IV. GILSON BOLIVAR:
O DURO NA QUEDA
  André e Gilson estavam sempre inventando alguma. E sempre era Gilson a imaginar algo. Dizendo-se mecânico, o Bolivar lembrou-se que na oficina abandonada de meu pai estava largada uma perua. E fez a proposta de restaurarmos o carrinho, pra gente poder sair por aí...
   Dito e feito. Dias a fio, escondidos do mundo, rumávamos para a rua do Pernambuco e, Deus me perdoe, não tenho a menor idéia de como, mas o fato foi que conseguimos transformar uma
Na foto mal tirada: Gilson, Rose e eu
sucata em automóvel... Peças foram retiradas de outro carro velho, a chaparia foi feita com tinta a óleo de parede. Colocamos o velocímetro, o limpador de pára-brisa, e outros detalhes, deixando sem mexer coisas de somenos importância (a gente não tinha know-how) como freios, pra lá...
   Bom, mais tarde espero voltar a este carrinho, que tantas e tão boas recordações trazem.
   Uma  coisa é preciso se diga sobre o Gilson, para ser justo com esta grande personalidade: o cara é inteligente, mas tem lá seu parafuso solto. Assistia a desenhos animados, enlatados de tevê, e ficava se imaginando na situação dos personagens. Muito antes de inventarem os
esportes radicais, Boli já era um viciado em adrenalina, mesmo que isto significasse se oferecer como voluntário para limpar a cisterna lá de casa. Vamos ao grande dia...
PARTE UM: O HOMEM DA CAVERNA

   Eu e meu irmão mais velho deliberamos limpar a cisterna do quintal. Por Caetité integrar esse universo chamado "polígono das secas", tínhamos de nos precaver contra o período de estiagem. O poço, com cerca de nove metros de fundura, já estava há alguns anos sem limpeza, e era servido por uma bomba muito antiga. Eu, meu irmão e um cunhado fizemos uma vaquinha e adquirimos um equipamento mais moderno. Assim, era mister retirar toda a água e areia da cacimba.

   Ninguém convidou Gilson para ajudar, mas na hora aprazada para começar ele apareceu: de capacete, botas, luvas e o diabo. Disse que viera para descer ao fundo do poço.

   Meu irmão, ciente do perigo, escusou a responsabilidade em permitir que ele, menor e de outra família, pudesse vir a sofrer um acidente em nossa casa. Mas Bolivar não se deixa convencer fácil, não. Na verdade deu um
calundu, fez biquinho, disse que não empresataria seus equipamentos (a luva, capacete, etc.), que a gente não precisava mesmo. Tanto fez, porém, que ficou certo que ele desceria, mas por sua própria conta e risco.

   O trabalho seria todo manual: girando a roldana, puxaríamos um balde com a água do poço. Mas, antes, amarramos uma grande escada na corda. Trepado nela, nosso grande amigo foi  imergido lá em baixo, até desaparecer na completa escuridão das profundezas terrenas...

   Retirada a escada, começou o labor de puxar o balde cheio d'água, que Gilson, o
Homem do Buraco - ahn? Ah, tá, o Homem da Cisterna, enchia lá em baixo. Centenas de vezes o movimento se repetiu, a água sendo substituída por areia molhada, fruto da erosão das paredes da cacimba. Nesta fase do serviço o balde ficara três vezes mais pesado. Mas a bomba nova que iríamos colocar ficaria dentro do meio líquido, então não poderia mesmo deixar terra ali. Já fazíamos os movimentos maquinalmente, Gilson já não enchia o balde até a boca, sinal de que estava perto do fim.

   Mas, se o peso diminuíra um pouco, a corda se desgastara, sem que notássemos.. Uma hora, quando o balde aparecera na parte superior, ela se rompeu,  o pesado recipiente despencou lá para baixo, e nós escutamos um baque surdo: PUM! E mais nada...
_
Gilson! - gritou meu irmão.
Apenas o eco respondeu: "
Gilson, Gilson, Gilson, Gilson, Gilson ..."
Ele dava voltas em torno do buraco, gritando desesperado, brigando comigo por manter-me apático.

   Os minutos se passavam, e lá de baixo o silêncio mortal era a única resposta  que obtínhamos de nosso saudoso amigo, o herói que deu a vida para deixar uma cisterna limpa. Eu pensava em como dar a notícia aos pais deles, Seu Gilson e D. Áurea. Não ia ser nada fácil...

   Até que, depois duns quinze minutos em que se divertia às custas de nossa aflição, o sacana respondeu: "Pô, velho, quase me acertaram!"

   Remendamos a corda, amarramos a escada de novo, tiramos o quase acidentado de lá, curiosos em saber como se esquivara do balde. Foi simples: a parede do poço abrira um nicho com a erosão, a pedra micácea friável se desfizera em areia que um dia, há milhões de anos, efetivamente já tinha sido. Era ali dentro que, toda vez que o balde subia carregado, nosso ex-herói se ocultava, até que de novo o recebesse, vazio. Foi dali que viu o balde estatelar-se no fundo, sem sequer arranhá-lo...

