Empresários e profissionais
liberais estão na mira das igrejas.
Culto da igreja Renascer dedicada aos
empresários: os velhos temas do sermão
dominical são coadjuvantes numa cerimônia em
que o protagonista é o trabalho.
Procuram-se empresários e
profissionais liberais, bem-sucedidos ou não,
dispostos a doar boa parte dos seus rendimentos a Deus. Em
troca, Ele promete devolver tudo e mais um pouco, a curto
prazo, com as melhores taxas de mercado.
Um anúncio desse formato
caberia à perfeição na porta de dezenas
de igrejas brasileiras, que estão investindo pesado
na conquista de homens de terno e gravata. Com esse intuito,
são criadas associações, feiras, bolsas
de negócios e parcerias com entidades de apoio ao comércio
e à indústria, departamentos exclusivos e
reuniões privadas. Nunca se viu ataque tão
maciço à classe executiva.
Padres e pastores não admitem
usar quaisquer táticas de marketing, mas é
inegável que um fiel influente, seja ele um médio
gerente ou político, concede prestígio à
igreja em questão e multiplica a doutrina entre seus
pares. Além disso, todos são conhecedores de
uma regra de ouro no meio religioso: "Quanto maior o
cargo, maior a influência e a doação",
diz o sociólogo Ricardo Mariano, que pesquisa o
pentecostalismo há dez anos.
Vide o exemplo da Associação
Renascer de Empresários e Profissionais Evangélicos
(Arepe), que contava com 40 adeptos há quatro anos e
hoje soma mais de 440 associados. Ou o católico Santuário
do Terço Bizantino, capitaneado pelo Padre Marcelo
Rossi. Ambos estão investindo na capacitação
de líderes e já firmaram parcerias com o Serviço
de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). As ações
são revestidas de caráter social, mas o
intuito de atrair fiéis com potencial empreendedor é
patente.
Em pouco mais de dois meses, foram
5.538 capacitações de fiéis no Programa
Brasil Empreendedor (PBE), que mantém um trailer fixo
no galpão de Interlagos, zona sul de São
Paulo. É um rebanho e tanto. Quase empata com a turma
evangélica. Quatro mil fiéis da Assembléia
de Deus, Presbiteriana de Presidente Prudente, União
das Igrejas Evangélicas, Igreja Apostólica da
Nova Aliança em Cristo, além da Renascer, já
se familiarizaram com técnicas de capacitação
gerencial e mercado, comportamento empreendedor, custos
fixos e variáveis, margem de contribuição,
ponto de equilíbrio, controle de estoque, fluxo de
caixa, crédito e outros tópicos.
O Bradesco já descobriu o novo
filão de endinheirados influentes com muita fé.
Na divisão de cartões de afinidade da empresa,
as igrejas evangélicas ocupam lugar de destaque. As
logomarcas da Fundação Renascer, Assembléia
de Deus, Associação Evangélica
Beneficente e Comunidade Igreja Armênia do Brasil estão
gravadas no cartão de crédito Bradesco Visa. O
número total de clientes é mantido em sigilo,
mas cerca de dez mil correntistas do banco exibem cartões
com o emblema da Fundação Renascer.
É um negócio vantajoso
para ambos. Uma cota aproximada de 30% da anuidade paga pelo
correntista vai parar nos cofres da igreja. O valor pode ser
maior ou menor, a depender do acordo firmado com a instituição.
Para o banco, trata-se de uma ótima oportunidade para
construir um mailing direcionado, com oferta de produtos
religiosos. "O mercado de cartões de afinidade
ligado às igrejas está em expansão",
entusiasma-se Sidnei Nascimento, diretor da Bradesco Cartões.
Ele conta que o banco está montando uma força-tarefa
para atrair mais correntistas-cristãos. "Queremos
que uma pessoa da própria igreja se encarregue de
promover o cartão."
Para seduzir cristãos com
dinheiro no bolso, as igrejas tentam apagar a imagem
estereotipada do crente. Nada de cabelos compridos para as
mulheres ou a bíblia debaixo do braço de
homens. Elegante e bem-humorado, o empresário Ricardo
Abbud, diretor-executivo da construtora Inpar, pode ser
visto como um representante do novo perfil dos fiéis
da elite. Ele vai buscar no exemplo de Cristo a explicação
para sua conduta. "Jesus se trajava com os melhores
tecidos. Ele queria que nós fôssemos a luz do
mundo e o sal da terra. Como podemos seguir o exemplo de um
miserável?", indaga Abbud, da Arepe.
Quem comparece à reunião
semanal da Arepe na Aclimação, em São
Paulo, toda segunda-feira, tem a oportunidade de confirmar
na prática o sucesso das iniciativas nascidas,
segundo sociólogos, na Teologia da Prosperidade (TP).
Às 20horas, de uma
segunda-feira gelada todos os lugares estão ocupados.
