtos religiosos. "O mercado de cartões de afinidade ligado às igrejas está em expansão", entusiasma-se Sidnei Nascimento, diretor da Bradesco Cartões. Ele conta que o banco está montando uma força-tarefa para atrair mais correntistas-cristãos. "Queremos que uma pessoa da própria igreja se encarregue de promover o cartão."

Para seduzir cristãos com dinheiro no bolso, as igrejas tentam apagar a imagem estereotipada do crente. Nada de cabelos compridos para as mulheres ou a bíblia debaixo do braço de homens. Elegante e bem-humorado, o empresário Ricardo Abbud, diretor-executivo da construtora Inpar, pode ser visto como um representante do novo perfil dos fiéis da elite. Ele vai buscar no exemplo de Cristo a explicação para sua conduta. "Jesus se trajava com os melhores tecidos. Ele queria que nós fôssemos a luz do mundo e o sal da terra. Como podemos seguir o exemplo de um miserável?", indaga Abbud, da Arepe.

Quem comparece à reunião semanal da Arepe na Aclimação, em São Paulo, toda segunda-feira, tem a oportunidade de confirmar na prática o sucesso das iniciativas nascidas, segundo sociólogos, na Teologia da Prosperidade (TP).

Às 20horas, de uma segunda-feira gelada todos os lugares estão ocupados. Homens e mulheres bem vestidos são presença marcante no templo de mil confortáveis poltronas vermelhas. Todas ocupadas. O discurso do apóstolo e empresário Estevam Hernandes, fundador da Renascer e dono de um próspero conglomerado de empresas de comunicação, entre elas a Rede Gospel, vem embalado por uma banda musical e letras de cânticos amplificadas por dois telões. Ex- gerente de Marketing da Itautec e Xerox do Brasil, ele fala com conhecimento de causa.

Conta aos fiéis que foi preterido numa promoção. Mas as orações constantes teriam sido decisivas para mudar o rumo da sua vida profissional: "Em dois anos, fui promovido quatro vezes. O Senhor me devolveu tudo o que me roubaram." A Igreja dos novos tempos é assim. Saúde? Amor? Amizade? Nada disso. Os velhos temas do sermão dominical (não à toa, a reunião empresarial acontece às segundas-feiras) são apenas coadjuvantes numa cerimônia em que o protagonista é o trabalho. A pessoa física dá lugar à pessoa jurídica. "A Arepe quer ser um refrigério ao estresse pelo qual passam os executivos", explica Hernandes.

Durante todo o culto, a chamada "linguagem profissional" de Estevam vem marcada pelos signos do capital: finanças, negócios, fluxo de dinheiro, concorrência e mais de uma dúzia de palavras afins são utilizadas sem economia. Para alcançar as graças divinas, contudo, não basta participar. Tem de colaborar. Os fiéis pagam uma taxa mensal fixa de R$ 15 e ofertas de valores variáveis, que ficam por conta da "fé de cada um". O envelope branco do dízimo é recolhido com pompa e circunstância, em grandes cestos de vime, que circulam pelos corredores.

O trabalho de catequização dos engravatados não se resume ao encontro semanal. Uma tenda estrategicamente situada à porta da igreja anuncia a parceria com o Sebrae e o grupo Catho, para recrutamento de profissionais crentes, além de distribuir uma revista de classificados. Os anunciantes devem ser, necessariamente, associados da Arepe. E não é só. Aos empresários é oferecido um variado cardápio para degustar a fé cristã. Um dos pratos principais é o reforço espiritual, dado por uma turma de fiéis, que passa 24 horas orando em nome da empresa, muitas vezes às vésperas do fechamento de um negócio importante.

A Arepe não está sozinha neste, digamos, negócio. A discreta Igreja Internacional da Graça de Deus e a famosa Igreja Universal do Reino de Deus, do "bispo" Edir Macedo, mantêm departamentos específicos para os executivos. As reuniões da Universal, realizadas há cerca de seis meses, também acontecem às segundas-feiras, mas a divulgação ocorre sem alarde. Por duas semanas, o Valor tentou uma entrevista com os responsáveis, mas não obteve resposta. O esquema mantido pela Universal, contudo, pouco difere das demais denominações.

Na verdade, cada igreja ou associação desenvolve suas próprias estratégias para atrair clientela. Muitas vezes, pela boca. É o caso da Associação dos Homens de Negócio do Evangelho Pleno (Adhonep), que reúne empresários e profissionais liberais. A idéia é que o homem de negócios morda a isca do evangelho num jantar, café da manhã, ou então num coquetel regado a água e biscoitinhos sortidos. Os integrantes de um dos "capítulos" - nome dado a cada uma das 700 filiais espalhadas pelo Brasil - são recebidos com iguarias, toda segunda-feira, em um luxuoso hotel na região da avenida Paulista, onde a maioria deles trabalha.

O encontro é semanal, mas quem os vê pela primeira vez tem a impressão de que se trata de um reencontro de colegiais. Abraços efusivos, tapinhas nas costas, sorrisos abertos como quase nunca se vê no sisudo mundo dos negócios. Os convivas se reúnem no auditório para ouvir a preleção do presidente da casa, Francisco Lorusso. Eles rezam, escrevem pedidos, mas o momento mais importante é o de prestar atenção ao depoimento de um dos executivos, no melhor estilo "vim, vi e venci".