  Agora poderíamos ir para um churrasco que meu cunhado programara num sítio que comprara, próximo à estrada do distrito de Maniaçu. Mas, antes, tive que emprestar uma roupa limpa para Gilson: ele ficara todo branco, como leite, do pó da pedra esfarelada. Deve ter ficado engraçado, já que visto uns dez números a menos que ele... hum! O importante foi a recomendação: "Vê se não suja a minha roupa, tá?"


PARTE DOIS: O MISTERIOSO DESAPARECIMENTO DE GILSON

   O que aconteceu a seguir foi surrealista demais. Incrível, mas verdadeiro.

   Iríamos para o sítio no nosso carro restaurado. Era uma Kombi de carroceria. Meu irmão, usando as prerrogativas de mais velho, exigiu ser o motorista, certamente com receio de nossas habilidades ao volante - nos deixando apreensivos com a falta de freio que, para funcionar, necessitava dumas vinte
pedaladas até ter pressão. Gilson, à vista disso, manifestou-se: "Eu vou na janela".

   Assim, partimos os três (o resto da família já fora há muito), aboletados na cabine, rumo ao tal churrasco. A estrada do distrito era então de terra, uma terra vermelha, que o tráfego intenso fez criar uma montanha de pó no meio da pista e dos lados, ficando como que escavado o local onde as rodas passavam. Dirigir
aquele carro naquelas condições requeria total concentração: a folga no volante, a falta do freio, a poeirama levantada, as irregularidades da pista, tudo exigia atenção redobrada.

   Correu a viagem uma maravilha até que... Gilson desapareceu.

   Foi tudo muito rápido. O carro seguia seu caminho. Num instante, ele estava lá. No outro, apenas o vazio, ao meu lado, na cabine...

   A
desmaterialização é mesmo um fenômeno intrigante. Para meu irmão, entretanto, foi mais um motivo para que seus nervos entrassem em pandarecos.
_
Onde está Gilson?!! - gritou para mim, ao constatar que o amigo sumira.
_Não sei... - respondi, tranqüilo.
_Não sabe?!! Como?!!!!

   Ele parou o carro, após dezenas de pedaladas, e muitos metros à frente de onde constatara o desaparecimento. Sem acreditar em seus olhos, via ao seu lado apenas a mim e, na janela, onde o amigo deveria estar sentado, somente o vazio.

   Era uma sensação esquisita, mas eu fingia não me abalar. Até que aventei uma possibilidade: ele
poderia ter caído lá atrás, quando o carro bateu num buraco...
_
Então desça! Vá procurá-lo! - o homem tremia tanto, o melhor era obedecer, a contragosto. A poeira assentava, desfazendo a imensa nuvem vermelha. Finalmente visível a estrada, era apenas o que dava para ver. Nem sinal de Gilson, ou de mais ninguém: apenas pó e mais pó.

   Fui andando para trás, andando, andando, e nada...

   Finalmente avistei algo que parecia mergulhado no mar de terra. Sim, era o nosso amigo, de braços abertos, fingindo-se de morto. O carro de um ex-prefeito, que ia para a feira distrital, parou para saber se necessitávamos de ajuda. Só aí o indigitado se levantou, dizendo estar tudo bem. Bem uma ova! A roupa que lhe emprestara, com tanta recomendação para não sujar, estava rasgada, vermelhinha de dar dó...

   Ah, como tudo aconteceu? Bom, até onde vi, foi assim: a Kombi bateu as rodas dianteiras num buraco e deu um pulo. Todos nós saltamos também. Nosso amigo, que tanta questão fizera de ir na janelinha, bateu sua coxa na manivela que abre a porta e esta, claro, se abriu. Aí o carro bateu a roda traseira no mesmo buraco, saltamos de novo. Olhei para Gilson, este olhava para mim, enquanto voava para fora da cabine. Quando o auto desceu, a pancada fez a porta se fechar, deixando as coisas como se nada tivesse ocorrido.

   Meu Deus! Até hoje, quando me lembro da cara de Gilson, caindo e me olhando... é impossível não rir...

   Nosso amigo vivera, finalmente, seu dia de desenho animado. Era um sonho que se realizara. Para piorar, ele saiu-me com esta: "Ainda bem que esta semana assisti ao
Duro na Queda (seriado americano onde o ator principal passava toda sorte de quedas) e fiquei analisando como é que os caras fazem quando caem dos carrros". E aí, Bolivar? "Daí eu caí rolando, igual eles fazem..."

   Pois é, este era o Gilson Bolivar que nos acompanhava em jornadas inesquecíveis...
André Koehne - Aprontando em Caetité - Memórias Adolescentes - Academia Caetiteense de Letras - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor.
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