III. O JORNAL DA ESQUINA
  No começo foi um empreendimento de toda a turma: eu, Tiba, Nelson, Gilson, Tai e outros. Era necessário fazer um jornal em Caetité - e todos concordávamos que éramos os únicos capazes de tal proeza. Era mesmo urgente: uma cidade que tivera em seu passado, já no século XIX, um jornal, uma imprensa ativa, vivia aqueles últimos anos da ditadura militar o refluxo do aculturamento promovido pelo regime. Era um quadro desolador.

   Nós, "luzeiros do país", como Castro Alves recitou, integrantes natos da "classe da justiça e brio", não poderíamos nos calar. Tínhamos de construir um meio de fazer levar a público os descalabros, romper o silêncio, erguer uma voz. Acho que foi a única coisa realmente séria que a Turma se propôs...

   Assim, era mister, em primeiro lugar, fazer a
redação do jornal. Naquele tempo Nelsinho era menor-aprendiz do Banco do Brasil, e foi lá, no material de refugo, que nos conseguiu o papel, grampeador, carbono, clipes, etc., com os quais poderíamos dizer que a estrutura estava montada. Pensamos mesmo em registrar o jornal, mas ninguém tinha a menor idéia de como fazer.

   O tempo foi passando sem que nada de concreto ocorresse, e parte do pessoal abandonou a idéia. Eu e Gilson, porém, nos fizemos baluartes da moral, e convidamos então Alberto Vanderlei, bancário do Banco do Brasil (um progresso, o outro - Nelsinho - era ainda "menor"), e Pepê (Manoel Pedro Azevedo).

   Deliberamos que o jornal seria colado na esquina da casa de Monsenhor Osvaldo Magalhães, na Praça da Catedral com a Avenida Santana: o local de maior movimento da cidade, e que daríamos o nome de JORNAL DA ESQUINA ao noticioso.

   Assim, redigimos as notícias (eu praticamente fiz este trabalho sozinho, pois o pessoal nunca foi amigo mesmo da pena). Pepê foi censurado: era o responsável pelas matéria policiais, encarregado de denunciar a tortura feita pelo delegado, e saiu com a seguinte redação: "É diante de certas atrocidades cometidas por nosso corpo policial que ergo minha voz em protesto..." Caralho, isso lá é linguagem jornalística?

   Colocamos matérias de diversas naturezas, e cada pessoa envolvida sugeriu algo, mesmo aqueles que tinham se afastado estavam representados com alguma notícia, fosse cobrando algo da escola, do vereador de oposição que nada fazia, fosse simplesmente louvando certas iniciativas.

   No dia azado para o
lançamento, fizemos cartazes para colar nas ruas, com os dizeres: "Leia o Jornal da Esquina", e indicando o local onde seria colocado. Começamos o trabalho assim que tudo ficou pronto, lá pelas oito da noite.
A casa de Monsenhor, indicando onde o JE ficava
  Após a colagem da propaganda, fomos ao principal. Era por volta de dez horas quando o número um do Jornal da Esquina teve suas cerca de oito páginas datilografadas coladas na parede da varanda da casa paroquial.

   Não era nada clandestino, lembro-me de Nem de Dácio ter parado o carro e ficado olhando o que fazíamos. Mas as pessoas ficaram depois especulando quem seriam os autores do pasquim: era engraçado porque vários
suspeitos foram apontados, sem que tivessem nada, absolutamente, a ver...
  O dia seguinte foi a grande surpresa. Jamais imagináramos o sucesso que a coisa fosse fazer. Dezenas de populares, gente de todos os tipos, classes, credos, a cidade em peso, enfim, se aglomerava, disputando a vez de poder ficar diante do papel.

   Eu e Gilson estávamos deslumbrados! Dava vontade de ficar ali, o dia inteiro, assistindo o efeito de nosso esforço... As pessoas liam, formavam grupos para comentar, analisar, criticar, louvar, era tanta coisa que foi como se Caetité assistisse a um rio, represado por anos seguidos, ter repentinamente suas águas liberadas: a correnteza fluía finalmente...

   Homens, mulheres, adolescentes como nós, velhos e novos, tanta gente que no segundo e terceiro dias o afluxo não diminuía. E já preparávamos o segundo número...

   O padre, segundo nos disseram, adorou ter sua casa sido escolhida para a
publicação. Chegou mesmo a dizer que colocaria uma lâmpada ali para as pessoas poderem ler durante a noite.

   Além dos curiosos, as pessoas que poderiam ter seu nome ou cargo ali expostos também acorriam, ou mandavam prepostos para dar-lhes ciência. A tudo anotávamos, maravilhados...

