Publicado no Jornal Folha de São
Paulo em 26/10/95
O festival de teologia que assola o país
está permitindo um inesperado vislumbre sobre todo um
passado de intolerância, como se de repente caíssemos
em pleno século 17, quando metade da Europa procurava
degolar a outra metade a fim de estabelecer se os homens devem
ou não tirar o chapéu ao entrarem na igreja.
Inútil ressaltar a futilidade dos
pretextos nas querelas de religião, que no nosso caso
atual, como no século 17, opõem idólatras a
fanáticos, imagem contra texto. Os motivos podem ser fúteis,
mas não as motivações, pois afinal sempre
se trata de comércio das almas vertido em boa moeda
sonante.
Claro que cada um deve ser livre para
recorrer à anestesia espiritual que melhor lhe convier; a
vida é dura demais sem esperanças. Quem tem moral
para chamar a religião alheia de ridícula? Não
há incautos em matéria de religião porque
nesse assunto todo mundo é cego, todos cultivamos
fetiches ainda quando damos a eles o nome laico de sonhos ou
ideais.
Voltaire achava que só a crença
em Deus é racional. Templos, dogmas, cerimônias
seriam fantasmas agitados pelo clero para extorquir a multidão
de supersticiosos, que ele compara aos covardes na guerra, pois
sentem e espalham pânico. Toda seita é tão
absurda quanto qualquer outra, logo todas têm igual
direito a praticar suas extravagâncias e a prosperar.
As "Memórias" de Voltaire
acabam de sair pela Imago, com tradução de Marcelo
Coelho. Apesar do que sugere o título, tratam apenas do
período que o escritor francês passou na corte de
Frederico da Prússia. O livro é uma boa introdução
ao estilo de Voltaire, à sua famosa ironia, tão
frisante que quase a conhecemos mesmo sem nunca ter lido.
O método experimental, que Voltaire
tanto admirava nos ingleses e que deu origem ao mundo científico
moderno, acarretou um duplo revés para a religião.
Por um lado, tudo se esclareceu no mundo material, as leis da física
expulsaram crendices e mandingas, o progresso técnico
obrigando a religião a falar em termos metafóricos.
Mas no mundo imaterial a consequência
não tem sido menos devastadora: quando não é
simplesmente negado, ele é posto de lado como algo que
por enquanto ainda não conhecemos, mas um dia viremos a
conhecer. Deus é compelido a recuar para um canto oculto
do universo, para o quase anonimato do deísmo que já
era a crença de Voltaire e dos enciclopedistas.
Conforme as religiões cediam à
evidência de que repousam na melhor das hipóteses
sobre uma dúvida, à medida que a ciência
substituía as certezas da fé, passamos a tolerar
que cada um escolha sua crença como escolhe cônjuge,
profissão ou traje. Só quando a fé diminui
a tolerância aumenta, e vice-versa. Podemos acusar o bispo
Von Helder, por exemplo, de tudo, menos de não ser fanático
e portanto intolerante.
Mas o principal fanatismo da nossa época
é mais sibilino e talvez perigoso, porque se pretende
racional. Nosso jansenismo é étnico, nossas
superstições são médicas, nossa
inquisição é ecológica, as
feministas são os nossos quacres: uma modalidade perversa
de intolerância em nome da própria tolerância.
Mesmo contra ela Voltaire ainda é o melhor desinfetante
mental.
Otavio Frias Filho escreve às
quintas-feiras nesta coluna.