Em outra segunda-feira de setembro, desta vez abafada, o testemunho foi proferido por um empresário de peso. Aguinaldo Cajaíba, proprietário de uma metalúrgica e um dos diretores da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Protagonista de uma história de vida que caberia bem num daqueles folhetins com final feliz, Cajaíba revela-se um orador habilidoso. Prende a atenção dos ouvintes, lê trechos da Bíblia, cita Deus dezenas de vezes, e encerra com uma oração fervorosa. "Só me tornei empresário por milagre. Quando encontrei esse Deus tremendo e maravilhoso", conta ele, emocionado. De passado pobre, hoje ele se orgulha de ter dinheiro e convencer homens céticos a levantar a mão aos céus.

Chamar a Adhonep de igreja, segundo os dirigentes, é heresia. Eles rejeitam veementemente a comparação alegando ter entre os sócios representantes de diversas religiões. "Só cremos na Bíblia. Queremos transmitir a experiência de uma mudança de vida e levar uma mensagem de esperança", justifica-se Lorusso, que faz questão de citar algumas estrelas do "time", a exemplo do deputado Magno Malta (PTB-ES), o candidato ao governo de São Paulo em 1998, Francisco Rossi, e o governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho (PTB-RJ).

A convite de um conhecido, o empresário Dácio do Amorim esteve pela primeira vez na reunião do hotel e, depois de participar das orações, concentrado, julgou o saldo positivo. "Acho que deu uma força para começar a semana. É uma movimentação generalizada, todos estão procurando algo diferente", diz o executivo, cuja empresa de metalurgia passa por problemas financeiros. Se Amorim vai ou não resolver as suas pendências, não se sabe. É certo, no entanto, que ele atendeu ao chamado da propaganda divina mas, como bom consumidor, está à espera de dividendos terrenos.

Doutrina adota a máxima "é dando que se recebe"

Usar o nome de Jesus com a mesma liberdade que se utiliza o talão de cheques. Essa é a asserção básica para compreender a Teologia da Prosperidade (TP), doutrina que legitima - livrando de qualquer culpa - o interesse mundano por bens materiais. Os adeptos da TP não pedem, exigem. Não rogam, decretam. Não suplicam, reivindicam. Demandam a felicidade aqui e agora, e deixam de lado a vida eterna.

O sociólogo Ricardo Mariano, que pesquisa o pentecostalismo há dez anos, conta que a TP teve suas primeiras sementes espalhadas nos Estados Unidos na década de 40. No Brasil, os ventos dessa teologia sopraram nos anos 70, seguindo o rastro do televangelismo de Ken Hagin Jr., Fred Price e Kenneth Copeland, e encontraram terreno fértil em diversas igrejas, entre elas, Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça de Deus, Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra, Renascer em Cristo, Nova Vida, Cristo Salva e Associação dos Homens de Negócio do Evangelho Pleno (Adhonep).

Em troca de dízimos e de generosas ofertas (que não raro ultrapassam 10% dos rendimentos), os pregadores da TP prometem o paraíso na Terra. "Várias igrejas pentecostais tornaram-se verdadeiras intermediárias dessa transação, dessa barganha cósmica entre o homem e Deus", explica Mariano, autor do livro "Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil". Essa mediação entre Deus e o homem teria um efeito bastante prático: aumentar a arrecadação e, por conseqüência, azeitar o crescimento empresarial das igrejas.

A lógica, explica o pesquisador, não poderia ser mais simples. A TP promete prosperidade aos fiéis mais pobres, expurga a culpa dos mais ricos em relação à própria riqueza e, de quebra, financia os ambiciosos projetos evangelizadores e os negócios de seus líderes. Parábolas bíblicas que enfatizam os esforços dos fiéis menos abonados em busca do reino dos céus foram postas de lado. O céu não está mais reservado apenas aos pobres e oprimidos. Pelo contrário.

Como para a TP os cristãos detentores de grande fé tendem a ser prósperos, felizes e saudáveis, é sobretudo a eles que estão reservados os lugares celestiais ao lado do trono divino. Até porque, para os pregadores dessa teologia, Jesus veio a Terra pregar aos pobres justamente para que eles deixassem de ser pobres. Os mais crédulos exigem do Senhor bens materiais - sem pudores. Ou seja, tudo acontece segundo os fundamentos de uma espécie de código do consumidor espiritual. Quem está insatisfeito, reclama aos céus as benesses a que têm direito.

A busca pela bênção passa pelo velho adágio de que "é dando que se recebe". Fiéis são incentivados a abrir a carteira e a contribuir mensalmente com dízimos e ofertas para obter a graça almejada. É por meio da contribuição financeira, apregoam os teólogos, que o "contrato" com Deus é renovado e, dessa forma, os fiéis se tornam merecedores da "vida abundante".

"Ao se propor como uma espécie de redenção terrena dos pobres, a TP, no entanto, pode esbarrar num clássico caso de propaganda enganosa. Do contrário, teria exterminado a pobreza", pontifica Mariano. Para seus partidários, no entanto, a explicação é simples: falta de fé. Aqueles que ainda não conseguiram conquistar a prosperidade, quer dizer, a casa própria e o carro do ano, precisam aumentar a dose de orações e, portanto, de ofertas monetárias à igreja. Ou então, assumir que em algum momento da reivindicação nutriram dúvidas em relação às crenças e, como "a dúvida é do diabo", impossibilitaram o recebimento da dádiva. A fé, assim, virou sinônimo de dinheiro.

Pensamento: "Onde quer que a religião esteja envolvida, os terroristas matam mais pessoas." Dr. Bruce Hoffman, diretor do Centro para Estudo do Terrorismo e Violência Política na Universidade St. Andrews, Escócia



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