   O segundo exemplar foi também o último. Recordo-me de que pessoas nos procuravam, para fazer denúncias, e achamos que o troço estava ficando arriscado demais. Não tínhamos as provas, não éramos tão irresponsáveis assim.

   Um advogado chegou, depois deste outro jornal, a montar guarda na praça, a fim de flagrar os autores que ele ignorava quem fossem. Por fim o prefeito baixou um decreto (naquela época de chumbo, lei era de um só) criando a guarda municipal, encarregada expressamente de coibir ações sorrateiras. Havia um artigo com os seguintes dizeres: "Fica proibido, sem a prévia autorização do poder público municipal, a colagem nos muros da cidade de cartazes, propagandas e etc.". O etcétera éramos nós, o Jornal da Esquina.
   Deve ter sido a única lei do mundo a proibir
etcétera...

   Quando saiu este exemplar, eu e Gilson ficamos até tarde assistindo os leitores. Quando o movimento escasseou, ele foi para casa. Eu o acompanhei até a Feira Velha; depois que retornei, notei que alguns homens estavam lá. Era o pessoal ligado ao vereador de oposição, também presente, que tivera uma crítica mordaz ali exposta: o cara fôra eleito para fazer aquele trabalho que estávamos a realizar, recebia salário para isto, e vivia recebendo as benesses para manter-se silente. Nossa intenção não era, entretanto, a de humilhá-lo, mas sim de despertá-lo para suas obrigações. Fui me aproximando. O sujeito, quando me viu, gritou:

_Quem fez isso aqui é um filho da puta covarde!

   Desembainhou uma faca imensa, eu me preparei para ser agredido, esperando um golpe - mas ele atacou a folha que tinha a nota com seu nome, e rasgou-a. Acho que medo era uma coisa desconhecida para a gente, naquele tempo. Assim que vi nosso trabalho ser desta fora agredido, adiantei-me, ele ainda com a faca em punho, e respondi que estava errado: os autores tinham família, e não eram cobardes não, pois fizeram tudo às claras.

   O que aconteceu a seguir foi meio surrealista: ele se desculpou pelo dito e, então, mediados por um ex-colega do Instituto, aliado dele, começamos uma negociação, dando voltas e mais voltas em torno do jardim da Catedral, em que ouvi como a política funcionava, como era a estratégia deles para chegar ao poder. Que não era correto abortar o esforço da esquerda assim, enfim, avaliei para ele que era muito pior politicamente o fato de no dia seguinte as pessoas verem o jornal rasgado, e se era necessária uma correção, poderíamos fazê-la. Mas já era madrugada, onde datilografar uma nova nota? Fomos até a casa do companheiro (não seria "camarada"?) ali presente, e escrevi outra nota, desmentindo a primeira. Quase quatro horas da manhã, finalmente, ela foi colada no lugar onde a original fora destruída.

   Então, morto de sono, fui dormir. Parecia loucura, mas pouco tempo depois uma voz falava meu nome. O sono era tanto que demorei a despertar. Era Gilson, e eram pouco mais de seis horas da manhã:
_André, acorda! Você precisa ver isto!

  Com muito esforço consegui abrir os olhos. O companheiro exibia, alegre, uma pequena tira de papel na mão, que não conseguia entender para que servia, ou menos ainda por que aquilo seria motivo de me acordar tão cedo. "O que é isso?", perguntei, sem atinar bulhufas. Ele me esclareceu:
_Veja só o que
fulano colou no Jornal, ainda bem que arranquei antes que alguém pudesse ler...

   Era a nota escrita durante a madrugada. Gilson subia para o colégio, onde faria educação física, parara a fim de reler nossa obra, viu a adulteração, e arrancou-a. Tive de acordar, explicar o ocorrido, mas não tinha volta. Decidimos deixar as coisas como estavam. E acertamos em cheio. O tal sujeito abandonou a esquerda, aliou-se à extrema direita, onde permanece, esquecido da consciência que um dia o preparou para minimizar os sofrimentos sociais.

   Este o JORNAL DA ESQUINA, que um dia, lá no século XX, agitou a cidade de Caetité, no sertão baiano. Ah, eu tive a felicidade de ter meu nome, junto ao de minha mãe e um irmão, que ignoravam completamente o feitio do jornal, exposto num panfleto mimeografado e que foi distribuído de casa em casa pela madrugada... xingavam-me de muitos palavrões, mas um me fez rir muito:
tarado, justo eu que vivia uma seca braba! Nem namorada tinha...
Apenas para ilustrar: eu, ao lado, estou sentado no "Criatório de Pedras", única obra de "grande" porte que a prefeitura da época tinha feito em 6 anos de governo...
O Jornal da Esquina era mais que necessário: era URGENTE...
André Koehne - Memórias Adolescentes - Aprontando em Caetité - Academia Caetiteense de Letras - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor.
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