II. O SÓTÃO
NA FOTO AO LADO, UMA DAS ÚNICAS IMAGENS QUE FICARAM DO VELHO SÓTÃO - RETRATA O "BATIZADO" DO CÃOZINHO "MORENO", DA AMIGA VALÉRIA OLIVEIRA (NA FOTO, ALÉM DELA E EU,  OS SOBRINHOS MARIA E HERMANN  E O "PADRE" EDINALSON)
  O único local fixo de reunião da turma era em minha casa. Ali nos sentíamos à vontade para elaborar nossos projetos, para ficar sem fazer nada. Eu e Tairone jogávamos uma interminável partida de buraco, em que os pontos já ultrapassavam os trezentos mil ! !

   Morava então na esquina da rua Barão de
Caetité com a Praça, local mesmo estratégico, por ser central. No começo apenas Tai e eu freqüentávamos aquele pardieiro juvenil, mas volta e meia tava todo mundo ali. Era um quarto sem função na casa, apenas guardando poeira, tralhas e objetos dos tempos de meu bisavô. Arrumamos, colocamos luz, uma cama, uma rede, duas mesas e várias estantes, onde ficavam os livros, revistas, a lata com fumo tirado das pontas de cigarro que fumávamos (ela aparece na foto, ao lado direito - sem dinheiro para sustentar o vício, era uma reciclagem interminável, que enchia o chão de pontas de cigarro vazias).
  
   No sótão praticamente tudo era permitido. Menos a entrada de adultos, em especial os donos da casa, meu pai e minha mãe. Falta do que fazer era, sim, um sério problema: eu e Tairone chegamos a inventar jogos de baralho para distrair, que também iam tendo seus resultados anotados na tabela infindável. Lembro-me de um tal "jogo do novo" em que adaptamos o jogo da velha para cartas, e "cinco estrelas", adaptação do "pif-paf".

   Eu e Gilson iniciamos ali nossas carreiras de escritores, escrevendo juntos uma peça de teatro que retratava uma cidade fictícia chamada
Caburé, e governada por um prefeito fictício de nome Clarindo Viadutos. O lema da cidade era O Gato Comeu, e a peça era ambientada no gabinete da prefeitura, que recebia uma visita de um fiscal do Tribunal de Contas. Essa brilhante obra de literatura se perdeu, mas dá pra imaginar que pelo ao menos nós dois nos divertimos muito escrevendo-a: num certo momento sem solução para os diálogos, a imaginação truncada sem conseguir prosseguir no enredo, e Gilson fez aparecer um pichador que saltava de baixo da mesa do prefeito.

   Rimos muito com o inusitado personagem que estava oculto até a metade da peça e nem nós, os autores, sabíamos. E, principalmente, porque era o nosso alter-ego que surgia, nós, a ameaça constante ao Prefeito real, dr. Clarismundo Pontes...

   As reminiscências são muitas, e as referências a este ponto geográfico, ignorado da maioria dos mortais caetiteenses, voltarão certamente. Para mim, entretanto, é parte dum passado muito rico, mas que eu mesmo me desfiz, depois: joguei fora dezenas de cadernos com meu diário, com minhas poesias. Uma curiosidade era que ali eu não tinha qualquer ascendente: mesmo brigado com alguém, o acesso era permitido, afinal, tanto Tairone como Gilsão tinham guardados pertences ali.

  Tai, que precedeu a Bolivar no sótão, certa vez deu a louca de "arrumar" a sujeira do sótão: aquilo ali estava um lixo, queixou-se. Não movi uma palha, e ele foi juntando as guimbas, os papéis espalhados no chão, colocando num saco plástico. Quando terminou quis colocar fogo e jogar o saco pela janela, mas o lixo não colaborou. Então ele jogou álcool e ficou riscando o isqueiro, nada de o treco queimar. Deitado na rede assistia à cena quando, impaciente, o jovem amigo enfiou o braço, acendeu a chama e... Puff... e um cheiro de cabelo queimado tomou conta do ambiente... coisas do Tairone.

  Assim, foi ali, no velho sótão, que arquitetamos boa parte das aventuras que aqui se encontram relembradas. Um local familiar, verdadeiro clube inglês, de tanta respeitabilidade (e tanta falta de mulé...). É mesmo puro saudosismo relembrar aquilo lá: a escada móvel que levava para o outro cômodo, sob a qual o Gilson instituiu seu escoderijo secreto, colocando ali objetos diversos que me fez prometer não espiar (e estranhamente cumpri a promessa! Que diabo, era só espiar sem ele saber, afinal eu morava ali o tempo todo. Por isto fico devendo o conteúdo daquele nicho), assim como da estreita escada de madeira, com o primeiro degrau comido de cupim, onde Tairone uma vez pisou, descendo o restante como numa escorregadeira, parando apenas porque  fazia uma curva na chegada....

   A todos os leitores, portanto, nossos boas-vindas ao sótão.
André Koehne - Memorias Adolescentes - Aprontando em Caetité - Academia Caetiteense de Letras - 2003 - todos os direitos pertencem ao Autor.
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