I. OS FANTASMAS DA CATEDRAL
  Para começar este episódio deve ser ilustrativo. Nós vivíamos sempre duros: dinheiro era uma palavra tão abstrata para a gente, que sua presença era sempre objeto de comemoração. Gilson, porém, havia descoberto que, vez por outra, poderia pegar algo na conta de seus pais, na Venda de Bu. Foi assim que adquirimos uma garrafa de vinho vagabundo, uma certa noite daqueles idos de oitenta e tantos...

   De posse da garrafa, um problema surgiu: onde iríamos bebê-la? A venda de Bu (Edilson Alves de Brito) sita no lado sul da Praça da Catedral, possui uma vista da igreja matriz que, se para os demais mortais não indicava nada especial, para nós respondia ao menos àquela questão.

   Só para explicar, a Igreja de Santana, padroeira da cidade, não era cercada como hoje, e o passeio era ao lado de suas paredes imponentes. Eu e Gilson deliberamos que o melhor local pra gente tomar nosso néctar de Baco seria ali, no telhado da Catedral de Santana de Caetité.

   A escalada era muito fácil: subíamos no parapeito duma janela, dela para uma calha, o friso da fachada, o primeiro telhado (acho que da sacristia) e dali para o telhado mais baixo. A parede, ali, erguia-se cerca de meio metro acima das telhas, então ficaríamos completamente ocultos. E poderíamos beber e conversar sem incomodar ou sermos incomodados.

   Um outro aspecto arquitetônico da igreja é que aquele pedaço de parede que nos escondia terminava numa inclinação para dentro, de forma que para mim era inviável andar sobre ela. Após desarrolhada a garrafa, dei uns dois goles, e meu rechonchudo companheiro sorveu o resto de uma vez só, como quem
mata uma garrafa de suco de uvas. Enquanto eu estava embriagado, ele dizia estar sóbrio. De fato, era preciso muito mais que uma reles garrafinha de vinho de segunda para derrubá-lo. Mas, para provar, o sacana foi andar sobre a tal parede. Depois de muitos e desesperados apelos, ele voltou para o telhado. O vinho durou muito pouco, e a gente não queria descer. Mas fazer o quê, ali em cima? Ficar olhando um para a cara do outro não era nada agradável.

   De repente Gilson olhou por sobre a paredinha e viu, passando lá embaixo, na calçada, o velho Seu Alcides, pedreiro aposentado (hoje já falecido), que rumava para o bar de seu Ciro, atrás da igreja. Aí, sem que eu pudesse sequer adivinhar, ele gritou, com uma voz lúgubre:
UUUUUUHHHHHH!!

   Corri para espiar, a tempo de ver apenas o pobre homem desaparecer em desabalada carreira, apavorado. Caímos na risada, eu adorei a idéia e barganhei que o próximo transeunte seria por mim assustado.

   Mas Caetité, naquele tempo, e àquela hora, era mesmo deserta. Antes que surgisse outra pessoa, Seu Alcides reapareceu, com todos os bebedores do bar de Ciro, e apontava o local onde a assombração o tinha assustado. Os homens olhavam em nossa direção, mas o escuro nos protegia. Então vimos alguns fazendo gestos de que o pobre velho estava bêbedo, ou mesmo maluco ou gagá... e o deixaram só. Vendo-se desacreditado, o assombrado senhor foi para a venda de Bu, e chamou a todos para mostrar o local onde uma visagem assombrava a vetusta catedral, obtendo igual credulidade.

   Depois que o desacreditado Alcides foi embora curtir o susto em casa, finalmente alguém se dignou a passar por ali. Era uma moça que vinha do colégio, de farda e com os livros nas mãos. Era minha vez, finalmente. Ela foi aproximando e, quando ficou abaixo da gente, dei também o meu grito fantasmagórico. A menina disparou em desabalada carreira...

   Anos depois, quiçá influenciada por esta experiência de contato com os seres do mundo espiritual, acabou se tornando filha-de-santo. Não sei, pode ser...

   Sei que depois desse susto não passou mais ninguém.  Descemos, e fomos fazer outra coisa, cansados de esperar...
A PROVA: MINHA FOTO NO LOCAL DO "CRIME"
André Koehne - memórias - Aprontando em Caetité - Academia Caetiteense de Letras - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor.
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