Homens e mulheres bem vestidos são presença
marcante no templo de mil confortáveis poltronas
vermelhas. Todas ocupadas. O discurso do apóstolo e
empresário Estevam Hernandes, fundador da Renascer e
dono de um próspero conglomerado de empresas de
comunicação, entre elas a Rede Gospel, vem
embalado por uma banda musical e letras de cânticos
amplificadas por dois telões. Ex- gerente de
Marketing da Itautec e Xerox do Brasil, ele fala com
conhecimento de causa.
Conta aos fiéis que foi
preterido numa promoção. Mas as orações
constantes teriam sido decisivas para mudar o rumo da sua
vida profissional: "Em dois anos, fui promovido quatro
vezes. O Senhor me devolveu tudo o que me roubaram." A
Igreja dos novos tempos é assim. Saúde? Amor?
Amizade? Nada disso. Os velhos temas do sermão
dominical (não à toa, a reunião
empresarial acontece às segundas-feiras) são
apenas coadjuvantes numa cerimônia em que o
protagonista é o trabalho. A pessoa física dá
lugar à pessoa jurídica. "A Arepe quer
ser um refrigério ao estresse pelo qual passam os
executivos", explica Hernandes.
Durante todo o culto, a chamada "linguagem
profissional" de Estevam vem marcada pelos signos do
capital: finanças, negócios, fluxo de
dinheiro, concorrência e mais de uma dúzia de
palavras afins são utilizadas sem economia. Para
alcançar as graças divinas, contudo, não
basta participar. Tem de colaborar. Os fiéis pagam
uma taxa mensal fixa de R$ 15 e ofertas de valores variáveis,
que ficam por conta da "fé de cada um". O
envelope branco do dízimo é recolhido com
pompa e circunstância, em grandes cestos de vime, que
circulam pelos corredores.
O trabalho de catequização
dos engravatados não se resume ao encontro semanal.
Uma tenda estrategicamente situada à porta da igreja
anuncia a parceria com o Sebrae e o grupo Catho, para
recrutamento de profissionais crentes, além de
distribuir uma revista de classificados. Os anunciantes
devem ser, necessariamente, associados da Arepe. E não
é só. Aos empresários é
oferecido um variado cardápio para degustar a fé
cristã. Um dos pratos principais é o reforço
espiritual, dado por uma turma de fiéis, que passa 24
horas orando em nome da empresa, muitas vezes às vésperas
do fechamento de um negócio importante.
A Arepe não está sozinha
neste, digamos, negócio. A discreta Igreja
Internacional da Graça de Deus e a famosa Igreja
Universal do Reino de Deus, do "bispo" Edir
Macedo, mantêm departamentos específicos para
os executivos. As reuniões da Universal, realizadas há
cerca de seis meses, também acontecem às
segundas-feiras, mas a divulgação ocorre sem
alarde. Por duas semanas, o Valor tentou uma entrevista com
os responsáveis, mas não obteve resposta. O
esquema mantido pela Universal, contudo, pouco difere das
demais denominações.
Na verdade, cada igreja ou associação
desenvolve suas próprias estratégias para
atrair clientela. Muitas vezes, pela boca. É o caso
da Associação dos Homens de Negócio do
Evangelho Pleno (Adhonep), que reúne empresários
e profissionais liberais. A idéia é que o
homem de negócios morda a isca do evangelho num
jantar, café da manhã, ou então num
coquetel regado a água e biscoitinhos sortidos. Os
integrantes de um dos "capítulos" - nome
dado a cada uma das 700 filiais espalhadas pelo Brasil - são
recebidos com iguarias, toda segunda-feira, em um luxuoso
hotel na região da avenida Paulista, onde a maioria
deles trabalha.
O encontro é semanal, mas quem
os vê pela primeira vez tem a impressão de que
se trata de um reencontro de colegiais. Abraços
efusivos, tapinhas nas costas, sorrisos abertos como quase
nunca se vê no sisudo mundo dos negócios. Os
convivas se reúnem no auditório para ouvir a
preleção do presidente da casa, Francisco
Lorusso. Eles rezam, escrevem pedidos, mas o momento mais
importante é o de prestar atenção ao
depoimento de um dos executivos, no melhor estilo "vim,
vi e venci".
Em outra segunda-feira de setembro,
desta vez abafada, o testemunho foi proferido por um empresário
de peso. Aguinaldo Cajaíba, proprietário de
uma metalúrgica e um dos diretores da Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
Protagonista de uma história de vida que caberia bem
num daqueles folhetins com final feliz, Cajaíba
revela-se um orador habilidoso. Prende a atenção
dos ouvintes, lê trechos da Bíblia, cita Deus
dezenas de vezes, e encerra com uma oração
fervorosa. "Só me tornei empresário por
milagre. Quando encontrei esse Deus tremendo e maravilhoso",
conta ele, emocionado. De passado pobre, hoje ele se orgulha
de ter dinheiro e convencer homens céticos a levantar
a mão aos céus.
Chamar a Adhonep de igreja, segundo os
dirigentes, é heresia. Eles rejeitam veementemente a
comparação alegando ter entre os sócios
representantes de diversas religiões. "Só
cremos na Bíblia. Queremos transmitir a experiência
de uma mudança de vida e levar uma mensagem de
esperança", justifica-se Lorusso, que faz questão
de citar algumas estrelas do "time", a exemplo do
deputado Magno Malta (PTB-ES), o candidato ao governo de São
Paulo em 1998, Francisco Rossi, e o governador do Rio de
Janeiro, Anthony Garotinho (PTB-RJ).
A convite de um conhecido, o empresário
Dácio do Amorim esteve pela primeira vez na reunião
do hotel e, depois de participar das orações,
concentrado, julgou o saldo positivo. "Acho que deu uma
força para começar a semana. É uma
movimentação generalizada, todos estão
procurando algo diferente", diz o executivo, cuja
empresa de metalurgia passa por problemas financeiros. Se
Amorim vai ou não resolver as suas pendências,
não se sabe. É certo, no entanto, que ele
atendeu ao chamado da propaganda divina mas, como bom
consumidor, está à espera de dividendos
terrenos.
Doutrina adota a máxima
"é dando que se recebe"
Usar o nome de Jesus com a mesma
liberdade que se utiliza o talão de cheques. Essa é
a asserção básica para compreender a
Teologia da Prosperidade (TP), doutrina que legitima -
livrando de qualquer culpa - o interesse mundano por bens
materiais. Os adeptos da TP não pedem, exigem. Não
rogam, decretam. Não suplicam, reivindicam. Demandam
a felicidade aqui e agora, e deixam de lado a vida eterna.
O sociólogo Ricardo Mariano,
que pesquisa o pentecostalismo há dez anos, conta que
a TP teve suas primeiras sementes espalhadas nos Estados
Unidos na década de 40. No Brasil, os ventos dessa
teologia sopraram nos anos 70, seguindo o rastro do
televangelismo de Ken Hagin Jr., Fred Price e Kenneth
Copeland, e encontraram terreno fértil em diversas
igrejas, entre elas, Universal do Reino de Deus,
Internacional da Graça de Deus, Comunidade Evangélica
Sara Nossa Terra, Renascer em Cristo, Nova Vida, Cristo
Salva e Associação dos Homens de Negócio
do Evangelho Pleno (Adhonep).
Em troca de dízimos e de
generosas ofertas (que não raro ultrapassam 10% dos
rendimentos), os pregadores da TP prometem o paraíso
na Terra. "Várias igrejas pentecostais
tornaram-se verdadeiras intermediárias dessa transação,
dessa barganha cósmica entre o homem e Deus",
explica Mariano, autor do livro "Neopentecostais:
sociologia do novo pentecostalismo no Brasil". Essa
mediação entre Deus e o homem teria um efeito
bastante prático: aumentar a arrecadação
e, por conseqüência, azeitar o crescimento
empresarial das igrejas.
A lógica, explica o
pesquisador, não poderia ser mais simples. A TP
promete prosperidade aos fiéis mais pobres, expurga a
culpa dos mais ricos em relação à própria
riqueza e, de quebra, financia os ambiciosos projetos
evangelizadores e os negócios de seus líderes.
Parábolas bíblicas que enfatizam os esforços
dos fiéis menos abonados em busca do reino dos céus
foram postas de lado. O céu não está
mais reservado apenas aos pobres e oprimidos. Pelo contrário.
Como para a TP os cristãos
detentores de grande fé tendem a ser prósperos,
felizes e saudáveis, é sobretudo a eles que
estão reservados os lugares celestiais ao lado do
trono divino. Até porque, para os pregadores dessa
teologia, Jesus veio a Terra pregar aos pobres justamente
para que eles deixassem de ser pobres. Os mais crédulos
exigem do Senhor bens materiais - sem pudores. Ou seja, tudo
acontece segundo os fundamentos de uma espécie de código
do consumidor espiritual. Quem está insatisfeito,
reclama aos céus as benesses a que têm direito.
A busca pela bênção
passa pelo velho adágio de que "é dando
que se recebe". Fiéis são incentivados a
abrir a carteira e a contribuir mensalmente com dízimos
e ofertas para obter a graça almejada. É por
meio da contribuição financeira, apregoam os
teólogos, que o "contrato" com Deus é
renovado e, dessa forma, os fiéis se tornam
merecedores da "vida abundante".
"Ao se propor como uma espécie
de redenção terrena dos pobres, a TP, no
entanto, pode esbarrar num clássico caso de
propaganda enganosa. Do contrário, teria exterminado
a pobreza", pontifica Mariano. Para seus partidários,
no entanto, a explicação é simples:
falta de fé. Aqueles que ainda não conseguiram
conquistar a prosperidade, quer dizer, a casa própria
e o carro do ano, precisam aumentar a dose de orações
e, portanto, de ofertas monetárias à igreja.
Ou então, assumir que em algum momento da reivindicação
nutriram dúvidas em relação às
crenças e, como "a dúvida é do
diabo", impossibilitaram o recebimento da dádiva.
A fé, assim, virou sinônimo de dinheiro.
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